A devastação da desigualdade – por Lizzie Wade

A devastação da desigualdade

por LIZZIE WADE

Da peste negra à gripe de 1918, as pandemias do passado mostram por que os grupos marginalizados sempre foram os mais vulneráveis

Este artigo faz parte da série #IMSquarentena, que reúne ensaios do acervo, colaborações inéditas e uma seleção de textos que ajudem a refletir sobre o mundo em tempos de pandemia

Enterro de vítimas da peste negra em Tounai, ilustração de Pierart dou Tielt (c. 1353)

Quando a peste negra chegou a Londres em janeiro de 1349, a cidade já a aguardava com pavor havia meses. Os londrinos tinham ouvido relatos sobre a devastação de cidades como Florença, onde 60% dos moradores haviam morrido da praga no ano anterior. No verão de 1348, a doença alcançara os portos ingleses vinda da Europa continental e começava a avançar devastadoramente rumo à capital. A peste provocava sintomas dolorosos e assustadores, incluindo febre, vômitos, expectoração com sangue, pústulas negras na pele e inchaço dos gânglios linfáticos. A morte geralmente ocorria em três dias.

A cidade preparou-se da melhor maneira possível. Seus dirigentes construíram um enorme cemitério, chamado East Smithfield, para enterrar em campo santo o maior número de vítimas possível– o que, segundo os crentes, iria permitir a Deus identificar os mortos como cristãos no Juízo Final. Incapaz de salvar vidas, a cidade tentava salvar almas.

O impacto foi tão pavoroso quanto se temia: em 1349, a peste negra matou cerca da metade de todos os londrinos; de 1347 a 1351, entre 30% e 60% de todos os europeus. Para os que viveram naqueles tempos terríveis, parecia que ninguém estava a salvo. Na França, que também perdeu quase metade de sua população, o cronista Gilles Li Muisis escreveu que “nem os ricos, os de classe média ou os pobres estavam imunes: cada qual tinha de aguardar a vontade de Deus”.

Entretanto, um cuidadoso estudo arqueológico e histórico de East Smithfield e outros locais revelou que as desigualdades sociais e econômicas moldaram o curso da peste negra e de outras epidemias. “A bioarqueologia e outras ciências sociais demonstraram reiteradamente que esses tipos de crise se desenvolvem ao longo das rachaduras preexistentes em cada sociedade”, diz Gwen Robbins Schug, bioarqueologista da Appalachian State University, que estuda assuntos de saúde e desigualdade nas sociedades antigas. As pessoas que correm o maior risco são com frequência aquelas já marginalizadas – os pobres e as minorias, que sofrem discriminação de uma forma que prejudica sua saúde ou limita seu acesso à assistência médica, mesmo em épocas anteriores às pandemias. Por sua vez, as próprias pandemias tiveram impacto sobre a desigualdade social, por minar ou reforçar as estruturas de poder existentes.

Essa realidade é patente na pandemia da Covid-19. Ainda que tenha contaminado ricos e poderosos, como o primeiro-ministro do Reino Unido Boris Johnson e o ator Tom Hanks, o coronavírus não é um assassino igualitário. Na cidade de Nova York, duramente atingida, a probabilidade de morrer de Covid-19 era duas vezes maior entre cidadãos de origem latina e negros do que na população branca. Os casos têm se concentrado nas áreas mais pobres, onde as pessoas vivem em apartamentos apinhados, não podem trabalhar em casa ou escapar para casas de veraneio.

“As formas pelas quais as desigualdades sociais se manifestam […] colocam certas pessoas numa situação de maior risco”, diz Monica Green, historiadora independente que estuda a peste negra. “Nós todos deveríamos estar aprendendo, de um modo que nunca esqueçamos, por que [a pandemia do coronavírus] aconteceu dessa forma”.

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Quando a peste negra atacou, muitos lugares da Europa já enfrentavam problemas. A virada do século 13 para o 14 foi marcada por um processo de resfriamento e condições climáticas irregulares. As colheitas fracassaram, e a fome grassava por toda parte naquele século, logo antes do surgimento da pandemia. De acordo com os registros históricos, na Grande Fome de 1315-1317, cerca de 15% da população da Inglaterra e do País de Gales morreram. À medida que os salários se reduziam e os preços dos grãos disparavam, mais e mais pessoas eram empurradas para a pobreza. Livros de contabilidade doméstica e registros de pagamentos para empregados nas mansões inglesas revelam que, por volta de 1290, 70% das famílias do país viviam na linha de pobreza ou abaixo dela, definida tal linha como a renda que permitia comprar comida e bens suficientes para não passar fome ou sentir frio. Enquanto isso, os 3% mais ricos recebiam 15% da renda nacional.

