Um Brasil em disputa – por Fernanda Miranda

Um Brasil em disputa

por FERNANDA MIRANDA

As estátuas dos dominadores, que não estão apenas nas praças, já começam a cair nas narrativas descolonizadoras de escritoras negras

Este artigo faz parte da série #IMSquarentena, que reúne ensaios do acervo, colaborações inéditas e uma seleção de textos que ajudem a refletir sobre o mundo em tempos de pandemia

Estátua do bandeirante Borga Gato, em São Paulo

 

Eu vi a força tão grande de gotas que rasgam fendas na terra – essa que ontem tinha sido tão dura e seca – e arrancam lascas dum barco que penso em amanhã esculpir.

Marilene Felinto, As mulheres de Tijucopapo, 1982

 

No Brasil pandêmico, o futuro tornou-se uma maré assombrada do Tempo, mas o presente é de carne, e podemos sentir seu peso e sua audácia.  Estamos disputando a narrativa do presente com o arcaico, que se subleva a olhos vistos. Por aqui, as estátuas dos dominadores não estão apenas nas praças, protegidas e tombadas como patrimônio público. Ao contrário, aqui elas caminham, discursam e dirigem a nação. Foram eleitas.

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Monumentos derrocados e estátuas de homens brancos escravizadores caídas ao chão: o presente toma a História como um campo contestado, cuja narrativa está em disputa. Primeiro caem os signos. Quem chorará por eles?

A História é, sobretudo, um dispositivo vivo, pois pertence mais ao presente do que ao passado. Principalmente quando essas duas temporalidades são próximas – o que se observa em sociedades que, como o Brasil e os Estados Unidos, viveram o colonialismo e a escravidão.

No nosso caso, estátuas de senhores de escravos, bandeirantes e generais também têm sido constantemente depostas, ainda que, pelo menos até agora, não necessariamente nas ruas.

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Movidos por um natural sentimento de solidariedade humana e pelo orgulho de sua raça, os negros se mantiveram altivos, indiferentes, revelando um estranho destemor que não passou despercebido ao senhor da casa-grande. O coronel percebeu que não poderia insistir. Ficou petrificado, sentindo que os negros o envolveram subitamente num círculo estreito, encurralando-o. O medo dominara-o. Não tinha coragem de encarar os escravos. Furtava-se a olhá-los. A custo se mantinha de pé. Os braços cruzados sobre o peito, a cabeça baixa, o olhar comprido vagueando sobre o assoalho. A respiração lenta, pausada, quase imperceptível. […] [diz o padre]Coronel, a situação é grave. Bem mais grave do que o meu amigo supõe. Os escravos das fazendas de São Sebastião do Paraíso estão todos revoltados com o tratamento que vêm recebendo. […] Estes fatos, associados aos movimentos abolicionistas, agora mais intensos no norte e na corte, estão excitando os negros da redondeza à revolta. Há uma conjura tramada por uns negros mais audaciosos, visando ao extermínio dos brancos, enquanto outros, que são os verdadeiros chefes, querem apenas desmantelar a nossa economia, fugindo para as serras, onde se organizam em quilombos. Em linhas gerais, é esta a situação, meu caro amigo. Como vê, o momento é grave, não podemos brincar com fogo. Todo cuidado é pouco.” (Negra Efigênia, paixão do senhor branco, Anajá Caetano, 1966)

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A retomada de posse da História é um procedimento epistemológico, estético e político que as autorias negras no Brasil têm realizado de forma consistente, assim como ocorre em outras partes do mundo – visto que essa retomada também inscreve marcos imaginativos que ampliam os limites nacionais e os conecta num fluxo afro-atlântico transnacional.  Tal posse é pensada como uma gnose da encruzilhada: a que compõe o Tempo, ou melhor, as temporalidades que nos atravessam nesse instante – enquanto sujeitos e enquanto nação, posto que somos hoje um atravessamento do passado (memória) e do futuro imaginado (continuidade). Como diz o provérbio ioruba: “Exu matou um pássaro ontem com a pedra que atirou hoje”.

