Esperança em meio ao desastre – por Rebecca Solnit

Esperança em meio ao desastre

por REBECCA SOLNIT

Em tempos de medo e isolamento, estamos aprendendo que mudanças profundas e positivas são possíveis, diz a escritora americana Rebecca Solnit neste ensaio. Uma das principais vozes do feminismo contemporâneo, ela critica a reação dos líderes de países como Brasil e EUA à pandemia de covid-19. E defende que o caminho para construir o futuro está nos gestos de solidariedade e de defesa dos direitos essenciais observados ao redor do mundo.

Este artigo é parte da série #IMSquarentena, que reúne ensaios do acervo, colaborações inéditas e uma seleção de textos que ajudem a refletir sobre o mundo em tempos de pandemia. 

Médicos da região de Wuhan, epicentro da pandemia de covid-19, celebram o fim do isolamento de mais de 2 meses imposto pelo governo chinês / Foto de Roman Pilipey (EPA-EFE) / 8-4-2020

Os desastres começam de repente e nunca terminam de fato. O futuro, de formas cruciais, não se assemelhará ao passado, mesmo ao passado muito recente, de um ou dois meses atrás. Nossa economia, nossas prioridades, nossas percepções não serão o que eram no começo do ano. Os exemplos específicos são surpreendentes: empresas como a GE e a Ford adaptando seus maquinários a fim de produzir respiradores, a busca desenfreada por material de proteção, ruas antes apinhadas de gente se tornando silenciosas e vazias, a economia em queda livre. Coisas que eram supostamente impossíveis de frear foram paradas, e coisas tidas como inviáveis – ampliar os direitos e benefícios dos trabalhadores, libertar prisioneiros, fazer girar alguns trilhões de dólares nos Estados Unidos – já aconteceram.

A palavra “crise” significa, na linguagem médica, a encruzilhada a que chega um paciente, o ponto em que ele vai tomar o caminho da recuperação ou da morte. A palavra “emergência” deriva de “emergir”, como se a pessoa fosse atirada para fora de suas condições normais e necessitasse com urgência se reorientar. A palavra “catástrofe” vem de uma raiz que significa reviravolta repentina.

Chegamos a uma encruzilhada, emergimos do que presumíamos ser a normalidade, as coisas subitamente viraram de cabeça para baixo. Uma de nossas tarefas mais importantes agora – em particular para nós que não estamos doentes, não trabalhamos na linha de frente e não enfrentamos dificuldades econômicas ou de moradia – é compreender este momento, o que ele pode exigir de nós e o que pode tornar possível.

Um desastre (que originalmente significa “má estrela”) muda o mundo e nossa maneira de vê-lo. Nosso foco se altera, o que é importante se altera. Sob a nova pressão, o que é frágil se quebra, o que é forte resiste, o que era oculto vem à tona. A mudança não apenas é possível, somos varridos por ela. Nós mesmos nos transformamos, uma vez que nossas prioridades se alteram quando a consciência mais intensa da mortalidade nos desperta para nossas próprias vidas e para o valor da vida em si. Até a definição que fazemos de “nós” pode mudar quando somos apartados de nossos colegas de escola ou companheiros de trabalho, compartilhando essa nova realidade com estranhos. Em geral, nosso senso do eu vem do mundo à nossa volta e, neste momento, estamos descobrindo outra versão de quem somos.

No momento em que a pandemia pôs nossas vidas de pernas para o ar, as pessoas a meu redor ficaram preocupadas pela dificuldade em manter o foco e serem produtivas. Suspeito que isso se devia ao fato de que estávamos todos executando outra tarefa, algo mais importante. Quando estamos nos recuperando de uma doença, quando estamos grávidas, quando somos jovens e atravessamos uma fase de rápido crescimento, trabalhamos o tempo todo, especialmente naquelas horas em que aparentemente nada fazemos. Nosso corpo está crescendo, curando-se, funcionando, transformando e operando abaixo do limiar da consciência. Assim como lutamos para dominar a ciência e as estatísticas desse terrível flagelo, nossas psiques estavam fazendo algo equivalente. Estávamos nos ajustando às profundas mudanças sociais e econômicas, estudando as lições que os desastres nos ensinam, nos preparando para um mundo imprevisto.