Sharon DeWitte, bioantropóloga da Universidade da Carolina do Sul, estuda esqueletos exumados nos cemitérios medievais de Londres para pesquisar como essas épocas de fome e crescente pobreza afetaram a saúde das pessoas. Os que morreram no século anterior à peste negra tendiam a ser mais baixos e com maior probabilidade de morrer jovens do que os mortos nos dois séculos precedentes. Os que viveram no século anterior à peste também tinham mais sulcos nos dentes, devido ao crescimento irregular da dentina, sinal de desnutrição, doenças ou outros fatores de estresse fisiológico durante a infância.

DeWitte não possui amostras das décadas imediatamente anteriores à peste negra, porém crê que os indícios históricos da Grande Fome e dos baixos salários até a década de 1340 tornam provável que tais tendências tenham persistido até o surgimento da pandemia.

Com o objetivo de verificar se uma saúde precária tornava as pessoas mais suscetíveis à peste, DeWitte examinou centenas de esqueletos desenterrados de East Smithfield. Ela calculou a distribuição por idade das pessoas no cemitério, assim como a expectativa de vida daqueles com sinais de estresse em seus esqueletos. Os rigorosos modelos que ela usou mostram que os adultos mais idosos e as pessoas com a saúde já abalada tinham maior probabilidade de morrer durante a peste negra. Contrariando, assim, diz ela, a premissa de que “todos expostos à doença corriam o mesmo risco de morte […], a condição de saúde realmente exercia algum efeito”.

Como os esqueletos não anunciam a classe social de seus ex-donos, DeWitte não pode ter certeza de que qualquer pessoa enterrada em East Smithfield tenha sido rica ou pobre. Mas, naquela época, como hoje, a desnutrição e as enfermidades provavelmente eram mais comuns entre os indivíduos que viviam às margens da sociedade. E os indícios históricos sugerem que os mais ricos da Inglaterra podem ter se saído melhor que a massa crescente de pobres. Aparentemente, algo como 27% dos ricos proprietários de terra da Inglaterra sucumbiram à peste, enquanto a taxa de mortalidade dos agricultores que arrendavam terras ficou entre 40% e 70% em 1348 e 1349 . DeWitte argumenta que, ao afetar negativamente a saúde das pessoas, as condições econômicas desiguais “fizeram com que a peste negra fosse pior do que deveria ser”.

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Quatro séculos depois, e a meio mundo de distância, a varíola atingiu as comunidades dos cheroquis, no que viria a ser o Sudeste dos Estados Unidos. No resto do mundo, a doença – caracterizada pela febre e pela erupção de pústulas – matou cerca de 30% das pessoas infectadas. Mas, entre os cheroquis, o temido patógeno contou com alguma ajuda e, segundo Paul Kelton, historiador na Stony Brook University, se mostrou ainda mais devastador.

Ainda que a falta de imunidade adquirida seja apontada com frequência como a causa da alta mortalidade que várias doenças causaram nos americanos nativos durante o período colonial, as condições sociais amplificaram o impacto dos fatores biológicos. A própria epidemia de varíola no Sudeste coincidiu, em meados do século 18, com ataques mais violentos dos britânicos contra as comunidades dos cheroquis, no que se chamou de Guerra Anglo-Cheroqui. Os britânicos usaram uma estratégia de terra arrasada, incendiando as plantações dos cheroquis e forçando os moradores a abandonar suas casas, provocando assim a  fome e a disseminação da varíola para outras comunidades daquele povo. Os historiadores acreditam que, ao final da epidemia e da guerra, a população dos cheroquis havia caído para o número mais baixo registrado antes ou depois daquele momento. A guerra “criou as condições para a varíola exercer um efeito devastador”, segundo Kelton.

Michael Wilcox, arqueólogo de descendência yuman que leciona na Universidade Stanford, lembra que tragédias similares se repetiram por centenas de anos nas comunidades indígenas de todo o continente americano devido à violência e à opressão dos colonizadores, o que tornava os nativos suscetíveis às epidemias. Povos expulsos de suas terras frequentemente careciam de água potável e dietas saudáveis. Aqueles que viviam nas missões católicas eram forçados a trabalhar pesado e viver em locais densamente povoados, que Wilcox chama de “tubos de ensaio para a propagação de doenças”. Os esqueletos dos indivíduos enterrados ao longo do século 16 nas missões espanholas da Flórida mostram muitos dos sinais de saúde precária anteriores à peste negra que DeWitte encontra nos cemitérios de Londres.

