Direto do vórtice de uma desgraça global – por Gabriela Wiener

Direto do vórtice de uma desgraça global

Por GABRIELA WIENER

No início de março, a escritora peruana Gabriela Wiener, radicada em Madri, viu o marido de 45 anos adoecer com suspeita de coronavírus, logo confirmada. Desde então, sua rotina foi engolfada pela incerteza e o desespero de quem vive de perto a pandemia.

Este relato, publicado no jornal espanhol El Diário, fala de uma família singular: Gabriela, Jaime e Rocío vivem juntos e criam seus dois filhos, Coco e Amaru. A relação inspirou uma peça de teatro, Qué locura enamorarme yo de ti, a princípio um monólogo, e que nas últimas semanas vinha sendo representada pelos cinco, em pessoa, num teatro de Madri. Colaboradora da serrote, Gabriela Wiener participou em 2018 da primeira edição do Festival Serrote, entrevistada por Fernanda Mena na mesa “Corpos políticos”.

Este texto inaugura a série #IMSquarentena. A serrote passa a publicar ensaios do acervo, colaborações inéditas e uma seleção de textos que ajudem a refletir sobre o mundo em tempos de pandemia. 

Ambulância leva Jaime para o hospital, em Madri / Foto de Gabriela Wiener

 

Desde que tudo isso começou, imagino cada pessoa recorrendo, em sua cabeça, a uma ficção distópica, apocalíptica, ou a alguma epidemia letal que lhe sirva para fazer comparações absurdas, rir sozinha ou se desconectar da que estamos experimentando na vida real. A que me persegue é a de Ben- Hur. Quantas vezes tentei esquecer a possibilidade do contágio e entrar nessas cavernas pestilentas, pegar meu marido e meu filhe1 nos braços e tirá-los dali, como fez Judah com sua mãe e sua irmã, restituindo-lhes a humanidade, afastando-as da marginalização e do estigma. Mas não faço isso. As “impuras”: assim chamamos Jaime e Coco para brincar um pouco. A metade da nossa casa é o Vale dos Leprosos. A outra metade ainda é “o país da saúde”, como o jornalista e escritor Christopher Hitchens chamou o lugar do qual se afastara para se internar definitivamente no território da enfermidade.

Somos uma gente de sangue quente, impetuosa, que gosta de beijar, fazer cócegas, abraçar e formar amontoados de corpos que rolam sobre as coisas. E agora nos comunicamos através de uma janela com grades. Três vezes por dia, nós, saudáveis, deixamos uma bandeja com comida no chão para quem contraiu a covid. Como nossa vida se transformou nisso? A curva da pandemia evolui de diferentes maneiras atrás de nossas portas. A escala logarítmica não mede as pequenas tragédias do cotidiano. Por sorte, temos uma casa perfeita para o coronavírus. Este é um dos milhares de novos pensamentos que você tem por dia e que há duas semanas vão reconfigurando o que entendíamos como mundo: uma casa com dois ambientes muito claros, separados por um pequeno pátio, o porto fronteiriço.

Jaime adoeceu no dia em que o confinamento começou e as crianças deixaram de ir ao colégio e encheram as casas de barulho. Não tivemos nem a chance de nos iludir com a ideia de um domingo familiar que se prolongaria indefinidamente. Ele já estava com essa febre assustadora que não passa de 38 e meio. Incômodo na garganta. Dor muscular. No terceiro dia, Coco, de 13 anos, começou a ter febre e a tossir. Aí já havíamos aceitado que nossa peça sobre o poliamor seria cancelada, que teríamos que devolver o dinheiro dos ingressos de pelo menos quatro sessões, todas lotadas, e imaginar os próximos meses de uma maneira muito diferente. Um amigo sugeriu que rebatizássemos o espetáculo: “Que loucura eu me contagiar por você”.

A vida no apartheid de sua própria família começa com resistências. Roci e eu estávamos convencidas que nos haviam contagiado e que logo apareceriam os sintomas; como nada acontecia, começamos a pensar que éramos assintomáticas. Um dia, resolvemos que estávamos saudáveis e devíamos nos entrincheirar e, por precaução, nos afastarmos com Amaru, de 4 anos – os três ainda ilesos. Ligamos inutilmente para os serviços oferecidos pela prefeitura até que, por fim, o centro de saúde respondeu e besuntou a marca de sangue de cordeiro em nossa porta. Nos contabilizaram, viramos estatística, mas avisaram que teríamos que padecer em casa, sem testes, sem cuidados e sem hospital. Por isso esperamos, talvez tempo demais.

Jaime já estava há uma semana com a mesma febre, a mesma dor, quando me dei conta de que não apenas estava desabado na cama como havia dormido muitas horas durante o dia e que, acordado, não parava de tossir. Foi isso, acho, que me despertou: ele estava irreconhecível, lembrava meu pai dormindo dias inteiros nas semanas que antecederam sua morte, a projeção de uma ausência em sua presença. Meu marido não conseguia terminar uma frase sem que a tosse explodisse. Quando você sabe que a tosse violenta de quem mais ama na vida foi provocada pelo vírus, ela sacode seu próprio peito.