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A primeira lição de um desastre é que tudo é interligado. Na verdade, os desastres, como descobri ao vivenciar um de porte médio (o terremoto de 1989 em São Francisco) e mais tarde ao escrever sobre outros de grande dimensão (incluindo o 11 de Setembro, o Furacão Katrina, o terremoto Tōhoku em 2011 e a catástrofe nuclear de Fukushima, no Japão), oferecem um curso-relâmpago sobre essas conexões. Em momentos de imensa mudança, vemos com clareza renovada os sistemas – político, econômico, social, ecológico – em que estamos imersos à medida que eles se alteram em nosso redor. Vemos o que é forte, o que é fraco, o que é corrupto, o que importa e o que não importa.

Frequentemente, penso nesses episódios como algo similar ao degelo na primavera: é como se o bloco de gelo se rompesse, com a água voltando a correr e os barcos alcançando lugares inatingíveis durante o inverno. O gelo era o arranjo das relações de poder no chamado status quo – que parece estável e costuma ser considerado imutável por aqueles que dele se beneficiam. Ele então muda de maneira rápida e dramática – o que pode ser excitante ou aterrorizante, ou ambas as coisas.

Aqueles que mais se beneficiam do status quo agora fragilizado sempre estão mais focados em preservá-lo ou restabelecê-lo do que em proteger as vidas humanas – como vimos quando um coro de indivíduos conservadores dos Estados Unidos e os magnatas das corporações insistiram em que, para bem do mercado de ações, todos deviam retornar ao trabalho, uma vez que as mortes daí resultantes seriam um preço aceitável a pagar. Numa crise, com frequência os poderosos tentam ganhar mais poder – como ocorreu dessa vez com o Departamento de Justiça de Trump estudando a suspensão dos direitos constitucionais – e os ricos buscam aumentar suas fortunas: dois senadores republicanos estão sendo investigados por suspeita de terem utilizado informações confidenciais sobre a iminente pandemia a fim de lucrar no mercado de ações (embora ambos neguem ter cometido qualquer delito).

Os estudiosos dos desastres usam a expressão “pânico da elite” para descrever como as classes dominantes reagem quando presumem que os cidadãos comuns vão se comportar mal. Quando as elites dizem haver “pânico” e “saques” nas ruas, em geral definem equivocadamente o que as pessoas comuns fazem por necessidade para sobreviver ou cuidar de seus iguais. Às vezes é sábio se afastar rapidamente do perigo; outras, é altruísta coletar suprimentos para reparti-los.

Tais elites em geral priorizam o lucro e a defesa da propriedade privada em detrimento da vida humana e da comunidade. Nos dias que se seguiram ao grande terremoto que sacudiu São Francisco em 18 de abril de 1906, os militares ocuparam a cidade convencidos de que os cidadãos comuns eram uma ameaça e um foco de desordem. O prefeito emitiu uma ordem de “atirar para matar” contra os saqueadores, e os soldados acreditavam estar restabelecendo assim a normalidade. O que de fato fizeram foi construir contrafogos amadores que contribuíram para espalhar ainda mais os incêndios pela cidade e alvejar ou espancar cidadãos que desobedeciam às ordens (em certos casos, tais ordens implicavam em deixar que suas próprias casas e vizinhanças fossem consumidas pelo fogo). Noventa e nove anos mais tarde, depois do Furacão Katrina, a polícia de Nova Orleans e brancos que integravam grupos clandestinos armados fizeram a mesma coisa, atirando em pessoas negras sob pretexto de defender o direito de propriedade e sua própria autoridade. Os governos local, estadual e federal insistiram em tratar uma população isolada, majoritariamente pobre e negra, como inimigos perigosos que deviam ser contidos e controlados – e não vítimas de uma catástrofe que precisavam de ajuda.

Nos dias que se seguiram ao Katrina, a grande mídia encampou a obsessão com os saques. Os estoques de bens manufaturados em grandes cadeias de lojas pareciam ter mais importância que as pessoas necessitadas de alimentos e água potável, ou que as avós encarapitadas nos telhados. Quase 1.500 pessoas morreram por conta de um desastre que teve mais a ver com um mau governo do que com o mau tempo. As comportas do Corpo de Engenheiros do Exército norte-americano tinham falhado, a cidade não contava com planos de evacuação para os pobres, o governo do presidente George W. Bush não foi capaz de garantir um alívio imediato e eficaz. O mesmo está acontecendo agora. Um membro da oposição brasileira disse do presidente direitista Jair Bolsonaro: “Ele representa os mais perversos interesses econômicos que não se importam nem um pouco com a vida das pessoas. Estão preocupados em manter seus lucros.” (Bolsonaro afirma estar tentando proteger os trabalhadores e a economia.)

