A mortalidade e os velhos mestres – por Peter Schjeldahl

A mortalidade e os velhos mestres

por PETER SCHJELDAHL

Quando voltarmos a vagar livremente pelos museus, os objetos não terão se alterado, mas nós sim – e as vítimas do coronavírus nos acompanharão como fantasmas

Este artigo faz parte da série #IMSquarentena, que reúne ensaios do acervo, colaborações inéditas e uma seleção de textos que ajudem a refletir sobre o mundo em tempos de pandemia

“Las Meninas”, de Velásquez

Teremos tanta coisa para nos dizer quando terminar a crise do coronavírus: em casos como o meu, destilações da solidão. Aos 78 anos, com pulmões ruins, estou entocado com minha mulher na nossa casa de campo até que surja uma vacina e ela se torne disponível. É entediante. (Lembra-se quando lamentávamos a velocidade perturbadora da vida contemporânea?) Na escala das atuais provações humanas, à medida que a pandemia destrói vidas e meios de sustento, o mero isolamento mal atinge o nível de um infortúnio. Trata-se de uma condição ambivalente que, entre outras coisas, nos concede tempo para longas reflexões. Uma das minhas se volta para a arte guardada nos museus por ora fechados, inoperantes sem a presença física dos frequentadores atentos. A meu juízo, as “visitas virtuais” constituem um desserviço, porque oferecem uma experiência estética amorfa e desencarnada, de valor simplesmente espetaculoso. Inacessíveis, as obras assumem em nossa imaginação uma importância que tomávamos como algo dado. Apenas por existirem, elas estimulam associações e geram significados capazes de ressoar nesses tempos de calamidade.

Por que a arte do que chamamos de Velhos Mestres tem um peso emotivo tão maior que o de grande parte dos artistas modernos e de quase todos os nossos contemporâneos? (Situo o divisor de águas entre os flagelos sanguinolentos da guerra que Francisco Goya testemunhou e aqueles que Édouard Manet, por exemplo, tomou conhecimento ao ler em jornais.) Acho que isso se deve à consciência rotineira da mortalidade. As enfermidades pandêmicas e outras inumeráveis causas de morte precoce estavam assustadoramente presentes no dia a dia, mesmo para os artistas que tinham um compromisso com o entretenimento. Considere as pilhas de cadáveres que se acumulam nas tragédias de Shakespeare: catarses do medo universal. Uma prova dessa preocupação é a persistência da religião na arte, que crescentemente adotava temas seculares: histórias da Bíblia, alternando-se com temas espiritualmente densos das mitologias grega e romana. Morte de crianças era uma maldição perpétua. As pinturas da Virgem com o Menino, em especial as de Giovanni Bellini, estão impregnadas da consciência que Maria tem do terrível destino de seu filho. A ideia de que Deus se fez de carne, sofreu e morreu era um consolo persistente: para Maria, por sabê-lo; para nós, por aceitá-lo como uma questão de fé ou, se somos ateus, ao menos por o admirarmos como poesia mítica.

Uma nuance sacramental inefável nas pinturas holandesas do século 17, que se deleitam com a vida cotidiana de pessoas comuns, evoca a impermanência da satisfação humana. Não me refiro à forma explícita com que se apresentava então o memento mori, todos aqueles crânios e aquelas velas derretendo. Falo de uma consciência que é invisível, mas palpável, nas noites de Rembrandt – vem à mente seu autorretrato fatalista na Frick Collection – e nas manhãs de Vermeer, quando uma jovem esposa pode abrir a janela e ser tomada por uma luz do sol delicada e praticamente viva. A despreocupação particularmente intensa de um Boucher ou um Fragonard – as travessuras sensuais do ancien régime na França, imunes a qualquer coisa desagradável, inclusive, Deus me livre!, perturbações sociais – argumenta em favor da vida de forma até exagerada. (Jovens passando o tempo à toa na corte fornecem o único, mas turbulento, drama em O progresso do amor, de Fragonard, uma maravilhosa série de pinturas também exposta na Frick.) Somente com a chegada do século 19, devido às melhorias no saneamento e em outras condições de vida (ao menos para as classes médias em ascensão), a insegurança da morte perdeu intensidade – salvo as devastações episódicas causadas pela tuberculose e a sífilis, as quais, como a aids um século depois, davam a impressão aos que não se contaminavam que selecionavam suas vítimas, e então a morte passava a se tornar um inconveniente na vida de outras pessoas.