Essa opressão e seus efeitos biológicos “não eram uma coisa ‘natural’, eram algo que poderia ter sido mudado”, diz Wilcox.

Essa afirmação é confirmada pela experiência contrastante das comunidades de americanos nativos que conseguiram escapar por algum tempo ao domínio colonial. Uma delas foi a dos awahnichis, caçadores-coletadores que viviam no vale de Yosemite, na Califórnia. Segundo um relato do final do século 19, um cacique dessa tribo chamado Tenaya falou a um mineiro e voluntário das milícias na década de 1850 sobre uma “doença negra” – provavelmente a varíola – que tinha atacado sua comunidade antes que eles tivessem contato com os colonos brancos. A doença provavelmente chegou com indígenas que fugiam das missões, diz Kathleen Hull, arqueóloga da Universidade da Califórnia em Merced.

Ela realizou escavações no vale e analisou dados sobre o número de aldeias ocupadas, o volume dos resíduos de pedra resultantes da fabricação de ferramentas de obsidiana e a ocorrência de queimadas controladas,  reveladas pela análise dos anéis das árvores. Tais indicadores sugerem que o número de membros da tribo awahnichi sofreu uma redução de 30% por volta de 1800. Antes que a epidemia os atingisse, a tribo contava com apenas 300 membros: a perda de cerca de 90 deles teria sido devastadora.

O cacique Tenaya disse ao voluntário das milícias que, após a doença negra, os awahnichis abandonaram as terras em que haviam se fixado tradicionalmente e se mudaram para o oeste das montanhas da Sierra Nevada, provavelmente para um território ocupado pelos kutzadika’a. Lá, os awahnichis encontraram apoio e, com o tempo, tiveram a oportunidade de recompor sua comunidade com casamentos dentro do grupo. Depois de cerca de 20 anos, retornaram à terra de origem no vale, com a população reconstituída e sua cultura preservada.

As informações de Hull endossam o relato, mostrando que os awahnichis estiveram fora de seu vale por duas décadas. Ela considera a partida e o retorno da tribo, com a retomada de seu estilo de vida, como uma prova de resiliência: “Eles perseveraram apesar daquele evento realmente desafiador”.

A experiência dos awahnichis foi incomum. Na virada do século 20, muitas comunidades indígenas tinham sido forçadas a se deslocar para reservas distantes, com escasso acesso às fontes tradicionais de alimento ou assistência médica básica. Quando outra enfermidade se abateu sobre elas – a pandemia da gripe de 1918 – os indígenas morreram “a uma taxa quatro vezes maior que a do resto da população dos Estados Unidos”, diz Mikaëla Adams, uma historiadora de assuntos médicos da Universidade do Mississippi. “Parte da explicação reside no fato de que eles já padeciam de um estado de saúde muito ruim, além da pobreza e da desnutrição.”

Alguns casos foram particularmente extremos. A nação Navajo, por exemplo, sofreu uma mortalidade de 12% naquela pandemia, enquanto a taxa de mortalidade em todo o mundo foi estimada entre 2,5% e 5%. Algumas comunidades indígenas em áreas remotas do Canadá e do Alasca perderam até 90% da população na pandemia, diz Lisa Sattenspiel, antropóloga da Universidade do Missouri.

Atualmente, durante a pandemia do coronavírus, a nação Navajo registrou mais casos per capita de Covid-19 do que qualquer estado – com exceção de Nova York e Nova Jersey –, embora a taxa de testes nas reservas também seja elevada. O diabetes, um fator de risco para complicações causadas pela Covid-19, é comum na reserva, onde muitas pessoas vivem na pobreza, algumas sem acesso à água corrente.

A pandemia do coronavírus revela os perigos causados por séculos de discriminação e abandono, diz Rene Begay, geneticista e pesquisadora de saúde pública no Anschutz Medical Campus da Universidade do Colorado e membro da nação Navajo. Mas ela recomenda que não se caracterize os dinés – nome tradicional dos navajos – como vítimas passivas. “Já enfrentamos outras pandemias. Podemos vencer esta também.”