O evangelista bilionário que é dono da Hobby Lobby, uma cadeia de material de artesanato, apelou para a orientação divina ao manter seus empregados trabalhando depois que as lojas receberam ordens de fechar. (A empresa agora fechou todas as lojas.) Na Uline Corporation, empresa de Richard e Liz Uihlein, apoiadores bilionários de Trump, uma mensagem enviada aos funcionários de Wisconsin dizia: “Por favor, NÃO falem com os colegas sobre seus sintomas e suas suposições. Ao fazer isso, vocês estão causando pânico desnecessário no local de trabalho.” Tom Golisano, bilionário que fundou e preside a corporação de processamento de pagamentos de salários Paychex, disse: “Os danos causados ao manter a economia paralisada como está podem ser maiores que perder algumas pessoas a mais.” (Depois Golisano disse que seus comentários haviam sido mal interpretados e se desculpou.)

Historicamente, sempre houve titãs da indústria que atribuíram mais importância a essa coisa inanimada que é o lucro do que aos seres vivos. Que ofereceram propinas a fim de operarem sem restrições, que fizeram crianças trabalharem até morrer ou puseram em risco seus operários em fábricas com condições desumanas ou nas minas de carvão. Houve também os que continuaram a extrair combustíveis fósseis e queimá-los apesar do que sabiam, ou se recusavam a saber, sobre as mudanças climáticas. Um dos usos primários da riqueza tem sido sempre permitir a seus controladores que comprem a saída para escapar do destino comum – ou, ao menos, supor que é possível se dissociar da sociedade como um todo. E, enquanto os ricos são com frequência conservadores, conservadores comumente se alinham aos ricos qualquer que seja sua condição econômica.

A ideia de que tudo está conectado é uma afronta para os conservadores, que são chegados à fantasia machista, típica das regiões de fronteira, do “cada um por si”. A mudança climática tem sido para eles um grande insulto – essa ciência que demonstra como aquilo que sai de nossos carros e chaminés molda o destino do mundo no longo prazo, afetando colheitas, o nível do mar, os incêndios florestais e muito mais. Se tudo está conectado, então as consequências de cada escolha, ato e palavra precisam ser examinadas. Mas aquilo que vemos como o amor em ação, eles encaram como uma limitação à liberdade absoluta, liberdade sendo outra palavra para representar a falta total de limites na busca do interesse próprio. Em última instância, uma parcela substancial dos conservadores e líderes corporativos veem a ciência como um estorvo que podem recusar-se a reconhecer. Alguns insistem em ter o direito de escolher as regras e os fatos que desejam, como se elas fossem também meros artigos à venda no mercado livre, passíveis de serem escolhidos segundo caprichos pessoais. “Essa negação da ciência e do pensamento crítico entre os religiosos ultraconservadores agora impregna a resposta americana à crise do coronavírus”, escreveu a jornalista Katherine Stewart no New York Times.

Nossos dirigentes mostraram pouca disposição em reconhecer as assustadoras possibilidades da pandemia nos Estados Unidos, no Reino Unido, no Brasil e em outros países. Como fracassaram em sua função mais crucial, a negação desse fracasso será uma preocupação fundamental para eles. E, embora possa ser inevitável que a pandemia resulte numa quebradeira econômica, ela está também se transformando numa oportunidade para avanços do poder autoritário nas Filipinas, na Hungria, em Israel e nos Estados Unidos – um lembrete de que os problemas maiores ainda são políticos, como também o são suas soluções.

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Quando passa uma tempestade, o ar fica limpo das partículas que obscureciam a paisagem, permitindo com frequência que possamos ver mais longe e com mais nitidez do que em qualquer outra ocasião. Passada esta tormenta, talvez sejamos capazes, como acontece com pessoas que sobreviveram a uma grave doença ou acidente, ver sob uma nova luz onde estávamos e para onde devemos ir. Podemos nos sentir livres para buscar a mudança de formas que pareciam impossíveis enquanto o gelo do status quo estava cristalizado. Talvez possamos ter uma percepção profundamente diferente de nós mesmos, de nossas comunidades, de nossos sistemas de produção e de nossos futuros.