Agora, num mundo em que temos tratamentos eficazes para quase tudo, a morte surge como um dado estatístico e subjetivo – excluídos, é claro, aqueles a quem amamos. As pessoas se esvaem, talvez deixando atrás de si o sussurro de  um obituário, uma entre outras tantas notas sobre celebridades. Como a demência impiedosamente faz parte de nossas vidas mais longas, muitos desaparecem antes do ato final. O câncer é um arquipélago de medicina hospitalar, normalizada em todo o país. (Eu tenho câncer, mas a cada dia fico menos consciente dele à medida que a imunoterapia me propicia uma inesperada sobrevida.) O século 20 deslocou nossa percepção de morte em massa para o campo político: guerra, genocídio e outras medidas numéricas do mal, ultimamente representadas pelo terrorismo, pelas drogas e pelas armas. Aqueles que choram por nós são respeitados e bem tratados com terapias otimistas, como um aspecto do zelo pela higiene mental, que remove os cadáveres de cada noite antes da manhã de trabalho. É bem possível que retornemos à complacência superficial depois que passe a atual emergência. (Há o assombroso precedente da pandemia de gripe de 1918-1919, que matou 100 milhões de pessoas, na maioria jovens, porém deixou pouquíssimos resquícios culturais.) No entanto, neste momento estamos todos reunidos sob uma nuvem de tempestade viral, e tudo parece diferente. Há uma mudança, por exemplo, em minhas recordações do quadro Las meninas (1656), de Diego Velázquez, que é a melhor pintura de todos os tempos.

Em dezembro, quando acreditava estar perto do fim, passei quase dois dias inteiros de uma visita a Madri estudando Las meninas. Havia me imposto a tarefa de ignorar todas as teorias consagradas sobre essa obra-prima fartamente analisada e, in loco, desvendar suas intrigantes ambiguidades. É um quadro grande: mais de três metros de altura por cerca de três de largura. Está pendurado no Prado de um modo que permite inspecioná-lo de perto. (A ilusão proporcionada pela pintura de representar um espaço contínuo com o que ocupamos pode fazer com que nos sintamos convidados a entrar nela.) Os enigmas da obra orbitam em torno de saber quem – situado onde, no espaço, e quando, no tempo – está contemplando aquela cena plácida, que captura presenças em tamanho natural, com a instantaneidade de uma fotografia, num grande salão da corte de Filipe IV, rei da dinastia dos Habsburgo, e empregador de Velázquez. Seria o pintor? Mas ele está no quadro, trabalhando numa tela que não vemos, mas que só pode ser Las meninas. Alguns personagens, um pouco surpresos, trocam olhares conosco. (Mas quem são eles?) Há o mistério de um espelho distante, que não mostra o que você supõe que ele deveria mostrar.

Ter a presunção de entender a totalidade é como arriscar uma teoria unificada da relatividade e da física quântica. Embora terminando como comecei – atônito –, eu me parabenizei por haver identificado a prova da maior engenhosidade do artista: um esquema de perspectiva que parte de um ponto de vista não centrado, e sim situado um pouco à direita, na frente de uma anã queixuda e no lado oposto ao da posição retratada de Velázquez, à esquerda. (As especulações de que ele deve ter pintado a cena com a ajuda de um grande espelho exige que se acredite, de modo implausível, que ele e diversos personagens visivelmente destros fossem canhotos.) Fui elevado a um céu estético. Mas, três meses depois, isolado por medo do vírus, estou interessado numa abrupta mudança de atitude com relação ao quadro: de uma euforia duradoura para a melancolia vertiginosa. Las meninas é trágico, a apoteose da confiança e da feliz expectativa que se equilibra precariamente – uma situação que Velázquez não podia conhecer à época, mas que, de algum modo, ele introduziu subliminarmente em sua visão.