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Embora a gripe de 1918 tenha atingido os dinés de forma particularmente intensa, poucas pessoas fora da reserva tomaram conhecimento disso à época. Para os que sobreviveram à pandemia, que matou 50 milhões de pessoas em todo o mundo, a gripe deu a impressão de ser uma assassina indiscriminada, tal como a peste negra 600 anos antes. “Essa incômoda gripe tomou conta da cidade! Brancos, negros, ricos e pobres, estão todos incluídos em sua turnê”, diz um poema em prosa publicado em 1919 no American Journal of Nursing.

Estudos demográficos recentes demonstraram, no entanto, que muitos grupos nos segmentos mais pobres da sociedade, e não apenas os americanos nativos, sofreram de forma desproporcional em 1918. Em 2006, Svenn-Erik Mamelund, demógrafo da Universidade Metropolitana de Oslo, publicou um estudo sobre os censos e atestados de óbito que mostrava ter ocorrido uma taxa de mortalidade 50% maior nas áreas mais pobres de Oslo do que nas mais ricas. Nos Estados Unidos, os mineiros e operários de fábricas morreram em números superiores aos da população em geral, diz Nancy Bristow, historiadora da Universidade Puget Sound.

O mesmo aconteceu com os negros, que já sofriam com taxas assustadoramente elevadas de mortalidade por doenças infecciosas. De acordo com os levantamentos feitos por Elizabeth Wrigley-Field, socióloga da Universidade de Minnesota em Twin Cities, a taxa de mortalidade em 1906 por doenças infecciosas entre os não brancos (à época, sobretudo negros) que moravam em cidades dos Estados Unidos acusava uma proporção chocante de 1.123 mortes por 100.000 habitantes. Em comparação, no pico da pandemia de 1918, a mortalidade causada por doenças infecciosas entre os brancos que viviam nas cidades era de 928 mortes por 100.000 habitantes. A mortalidade entre os não brancos só caiu abaixo desse nível em 1921. “É como se os negros estivessem sofrendo a cada ano a gripe de 1918 dos brancos”, diz Wrigley-Field. “É de fato assombroso.”

A epidemia de 1918 ocorreu em duas ondas, a primeira na primavera e a segunda no outono. De acordo com o estudo feito por Mamelund e um colega em registros militares e de seguros daquela época, os negros foram mais atingidos que os brancos na primeira onda. Posteriormente, na onda mais letal, a do outono, os negros foram infectados a taxas menores, presumivelmente porque muitos já haviam adquirido imunidade. Entretanto, quando adoeciam no outono de 1918, os negros tinham maior probabilidade do que os brancos de desenvolver pneumonia e outras complicações, assim como maior probabilidade de morrer. Para Mamelund, a estatística talvez se deva ao fato de que os negros tinham taxas maiores de comorbidades preexistentes, como a tuberculose.

A discriminação também desempenhou um papel. “Esse período marcou o ponto mais baixo das relações raciais”, diz Vanessa Northington Gamble, médica e historiadora da medicina da Universidade George Washington. As leis segregacionistas no Sul e a segregação de facto no Norte significavam que os pacientes negros da gripe eram tratados em hospitais segregados, só para eles. Como afirma Gamble, essas instituições entraram em colapso, prejudicando os cuidados com as vítimas negras da gripe.

Em meados de maio de 2020, em Washington, D.C., 45% dos casos de Covid-19 e 79% das mortes são de negros. Ainda em abril, os negros representavam mais de 80% dos pacientes hospitalizados por causa da Covid-19 na Georgia, bem como quase todas as mortes em St. Louis. Tendências semelhantes têm sido observadas entre pacientes negros e do sul da Ásia no Reino Unido. E, em Iowa, os latinos representam mais de 20% dos pacientes, ainda que sejam apenas 6% da população.

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Em 1350, cessaram os enterros no cemitério de East Smithfield. Mas segundo Guido Alfani, historiador da economia da Universidade Bocconi,  o impacto da peste negra perdurou graças a suas extraordinárias consequências econômicas. Ao estudar mais de 500 anos de registros de impostos sobre a propriedade e outras formas de riqueza, ele descobriu que a desigualdade econômica caiu fortemente em boa parte da Europa na época da peste negra e após ela.