Parei de dormir. Notícias sobre famílias inteiras internadas ou crianças entregues aos serviços sociais porque seus pais haviam sido hospitalizados nos inquietaram. Outras, sobre os que não podiam estar ao lado das pessoas queridas, sobre os contagiados em estado grave que enfrentavam a doença na solidão, a morte sem despedida, o fechamento da funerária pública madrilenha, nos aterrorizaram e fortaleceram.

Rosi e eu viramos revolucionárias da frente de libertação contra o covid, máscaras no lugar de balaclavas e olhos ardendo. Usamos todas nossas ferramentas de militância feminista para organizar a resistência. Todos os dias conversávamos com o pai virologista e a mãe enfermeira de uma companheira do movimento antirracista; com a tia superdotada de Rosi, Carmen, cardiologista, também vítima do corona; ouvíamos as recomendações de Glória, a cunhada pediatra, sobre Coco; chorávamos com Lola, a tia enfermeira das Canárias. Graças à rede de amigas lésbicas, conseguimos um oxímetro de dedo. Aprendemos a medir a saturação de oxigênio. Sabíamos que de 95 para cima está tudo bem e que, abaixo de 90, não; soubemos que, com 60, a pessoa morre. E, numa manhã, o oxímetro indicou que Jaime estava com 87. Chamamos a ambulância.

Nunca havia estado tão perto do vórtice de uma desgraça pessoal, para não dizer nacional e, muito menos, global. Àquela altura, toda Madri tinha se transformado no Vale dos Leprosos da Espanha. Em uma necrópole de 500 mortos por dia. Todas as noites, os profissionais de saúde recebiam aplausos, mas também começávamos a descobrir tudo o que não recebiam, suas carências, sua exposição, suas frustrações. No mesmo dia em que Jaime começou a respirar mal por causa da infecção, líamos que todos os hospitais da cidade estavam entrando em colapso. A ambulância demorou cinco horas para chegar, mas ainda não imaginávamos o quanto esperaríamos a partir daquele momento. Uns homens vestidos de astronautas, que pareciam preparados para recolher um ET, levaram meu marido.

Levaram-no ao hospital mais próximo, o 12 de Outubro. Não deixaram Roci entrar. Ele foi levado à emergência, onde estão isolados os pacientes de coronavírus. Conheço bem esse hospital. Era lá que eu ia, dia sim, dia não, para fazer fisioterapia no ombro. É um hospital imenso, quase insondável. O jornal dizia que era um dos poucos onde ainda restavam leitos, mas nos informaram que a espera era de 24 horas. E a jornada se fez eterna, vendo chegar dezenas de pessoas infectadas, algumas mais velhas que se asfixiavam e caíam das cadeiras; gente que chorava de incerteza e desamparo.

Do 12 de Outubro, Jaime nos enviou esta mensagem: “Uma médica acabou de desabar, e disse chorando para toda a sala que lhe dói muito ver as pessoas assim, que é horrível também para ela, e não conseguiu mais continuar falando. E a sala começou a aplaudir espontaneamente por uns cinco minutos.” Postei a mensagem no Twitter. De casa, procurávamos desesperadamente amigos de amigos de amigos de amigos de médicos do 12 de Outubro. Mas ninguém conseguia fazer nada. Fizeram-lhe as radiografias, e ele enviou a mensagem tão temida: “Não se assustem, tenho pneumonia nos dois pulmões”. Jaime, 45 anos, saudável, sem patologias prévias. Centenas de pacientes de coronavírus morrem de pneumonia todos os dias, muitos deles jovens, embora a porcentagem mais ampla seja de velhos, e sua morte seja mais divulgada.

Eu chorava no chuveiro, na cozinha, no Twitter, enquanto espalhava água sanitária ao meu redor, passava um pano e saía para jogar o lixo. Dizia a Coco que seu pai ficaria bem, sem ter nenhuma certeza disso; abraçava Roci, nos acariciávamos com luvas, e ela me dizia que se encarregaria de tudo, que eu fosse deitar. Eu fazia isso e escrevia a Jaime, perguntando sobre seus índices de saturação – não ia morrer, não podia morrer –, e à ala religiosa dos grupos de WhatsApp da família, pedindo-lhes que rezassem, e aos médicos conhecidos, suplicando informação e milagres. Não quis falar com minha mãe, mesmo porque naquele momento não podia me permitir voltar a ter dez anos e também não poderia abraçar seus peitos, pois ela vivia a milhares de quilômetros de distância e também está de quarentena. Amaru me olhava, e eu lhe dava um biscoitinho. Soluçava em silêncio, murmurando sempre a mesma coisa: “Meu pobre amor, meu pobre amor, meu pobre amor”. Acima de todas as coisas, morria de medo.