Na metade inferior do quadro, está a incrivelmente bela infanta Margarida Teresa, de cinco anos, muito confiante de si e ladeada por duas damas de companhia. Ela é um instrumento de esperança dinástica que se comprovou válido. Ao contrário dos três outros filhos de Filipe IV e sua rainha (e sobrinha) Maria Ana, ela sobreviveu à infância e, ao contrário do irmão mais moço, que também sobreviveu, parece haver escapado dos graves distúrbios genéticos causados pela consanguinidade entre os Habsburgo. (Quando seu irmão ascendeu ao trono como Carlos II, suas deficiências, entre as quais a impotência, levaram ao fim da dinastia na Espanha, em meio à forte queda do país como potência europeia.) Margarida Teresa viveu até a idade madura, até 21 anos, tendo casado por razões diplomáticas aos 15 para se tornar imperatriz do Sacro Império Romano-Germânico e parir quatro filhos, dos quais apenas um passou da infância. Seus proclamados encantos não incluíam o virulento antissemitismo. (Ela encorajou o marido, Leopoldo I, a expulsar os judeus de Viena e a converter a principal sinagoga da cidade numa igreja.) Mas a glória prometida em Las meninas de repente projeta, para mim, uma sombra que prenuncia a morte e o desastre que estão por vir. Jamais haveria outro momento tão radioso na corte espanhola – ou uma pintura tão boa em parte alguma. Trata-se da penúltima das grandes obras de Velásquez. Ele praticamente deixou de pintar para assumir funções mais prestigiosas na corte, morrendo em 1660 aos 61 anos. Filipe IV durou mais cinco anos.

Essa espécie de reavaliação pode acontecer quando os fatos perturbam a forma habitual com que levamos nossa vida. Podemos ser não só arrancados de dentro de nós mesmos – a dádiva do trabalho exitoso em qualquer forma de arte quando estamos no estado de espírito adequado – mas também para fora de nosso tempo, deslocados para um passado específico que parece dissipar, num clarão de inegável realidade, tudo que pensávamos saber. Não é como voltar a uma coisa qualquer. É o equivalente a descobrir que somos uma antecipação, como um resultado incidental de verdades totalmente concretizadas e imutáveis. A impressão passa rapidamente, mas deixa uma marca que é impossível de distinguir de um ferimento. Aqui vai uma predição sobre nossa experiência quando voltarmos a vagar livremente pelos museus: tudo neles será diferente do que nos recordávamos. Os objetos não terão se alterado, mas nós sim, em alguma proporção de bom e de mau. As vítimas do coronavírus nos acompanharão como fantasmas. Até que inevitavelmente comecemos a esquecer, por algum tempo teremos sido lembrados de nossa ligação estreita com o mundo e com o curso do tempo de todos os vivos e mortos. As obras nos esperam como expressão de indivíduos e de culturas inteiras que estão – e permanecem vívidas – anos-luz à frente do que passa por nossa compreensão. Coisas que são melhores que outras coisas, elas podem até nos induzir a considerar, embora apenas por um breve instante, a possibilidade de nos tornarmos um pouco melhores também.

 

Peter Schjeldahl (1942) é crítico de arte da New Yorker, onde este ensaio foi originalmente publicado. É autor de Let’s See: Writings on Art from The New Yorker e Hot, Cold, Heavy, Light: 100 Art Writings, 1988-2018.

Tradução de Jorio Dauster 

Uma resposta para A mortalidade e os velhos mestres – por Peter Schjeldahl

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