Eu, minhas convicções e um moleque preto com arma na mão
por EVANDRO CRUZ SILVA
Ser agredido por um menino preto e pobre evoca uma questão mais duradoura, estrutural e perniciosa: a defesa dos direitos de “nós negros” serve para mim e para ele?
Ensaio publicado na serrote 44
Sou um escritor e acadêmico negro. Meus interesses intelectuais têm como norte dois pontos que considero complementares: defender os pretos, criticar a polícia. O antirracismo e o abolicionismo penal permeiam meus estudos, meus ensaios, minha ficção e minha militância. Eu levava tudo isso comigo quando fui surpreendido por um moleque muito preto e muito magro com uma cicatriz no pescoço. Ele apontava seu revólver calibre 38 para minha cabeça: “A mochila, o celular e o relógio”, exigiu. Quando dei por mim, estava sentado na guia da calçada, atônito. Um silêncio ocupou minha mente até ser interrompido pelo verso de uma música: “Cada um cada um, você se sente só”.
A interação durou pouco mais de um minuto. Mas ser agredido por um menino preto e pobre evoca uma questão mais duradoura, estrutural e perniciosa: a defesa dos direitos de “nós negros”, quando enunciada, serve para mim e para aquele moleque preto com uma arma na mão? Entre o intelectual e o assaltante, temos dois jovens negros brasileiros e dois projetos políticos de difícil acomodação. No drama característico dos episódios de violência, a pretensão de uma “classe média negra” forjada pelo acesso ao ensino superior se confrontava com o mundo do crime.
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Não reagi bem ao assalto. Contrariando o bom senso, empurrei o garoto e tentei acertá-lo com um soco ridículo. Caridoso com minha vida – ou apenas atordoado –, ele arrancou minhas coisas de valor e correu. Depois, não parei de pensar sobre como quase causei meu assassinato por causa de um celular e um relógio, como nos versos seguintes da música que ficou em minha cabeça: “Tem mano que te aponta uma pistola e, fala sério,/ Explode sua cara por um toca-fita velho/ […] Sem dó e sem dor, foda-se sua cor”. Em alguma esquina entre minha masculinidade ferida e a perda de meus bens, eu desejava coisas horríveis ao meu assaltante.
Depois, fiquei paranoico. Via perigo em todo lugar e me assustava com a presença de qualquer pessoa desconhecida, preta ou pobre. Adotei comportamentos que eu mesmo creditaria a uma “classe média branca” caricata e demofóbica. Me senti patético e desprezível, como se aquela violência revelasse algo vergonhoso: eu era, na verdade, mais “classe média” do que “negro”. Passado o trauma, percebi que naquele caso a obra dos Racionais MC’s era uma saída possível para minhas inquietações.
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A música que cito aqui é “Capítulo 4, versículo 3”, terceira faixa de Sobrevivendo no inferno, quarto álbum de estúdio dos Racionais, lançado em 1997. O rap começa com uma pregação de Primo Preto, vocalista de outro grupo musical periférico da época, o SP Funk. A batida forte de um sino acompanha a declamação de Preto, como se marcasse uma profecia sagrada:
60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras
Nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros
A cada quatro horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo
“Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente”, diz ele, encerrando seu testemunho e dando lugar ao vocal de Mano Brown. “Minha intenção é ruim, esvazia o lugar”, ele anuncia numa voz grave, acompanhada por um sample de “Slippin’ into Darkness”, do War, grupo de funk dos anos 1970. Até hoje consigo citar cada verso dos oito minutos e sete segundos da música. Com frequência uso a composição de Brown para organizar os acontecimentos de minha vida, como se minha biografia e a crônica dos Racionais MC’s se confundissem. No episódio do assalto, suas letras me ajudaram a entender o que o tornava tão inquietante: mesmo que eu o visse como “um de nós”, aquele moleque preto com uma arma na mão era meu inimigo de classe.