Jaime passou ao todo 32 horas em uma cadeira, esperando ser atendido. Não teve direito sequer a uma maca, depois de uma semana de febre, com o corpo destroçado. E finalmente, à uma e meia da madrugada, nos telefonaram do hospital, talvez por obra divina, para dizer que o internariam. Ela e eu nos abraçamos na insônia e na ruína dessa esperança. Pelo menos não estava no Centro de Tratamento Intensivo, pelo menos respirava sozinho, pelo menos tinha uma boa saturação, pelo menos a febre não subia muito, pelo menos já estava sendo atendido. Pelo menos Coco se curara, estava há dois dias sem sintomas, tocava sua flauta doce como se não houvesse amanhã, e em seu isolamento havia aprendido dezenas de canções, e com elas martelava nosso cérebro, nos lembrando assim que seus pulmões estavam intactos. Como se sentia bem, tentava quebrar as normas do distanciamento: “Mamãe, mamãe, estou há um século sem abraçar ninguém, por favor, por favor”. E, frente a frente, a um metro de distância, uma abraçava o fantasma da outra.

Jaime foi submetido a um novo teste e, agora sim, lá estava a coroa-vírus, como Amaru o chama, com a inconfundível tiara de pontas. E assim começamos a ouvir falar do dolquine, o remédio anticovid que não cura, mas alivia. Dos “falsos negativos”, como Jaime, cujos testes saem errados, embora tenham todos os sintomas. De seu companheiro de quarto, outro falso negativo, que cuspia os pulmões, que estava muito pior que ele, e de quem Jaime de alguma maneira também cuidava, apesar de sua nova fragilidade. E também, com o passar dos dias, começamos a escutar sua voz, cada vez mais nítida, cada vez mais parecida com a de Jaime, cada vez mais animada, com mais vontade de sair de lá. Em casa, já não sabíamos o que inventar para brincar com Amaru, que agora sempre usava uma capa e a quem chamávamos de menino morcego do coronavírus. Apesar da sua pouca idade, já sabe perfeitamente por quais lugares da casa pode ou não voar para estar a salvo.

Uma das coisas mais terríveis de uma doença contagiosa é a impotência de quem cuida: aprendemos a consolar sem tocar, sem falar de perto, quase com o olhar, com gestos sutis, invisíveis, que, em um primeiro momento, podem parecer frieza e rejeição, mas são exatamente o contrário.

Ontem os médicos do 12 de Outubro lhe deram alta, cinco dias depois da primeira noite infernal. Foi trazido pelos mesmos astronautas que o levaram em uma ambulância, mas, ao chegar em casa, o ET havia recuperado a cor. Está conosco, com seus filhos, e lhe restam ainda duas semanas de remédios e quarentena, de confinamento dentro do confinamento. Como receber alguém que você ama tanto e que temeu perder sem abraçá-lo, sem se fundir nele, sem conversar longamente deitados na cama? Não sei, não sei como conseguimos. São coisas que só acontecem no vale da enfermidade, as novas regras do jogo que você aprende a jogar a contragosto.

Quando chegou, já havíamos dividido a casa em duas, sistematicamente organizada, com turnos e normas estritas para os mínimos espaços comuns. Demos-lhe bolsas, sabonete e desinfetante, como quem recebe com flores e balões. Não tiramos as balaclavas. Aprendemos a nos acalmar para triunfar. Mandei-lhe uma mensagem: “Nestas duas semanas, vou amá-lo assim, quero que sinta esta parte do meu amor, vamos nos cuidar ferozmente”. O amor agora é a desinfecção. O amor é esse prato que não se dá na mão. O amor se espraia de estranhas maneiras na fronteira entre os saudáveis e os doentes. Ontem à noite, Amaru chorou um pouco antes de dormir sem saber por quê. Me disse: “Sabe o que tenho, Gabi? É que me lembrei da noite de Natal.” É o que esperamos, uma noite feliz em que voltemos a quebrar os muros que nos separam.

 

[1] Em recusa à classificação binária de gênero, a autora prefere se referir a Coco, que é trans não binário, como hije, que traduzimos como “filhe”, em vez de hijo ou hija, “filho” ou “filha”. (N. do E.)

 

Gabriela Wiener (Lima/Peru, 1975) é jornalista. Sua originalidade está na força que imprime ao ensaio pessoal, uma escrita difícil de calibrar, que parte das vivências do autor para alcançar a universalidade de uma experiência. Assim ela escreveu livros sobre experiências sexuais (Sexografias, traduzido pela Foz) e sua gravidez (Nueve lunas). Dela, a serrote #32 publicou o ensaio “Três”.

Tradução de Luis Carlos Cabral

 

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