Para muitos de nós no mundo desenvolvido, a mudança mais imediata foi de natureza espacial. Ficamos em casa, aqueles de nós que têm casas, longe do contato com outros. Nos retiramos de escolas, locais de trabalho, conferências, férias, academias de ginástica, saídas ocasionais, festas, bares, clubes, igrejas, mesquitas e sinagogas, de toda a agitação da vida cotidiana. A filósofa e mística Simone Weil escreveu para um amigo distante: “Tratemos de amar essa distância, que é inteiramente feita de amizade, pois aqueles que não se amam não estão separados.” Deixamos de estar juntos para nos protegermos. E as pessoas descobriram maneiras de ajudar os vulneráveis apesar da necessidade de se manterem fisicamente apartadas.

Meu amigo Renato Redentor Constantino, um ativista ecológico, me escreveu das Filipinas, dizendo: “Somos testemunhas hoje de demonstrações diárias de amor que nos trazem à mente as muitas razões pelas quais os seres humanos sobreviveram por tanto tempo. Encontramos épicos de coragem e cidadania a cada dia em nossas vizinhanças, assim como em outras cidades e países, exemplos que nos sussurram que em certo momento as devastações de alguns serão superadas por legiões de pessoas teimosas que recusam os conselhos do desespero, da violência, da indiferença e da arrogância que os que se dizem líderes parecem hoje tão determinados a estimular.”

Quando não estivermos mais tentando nos afastar do alcance de uma enfermidade que se dissemina, me pergunto se iremos repensar como éramos conectados, como nos movimentávamos e como circulavam os bens de que dependemos. Talvez venhamos a apreciar mais o valor dos contatos cara a cara. Talvez os europeus, que cantaram juntos de suas varandas e aplaudiram juntos os profissionais da saúde, bem como os americanos que foram cantar ou dançar em seus conjuntos residenciais nos subúrbios, terão uma sensação diferente de pertencimento. Talvez descubramos um novo respeito pelos trabalhadores que produzem nossos alimentos e por aqueles que os trazem a nossas mesas.

Ainda que seja difícil manter-se em casa, talvez relutemos em retomar nossas correrias, e algo da tranquilidade que hoje experimentamos restará conosco. Poderemos repensar se é conveniente que muitas das coisas mais vitais para nós – remédios, equipamento médico – sejam fabricadas em outros continentes. Quem sabe também poderemos repensar a precariedade das cadeias de abastecimento baseadas no just-in-time. Sempre pensei que a onda de privatização que caracteriza nossa era liberal começou com a privatização do coração humano, o abandono de um sentimento de destino e vínculos sociais em comum. É de se esperar que essa experiência compartilhada de catástrofe inverta o processo. Uma nova consciência de como cada um de nós pertence ao todo e dele depende é capaz de fortalecer a causa das ações climáticas significativas, à medida que aprendamos que a mudança súbita e profunda é afinal de contas possível.

“Ganhando e gastando esbanjamos nossas forças”, escreveu o poeta William Wordsworth pouco mais de 200 anos atrás. Talvez este seja o momento de reconhecermos que há alimentos, roupas, abrigos, serviços de saúde e educação para todos – e que o acesso a essas coisas não deveria depender do emprego da pessoa ou se ganha dinheiro suficiente. Talvez a pandemia também esteja confirmando, para os que já não estavam convencidos, a necessidade de acesso gratuito e universal à saúde e de uma renda básica. Na esteira do desastre, uma mudança de consciência e de prioridades constitui uma força poderosa.