No reino da Savoia, por exemplo, que corresponde hoje ao noroeste da Itália, a parcela da riqueza detida pelos 10% mais abastados passou de cerca de 61% em 1300 para 47% em 1450, com uma queda dramática durante a peste negra e um declínio mais suave no século seguinte. Alfani detectou tendências similares no sul da França, no nordeste da Espanha e na Alemanha. As análises de contas domésticas e registros das mansões mostram uma tendência igual na Inglaterra, onde os salários reais quase triplicaram entre o começo do século 14 e o final do século 15, acarretando uma melhoria geral dos padrões de vida.

Alfani observa que, devido ao grande número de trabalhadores mortos pela peste, houve uma escassez de mão de obra e um aumento dos salários dos que sobreviveram. E à medida que proprietários morriam, grandes áreas foram postas à venda. Muitos herdeiros venderam terrenos para pessoas que nunca tinham tido condições de ser proprietários, tais como os camponeses que trabalhavam naquelas terras.

A doença não desapareceu depois da peste negra: muitos países, inclusive a Itália e a Inglaterra, sofreram novos surtos. Todavia, essas recorrências parecem ter cristalizado a desigualdade, em vez de reduzi-la. Alfani crê que, quando ocorreram as epidemias subsequentes, a elite havia encontrado formas de preservar suas fortunas, e mesmo sua saúde. “A peste torna-se uma característica das sociedades ocidentais. É algo que as pessoas passam a esperar”, diz ele.

Por toda a Europa, os testamentos foram alterados, de modo que grandes propriedades pudessem ser transferidas para um só herdeiro, em vez de serem repartidas. Os ricos também começaram a fazer quarentenas em suas residências rurais tão logo tinha início algum novo surto. Entre 1563 e 1665, a mortalidade durante as epidemias declinou de forma substancial nas áreas mais ricas de Londres, enquanto permanecia quase igual ou se elevava nas regiões mais pobres e com maior densidade populacional, como mostram os registros de enterros e batismos. Ao longo dos séculos 15 e 16, os médicos italianos “passaram cada vez mais a caracterizar a peste como uma doença dos pobres”, diz Alfani.

Esse preconceito de classe é “observado repetidas vezes na história”, segundo Kelton. Na epidemia de cólera que atingiu os Estados Unidos no século 19, por exemplo, as elites “criaram a ideia de que, por algum motivo, só seriam atingidas as pessoas com uma predisposição para a doença. Quem eram os predispostos? Os pobres, os sujos, os indivíduos de maus hábitos.” Mas não era uma deficiência moral que tornava os pobres vulneráveis: a bactéria Vibrio cholerae tinha mais probabilidade de contaminar os suprimentos de água de baixa qualidade de tratamento.

O legado econômico da gripe de 1918 não é claro. Segundo as informações coligidas pelo economista Thomas Piketty, da Escola de Economia de Paris, a desigualdade econômica na Europa caiu vertiginosamente a partir de 1918, num declínio que perdurou até a década de 1970. Alfani diz, porém, que é impossível desentrelaçar os efeitos da pandemia de gripe daqueles provocados pela Primeira Guerra Mundial. O conflito destruiu bens na Europa, e os ricos perderam acesso a propriedades e investimentos no exterior, o que levou, em seu entender, à redução da desigualdade.

Nos Estados Unidos, aquela pandemia nada fez para mitigar o racismo estrutural. “A pandemia de 1918 pôs à mostra as desigualdades raciais e as profundas deficiências em matéria de assistência médica”, diz Gamble. À época, os médicos e enfermeiros negros tiveram a esperança de que ela iria gerar melhorias. “Mas nada mudou. Depois da pandemia, não houve nenhum esforço público significativo para lidar com as necessidades dos afro-americanos no campo da saúde.”

Será que a Covid-19, ao revelar deficiências similares em muitos países, dará origem a transformações sociais do tipo que a gripe de 1918 não causou? “Quero ser otimista”, diz Bristow. “Depende de nós todos decidir o que acontece agora.”

 

Lizzie Wade é correspondente da revista Science para a América Latina na Cidade do México, onde vive. O texto, que contou com reportagem adicional de Ann Gibbons, foi publicado originalmente com o título “From Black Death to fatal flu, past pandemics show why people on the margins suffer most“, na revista Science, em 14 de maio de 2020. Esta não é uma tradução oficial feita pela equipe da AAAS e não foi revisada pela AAAS. Para assuntos cruciais, favor consultar a versão oficial em inglês publicada pela AAAS.

Tradução de Jorio Dauster

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