Lançamento da serrote 44 com Evandro Cruz Silva e Juliana Borges, na Livraria Tamarindo, São Paulo, 23.7.23
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Cresci na periferia da Baixada Santista, um lugar marcado pela violência. Vi uma arma pela primeira vez dentro da sala de aula – um colega adolescente levou um revólver pequeno. O ano era 2005, e uma viatura da Polícia Militar ficava o dia inteiro estacionada em frente ao portão da escola. Nessa época conheci a obra dos Racionais.
Venho de família evangélica, muito resguardada, que via nas “coisas do mundo” um sintoma do pecado. Minha vida se resumia a escola, igreja e casa. Nunca roubei nada, nunca cheirei cola com meus amigos, nunca briguei nem pulei muro para fugir da escola. O que dava vazão aos meus desejos adolescentes de experimentar a vida na rua eram as composições de Brown, Blue, KL Jay e Edi Rock a que eu assistia no Yo!MTV Raps, programa da emissora dedicado à cultura hip-hop – que na minha época, meados dos anos 2000, era comandado pelo rapper Thaíde, mas já fora apresentado pelo próprio Primo Preto.
Os caminhos da vida, contudo, me levaram a ser alguém que trata das letras de Mano Brown em textos acadêmicos, revistas e livros – e não as vivenciando como aquele garoto negro que me roubou. A aproximação do grupo com o mundo universitário e de classe média não é exclusividade de minha biografia, muito menos via de mão única.1 Nesse sentido, a letra é para mim uma crônica no futuro do pretérito daquilo que eu desejava: a emoção, a violência da vida loka, as armas; e, também, um relato verossímil caso eu adotasse a perspectiva da vítima. Se quando adolescente eu ouvia os raps e me imaginava no papel dos ladrões que narram as crônicas dos Racionais, naquela esquina eu estava do outro lado da história.
Quando “Capítulo 4, versículo 3” invadiu minha cabeça de- pois do assalto, percebi como ela traduzia parte de minha vida e de muitos outros sujeitos negros vindos da periferia. Eu me sentia como o cara com poucas perspectivas que se “humilha no sinal/ Por menos de um real”, mas, efetivamente, tinha me tornado o ator ideal para o papel de “playboy forgado”, “um trouxa”. Diferentemente dos anos 1990, quando a música foi composta, hoje quase 52% dos alunos das universidades brasileiras são negros. E eu, naquela esquina, era um deles.
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O assalto aconteceu em Salvador. Registrei o boletim de ocorrência na Deltur, delegacia da Polícia Civil baiana especializada em crimes contra turistas, deixando as diferenças entre criminoso e vítima ainda mais cintilantes. Lá, encontrei um policial militar que me prometeu “caçar” o moleque. “Essa raça é uma desgraça, vamos caçar”, ele disse. Como parte do registro do boletim, a escrivã de polícia me perguntou com qual raça e cor eu me declarava: “Negro”, respondi. Depois, ela me pediu uma descrição do assaltante: “Também negro”. E se o PM no canto da sala me perguntasse qual era a cor dele, eu diria: “Negro, também”. Mas qualquer observador perceberia que eu, o assaltante e o policial não éramos “negros” do mesmo jeito. Aquela categoria, naquela situação, não resolvia o conflito no qual nos envolvemos.
Para aquele garoto esquálido e com disposição de apontar um revólver para a cara de alguém, eu não seria considerado, pelos seus, como “um de nós”. Eu era um playboy distraído numa esquina qualquer. Para o policial, esbaforido e suado numa delegacia feita apenas para atender crimes praticados contra quem visita a cidade, o moleque retinto a ser capturado não estava entre os seus, e tampouco eu, turista desavisado, era seu igual. Ele, policial, era um trabalhador; o moleque, um inimigo; e eu, uma vítima.