Tão antigo quanto o Brasil é a disputa por narrativas que o constitui. Algo que talvez esteja mais visível hoje, na era das fake news e seus derivados, mas que permeia a História e a literatura desde sempre. Nessa disputa, de um lado se ostenta a ideia de uma nação cordial, harmônica, morena, da democracia racial, do jeitinho, da empregada que é “quase da família”, dos eufemismos, do “somos todos iguais”. De outro, se escancara a face violentíssima de um país no qual se vive em plena guerra, no genocídio da juventude negra e periférica ou no que Sueli Carneiro chama epistemicídio, que fundamenta os apagamentos sistemáticos cerceadores do pensamento negro brasileiro.

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Derrubar monumentos, nas ruas ou nos textos, é uma forma de inscrever na História o revide, que, embora não seja uma novidade, é a marca indelével do tempo presente. É isso o que faz Anajá Caetano no trecho que recortei mais acima de Negra Efigênia, paixão do senhor branco, romance publicado em plena ditadura militar e praticamente desconhecido.

As narrativas que compõem o centro (o cânone) em geral evitam esse procedimento, que consiste em inscrever na ficção a nação em sua colonialidade constitutiva e elaborar a história a partir de uma espiral-plantation – uma forma perceptível de problematizar a passagem do tempo, filtrando aquilo que fica no espaço, que permanece como vestígio de ruínas que resistem, e que emerge à superfície do presente por meio da memória, a contrapelo do esquecimento. O resultado, que recompõe uma nação em sua face violenta, turbulenta e racializada, tem sido um caminho cognitivo muito bem delineado nos romances de autoras negras brasileiras1.

Símbolos, monumentos e atitudes textuais, como formulou Edward Said, estão em permanente disputa no Brasil, são territórios febris e nada pacíficos. Apesar de todo o empenho daqueles que acreditam que vidas negras não importam – o próprio Estado, as necropatroas, o sistema literário –, emergem daqui processos intensos de descolonização da narrativa, que pululam a cada dia em representações no campo das artes, das artes do corpo, da escrita.

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No romance, pode-se observar com clareza todo esse processo. O gênero, que em sua origem europeia está atrelado à enunciação do mundo burguês, surge no Brasil no século XIX como uma plataforma requestada pela elite nacional e permanece, ainda hoje, uma forma altamente nobiliárquica. Desde Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, primeiro romance publicado por uma autora brasileira, em 1859, até Um defeito de cor (2006), de Ana Maria Gonçalves, estima-se que apenas 13 romances de autoras negras foram publicados no país. Mas, de 2006 até o momento, pelo menos 20 outros foram lançados, apontando para um cenário de maior abertura do gênero. Descolonização da narrativa, inclusive nisso.

Mais além, descolonizar a narrativa é o devir negro brasileiro e da literatura brasileira. E é também uma cognição prenhe de presente.

 

NOTAS

  1. Percorri essa questão na tese de doutorado Corpo de romances de autoras negras brasileiras (1859-2006): posse da História e colonialidade nacional confrontada (USP, 2019).

 

REFERÊNCIAS

CAETANO, Anajá. Negra Efigênia: paixão do senhor branco. São Paulo: Edicel, 1966.

CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese de doutorado. Faculdade de Educação/USP, São Paulo, 2005.

FELINTO, Marilene. As mulheres de Tijucopapo. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. 10. ed. Rio de Janeiro: Record, 2014.

MIRANDA, Fernanda Rodrigues de. Corpo de romances de autoras negras brasileiras (1859-2006): posse da História e colonialidade nacional confrontada. Tese de doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP, 2019.

REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. 6. ed. Belo Horizonte, Ed. PUC Minas, 2017.

SAID, Edward. Orientalismo, o oriente como invenção do ocidente. Trad.: Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

 

Fernanda Miranda (1984) é professora, pesquisadora e doutora em letras. Tem se dedicado ao estudo da autoria negra na literatura e às discussões sobre cânone e poder, sistema literário e racismo, descolonização e narrativa. Publicou “Silêncios prEscritos: estudo de romances de autoras negras brasileiras – 1859/2006” (editora Malê, 2019).

 

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