Há uns 12 anos atrás entrevistei a poeta e revolucionária sandinista Gioconda Belli para meu livro sobre desastres, A Paradise Built in Hell [Um paraíso construído no inferno]. É inesquecível o que ela me contou sobre os dias que se seguiram ao terremoto de 1972 em Manágua – pois, apesar da repressão da ditadura, o cataclisma ajudou a revolução. Ela disse: “A gente tinha uma percepção do que era importante. E as pessoas se deram conta de que o importante era a liberdade, era serem capazes de decidir suas vidas e sua representação política. Dois dias depois tínhamos aquele tirano impondo o toque de recolher, impondo a lei marcial. A sensação de opressão, somada à catástrofe, era realmente insuportável. E, uma vez que as pessoas entenderam que a vida delas podia ser decidida numa noite porque a terra resolveu tremer, passaram a pensar: ‘E então? Quero ter uma vida boa e quero arriscar minha vida, porque também posso perder a vida numa noite.’ As pessoas se deram conta de que tinham que viver bem a vida ou ela não merecia ser vivida. É uma transformação muito profunda que acontece durante as catástrofes.”

Constatei várias vezes que a proximidade da morte numa calamidade compartilhada faz com que muitas pessoas vivam com um maior sentido de urgência, menos presas às coisas pequenas da vida e mais interessadas nas maiores, com frequência incluindo a sociedade civil ou o bem comum.

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Escrevi principalmente sobre os desastres no século 20, mas me ocorre uma analogia mais remota: a peste negra, que eliminou um terço da população da Europa. Mais tarde, na Inglaterra, ela gerou revoltas dos camponeses contra os impostos de guerra e limites salariais que, apesar de oficialmente sufocadas, resultaram em mais direitos e liberdades para os trabalhadores do campo e das cidades. Como parte da legislação emergencial aprovada nos Estados Unidos em março de 2020, muitos trabalhadores obtiveram novos direitos em matéria de licença médica. Muitas coisas que nos asseguravam ser impossíveis – como abrigos para os sem-teto, por exemplo – se tornaram realidade em certos lugares.

A Irlanda estatizou seus hospitais, algo que, comentou um jornalista irlandês, “nos disseram que nunca aconteceria e nem podia acontecer”. O Canadá ofereceu quatro meses de renda básica para quem perdeu o emprego. A Alemanha fez mais que isso. Portugal decidiu tratar imigrantes e refugiados como cidadãos plenos durante a pandemia. Nos Estados Unidos, vimos poderosas agitações sindicais e seus resultados. Os empregados da Whole Foods, da Instacart e da Amazon protestaram por serem forçados a trabalhar em condições pouco seguras durante a pandemia. (A partir de então a Whole Foods ofereceu a funcionários contaminados duas semanas de licença com pagamento integral; a Instacart diz ter feito mudanças a fim de proteger trabalhadores e clientes; enquanto a Amazon afirmou estar “obedecendo diretrizes” no tocante à segurança.) Alguns trabalhadores obtiveram novos direitos e aumentos salariais, incluindo os quase meio milhão de empregados dos supermercados Kroger, enquanto os procuradores-gerais de 15 estados determinaram que a  Amazon ampliasse as licenças médicas remuneradas. Essas medidas específicas deixam claro como é possível alterar os esquemas financeiros em todas as nossas sociedades.

Entretanto, as consequências mais significativas dos desastres frequentemente não são imediatas nem diretas. O colapso financeiro de 2008 resultou em 2011 no levante conhecido como Occupy Wall Street, levando a um novo reconhecimento da desigualdade econômica e um novo exame do impacto humano de hipotecas abusivas, empréstimos para estudantes, universidades privadas com fins lucrativos, planos de saúde e muitas outras questões. Por sua vez, isso deu maior visibilidade a Elizabeth Warren e Bernie Sanders, cujas ideias contribuíram para empurrar o Partido Democrata para a esquerda, rumo a políticas que tornarão os Estados Unidos um país mais justo e mais igualitário. As discussões promovidas pelo Occupy e movimentos similares em todo o mundo estimularam uma avaliação mais crítica dos poderes dominantes e maiores reivindicações por justiça econômica. As mudanças na esfera pública têm origem no indivíduo, mas mudanças no mundo em geral também afetam nossa percepção do que somos, nossas prioridades e nosso entendimento do que é possível.