Do meu ponto de vista, a disposição daquele agente de polícia em “caçar” o moleque preto só reforçava minha certeza da falência da polícia como instituição. Eu lembrava mais uma vez da música, me identificava com o narrador no verso “Um dia um PM negro veio embaçar” e, com ele, redobrava minha reprovação: “Eu vejo um mano nessas condições, não dá!”. Naquela noite, contudo, sonhei que a polícia recuperava meus pertences.
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O problema da ascensão negra numa sociedade marcada pela escravidão é questão clássica da sociologia brasileira desde A integração do negro na sociedade de classes. Quando o livro foi concluído, em abril de 1964,2 Florestan Fernandes questionava se o mundo do trabalho urbano pós-abolição seria capaz de absorver as massas negras libertas. A política de cotas, da qual eu e parte significativa da denominada “classe média negra urbana” no Brasil somos beneficiários, é mais uma tentativa de solucionar o problema identificado pelo sociólogo, dessa vez para corrigir o racismo estrutural que distribuiu de maneira desigual a formação superior no Brasil durante o século 20.
A integração do negro na sociedade de classes demonstrava, contudo, que a ascensão social dos negros os exporia a novas discriminações de cunho racista. Essa percepção guiou uma série de pesquisas sobre os desafios da classe média negra, demonstrando o sofrimento de quem ascende sob o estigma de forasteiro entre classes médias majoritariamente brancas. Os exemplos são muitos:3 ainda hoje, negros brasileiros são vistos como intrusos em uma variedade de lugares tradicionais ocupados pelos mais abastados.
Por outro lado, há uma experiência de classe entre os estratos médios da sociedade brasileira que diz respeito ao medo de perder bens adquiridos. Essa insegurança é típica das classes médias em sua condição de vítimas preferenciais tanto das variações e crises econômicas – das quais os ricos estão protegidos por serem ricos – quanto da violência urbana, da qual os ricos se resguardam com carros blindados, seguranças particulares e condomínios de luxo.
Pesquisas como as do grupo coordenado por Gabriel Feltran demonstram de maneira convincente que o conflito violento nas cidades brasileiras não antagoniza apenas pobres e ricos, mas também os muito pobres e as classes médias.4 É natural do encontro desses dois estratos o conflito de classes agudo da realidade brasileira contemporânea. Não é difícil deduzir que essa equação tem grandes chances de produzir uma situação de “negro contra negro” como a que vivi.
As supostas soluções para os problemas da insegurança oscilam entre uma desorientação política, que é a nossa, e um conjunto cruel de reações. Não por acaso, Feltran é autor de uma das contribuições mais originais sobre as relações entre conflito de classes e a ascensão da extrema direita no país. Para o autor, não há uma resposta progressista eficaz para o confronto entre os que nada têm e os que nada tinham e agora têm um pouco. É esse vácuo político que favorece o fortalecimento das propostas da extrema direita contemporânea: milícias, estímulo à violência policial, contratação de segurança privada, condominização e todas as iniciativas de proteção que supostamente resolvem o conflito de classes, criando uma espécie de “revolução jagunça”, termo que remete ao personagem histórico que resolvia conflitos políticos por meio da violência pura.5
Essa configuração assumiria ares revolucionários, segundo o autor, porque tais operadores de violência se emancipam das cadeias de comando e tentam eles mesmos conduzir a política, formular leis e eliminar qualquer restrição ao uso da violência, tal qual o policial que promete “caçar” uma pessoa como forma de promover a segurança pública. É perturbador perceber que um “jagunço” pôde fazer uma oferta dessas a mim, um homem negro e plenamente ciente das desigualdades racistas. E, pior, do ponto de vista da classe média, eu teria motivos para aceitá-la.
Há um risco real de que a consolidação da classe média negra resulte numa sobrepunição das parcelas negras da pobreza extrema. Além de nos expor de mais uma forma ao racismo dos brancos, a integração dos negros à sociedade de classes pode, como aponta Feltran, nos levar a uma solidariedade inter-racial em nome da defesa do patrimônio privado e do punitivismo. Ignorar essa discussão pressupondo uma eventual aliança racial derivada da simples identificação entre os negros é ignorar seu aspecto de classe e abrir caminho para os “jagunços” e suas respostas baseadas na violência pura. A insegurança urbana brasileira, como já ensinava “Capítulo 4, versículo 3”, é real: “A bala não é de festim, aqui não tem dublê”.
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Quase ao final do meu depoimento, outro policial militar chegou à Deltur. Ao lado de um companheiro de corporação, trazia um garoto muito magro e muito preto, tal qual o que me assaltou. Quando me perguntou se aquele era o assaltante, parecia esperar apenas uma confirmação. Com uma palavra minha, um garoto negro e pobre seria preso. Situações como essas são comuns, pessoas negras são alvo frequente de falsas acusações, seja por engano ou vingança. Não era ele, respondi: era mais velho, mais baixo, não tinha a cicatriz, usava roupas diferentes. O policial fez cara de decepção.
Passei mais uns dias em Salvador e segui viagem. Estava na Bahia para explorar a Chapada Diamantina e fazer pesquisa para meu próximo livro. Na estrada, botei para tocar mais uma vez “Capítulo 4, versículo 3”. Prestei atenção ao final do rap, quando o narrador se imagina enveredando pelo mundo do crime: um “moleque de touca” que “engatilha e enfia o cano dentro da sua boca”. Logo depois, muda de ideia: “Mas não…/ Permaneço vivo, prossigo a mística”. Me identifiquei, pois aos 31 anos já contrariei a estatística. Não posso afirmar, contudo, se aquele garoto da esquina do Pelourinho terá a mesma oportunidade de não sofrer violência policial, de não morrer violentamente, de sobreviver no inferno.
NOTAS
1. Nos últimos anos, os Racionais tiveram as letras de Sobrevivendo no inferno, seu disco mais importante, publicadas pela Companhia das Letras. O livro tornou-se bibliografia obrigatória do vestibular da Universidade Estadual de Campinas, onde o grupo deu uma aula aberta em 2022.
2. Na edição do livro publicada pela Contracorrente em 2021, um interessante prefácio de Mário Medeiros atualiza as questões tratadas por Florestan Fernandes, relacionando-as aos problemas brasileiros contemporâneos, e discute a recepção da obra dentro da sociologia brasileira (pp. 9-18).
3. Para uma referência de trabalho acadêmico sobre os dilemas raciais de pessoas negras ascendentes, ver: Angela Figueiredo, Classe média negra: trajetórias e perfis. Salvador: edUFBA, 2012.
4. O volume Stolen Cars: a Journey through São Paulo’s Urban Conflict (2021) reúne pesquisas da equipe coordenada por Feltran em torno da indústria baseada no roubo de carros – da contratação de ladrões freelancers à disputa das seguradoras privadas pelas apólices dos veículos – e demonstra um conflito que geralmente coloca frente a frente um ladrão muito pobre e um dono de veículo de classe média.
5. Para um resumo da formulação de Feltran sobre a explosão de um conflito político com ares totalitários e oriundos dos estratos baixos e médios brasileiro, ver o ensaio “Formas elementares da vida política: sobre o movimento totalitário no Brasil (2013- )”, em especial o ponto “Força centrípeta”. Disponível em: novosestudos.com.br/formas- elementares-da-vida-politica-sobre-o- movimento-totalitario-no-brasil- 2013/#gsc.tab=0.
Evandro Cruz Silva (1992) é sociólogo e escritor. Pesquisa relações entre segurança, violência e desigualdades no Brasil urbano. É autor do livro de contos praia artificial (Patuá) e foi o segundo colocado na 3a edição do Concurso de Ensaísmo serrote com “Orfeu enfrenta o genocídio negro”, publicado na edição 35-36 da revista. Na serrote 38, assinou o verbete “G de genocídio”.
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