Estamos apenas nos estágios iniciais deste desastre, e nos encontramos também num estranho estado de apatia. É como a trégua de Natal de 1914, quando os soldados alemães e ingleses pararam de lutar por um dia, os canhões silenciaram e os homens se misturaram livremente. A própria guerra sofreu uma pausa. De certo modo, nossos ganhos e gastos têm sido uma espécie de guerra contra o planeta Terra. Desde o surgimento da covid-19, as emissões de carbono caíram fragorosamente. Os relatórios mostram que a atmosfera acima de Los Angeles, Beijing e Nova Délhi está milagrosamente limpa. Os parques em todos os Estados Unidos estão fechados para os visitantes, o que deve ter um efeito benéfico para a vida animal. No último fechamento do governo americano, entre 2018 e 2019, os elefantes-marinhos no Point Reyes National Seashore, ao norte de São Francisco, ocuparam uma nova praia e agora tomam conta dela durante a estação de acasalamento e de nascimentos.

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Uma outra analogia me ocorre. Quando uma lagarta entra em sua crisálida, ela literalmente se dissolve, transformando-se num líquido. Nesse estado, o que era uma lagarta e será uma borboleta não é uma coisa nem outra, e sim uma espécie de sopa viva. Dentro dessa sopa viva estão os discos imaginais que catalisarão sua transformação no inseto alado. Que os melhores entre nós, os mais visionários, os mais abrangentes sejam como os discos imaginais – pois por enquanto estamos na sopa. O resultado de desastres não é predeterminado. É um conflito que tem lugar enquanto as coisas que estavam congeladas e imóveis se tornam abertas e fluidas – prenhes das melhores e piores possibilidades. Estamos ao mesmo tempo parados e num estado de profunda mudança.

Este é também um momento de reflexão profunda para os que passam mais tempo em casa e mais tempo sozinhos, contemplando este mundo que não era previsto. Com frequência dividimos as emoções em boas e más, felizes e tristes, porém penso que elas também podem ser divididas em rasas e profundas, e a busca do que se supõe ser a felicidade é muitas vezes uma fuga das profundezas, de nossas próprias vidas interiores e do sofrimento à nossa volta – e não ser feliz é frequentemente caracterizado como um fracasso. Mas há sentido, assim como dor, na tristeza, no pranto pelos mortos e no pesar – emoções nascidas da empatia e da solidariedade. Se estamos tristes e assustados isso é um sinal de que nos importamos, de que estamos conectados espiritualmente. Se estamos perplexos – bom, o evento é acachapante, e levaremos décadas estudando, analisando, debatendo e refletindo a fim de entender como e por que 2020 de repente nos levou a todos para um novo e pantanoso território.

Há sete anos, Patrisse Cullors escreveu uma espécie de declaração de princípios para o movimento Black Lives Matter [Vidas Negras Importam]: “Dar esperança e inspiração para uma ação coletiva destinada a gerar forças coletivas com o objetivo de alcançar uma transformação coletiva. Enraizada na dor e na raiva, mas orientada para a visão e para os sonhos.” Isso é bonito não apenas porque é esperançoso, não apenas porque então o movimento Black Lives Matter teve início e realizou um trabalho de transformação, mas porque reconhece que a esperança pode coexistir com a dificuldade e o sofrimento. A tristeza que reside nas profundezas e a fúria que queima na superfície não são incompatíveis com a esperança, porque somos criaturas complexas, porque a esperança não é o sentimento otimista de que tudo estará bem aconteça o que acontecer.

A esperança nos diz que, em meio à incerteza com o que nos espera, haverá conflitos que merecem nossa participação, com a possibilidade de vencermos alguns deles. E um dos maiores perigos para essa esperança é o risco de descambar para a crença de que tudo ia bem antes do desastre acontecer, e que tudo de que precisamos é voltar ao que existia antes. A vida comum antes da pandemia já era uma catástrofe de desespero e exclusão para um número muito grande de seres humanos, uma catástrofe climática e ambiental, algo obsceno em termos de desigualdade. É cedo demais para saber o que emergirá desta emergência, mas não cedo demais para começarmos a buscar oportunidades de ajudar a decidir. É isso, creio eu, o que muitos de nós estamos nos preparando para fazer.

 

Rebecca Solnit (1961) é autora de obras fundamentais nos debates contemporâneos sobre feminismo, como Os homens explicam tudo para mim (Cultrix) e A mãe de todas as perguntas (Companhia das Letras). Publicou também A Paradise Built in Hell (inédito no Brasil), uma investigação sobre os efeitos de catástrofes sobre a configuração de comunidades. Este ensaio foi originalmente publicado no jornal The Guardian.

Tradução de Jorio Dauster

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