Alberto Dines (1932-2018)

Alberto Dines (1932-2018)

Em homenagem a Alberto Dines, morto em 22 de maio, aos 86 anos, a serrote republica o texto escrito pelo jornalista para o primeiro número da revista, em 2009: um ensaio breve sobre o cartunista americano Saul Steinberg. Em “Black Friday”, Dines narra como, ao pesquisar os arquivos da diplomacia portuguesa para escrever sua biografia de Stefan Zweig, encontrou documentos decisivos para elucidar um momento até então obscuro da vida de Steinberg: sua atribulada fuga da Europa para os Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial.

serrote apresenta também o vídeo gravado por Dines em 2014, quando Millôr Fernandes foi o autor homenageado da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). No vídeo, Dines lê trechos da obra de Millôr sobre a imprensa (“Opinião pública é aquilo que se publica”), os jornalistas (“Isso que fazemos com as palavras é jornalismo ou prestidigitação?”)  e os intelectuais (“Intelectual é um cara capaz de chamar a galinha em meia dúzia de línguas diferentes, mas pensa que quem põe o ovo é o galo”).

Um dos mais importantes jornalistas brasileiros, Dines dirigiu jornais e revistas no Brasil e em Portugal – entre eles o Jornal do Brasil, do qual foi editor-chefe de 1962 a 1973. Em 1996, fun­dou o Observatório da Imprensa, que nas duas décadas seguintes se firmou como referência no debate sobre a atuação dos meios de comunicação no país. Historiador do jornalismo nacional, publicou, entre outros, os livros Morte no paraíso: a tragédia de Stefan Zweig (Rocco, 2004), Vínculos do fogo (Companhia das Letras, 1992), O baú de Abravanel (Companhia das Letras, 1990) e O papel do jornal (Summus, 1998).

 

 

Black Friday

Por ALBERTO DINES

Sexta-feira, 6 de setembro de 1940. “My most dramatic disaster, my black Friday” [“Meu desastre mais dramático, minha sex­ta-feira negra”], como Saul Steinberg a definiu anos depois.1 Não esperava surpresas, os primos americanos haviam man­dado a passagem e o visto de entrada na República Domini­cana; ele havia providenciado as autorizações para transitar pela Espanha e Portugal, de lá cruzaria o Atlântico.

Finalmente deixaria a Itália fascista, que há dois anos tornara-se irreconhecível com a decretação das leis raciais importadas da Alemanha nazista. Primeiro proibiram que assinasse os desenhos no periódico satírico Bertoldo. Saul Steinberg era um nome impossível de italianizar. Nem repetindo o apóstolo são Paulo, que originalmente era Saulo, Saul.

Preferiu publicar os desenhos anonimamente. Depois, com o agravamento das perseguições, convenceu-se de que era melhor deixar a Europa. Além dos parentes, tinha amigos nos Estados Unidos. Cesar Civita (irmão de Victor, fundador da Editora Abril) era o mais empenhado em apressar o visto dominicano para tirá-lo da Itália antes que fosse tarde.

Impossível imaginar que a escala em Lisboa poderia ser tão desastrosa. Único porto neutro do Atlântico Norte, pas­sagem obrigatória para as ondas de refugiados do nazifas­cismo que procuravam o Novo Mundo. Para piorar, Portugal era uma ditadura fascista dirigida pela figura rancorosa e mesquinha de Antonio de Oliveira Salazar, que acumulava duas funções-chave no Estado Novo: primeiro-ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros. Não era um sanguiná­rio antissemita, apenas não queria muitos judeus no país, sobretudo os de origem centro-europeia, impregnados de ideias socialistas e “degeneradas”. Por isso colocou a polícia política (a PVDE, precursora da famigerada PIDE) contro­lando os diplomatas para evitar generosidades indevidas na concessão de vistos de entrada.

No início de maio de 1940, o cônsul português em Milão (nos telegramas ele se assinava “Magno”) tenta, mas não consegue a autorização para conceder o visto de turista para o artista. Então opta por um visto de trânsito, já que “o indivíduo tem bilhete para a República Dominicana”.2

Steinberg demorou-se a reunir os demais documentos. O visto português foi finalmente carimbado no seu passa­porte em 29 de agosto; no dia 6 de setembro ele embarcou no voo semanal da Ala-Littória que fazia a rota Milão-Bar­celona-Lisboa.

Nenhum problema em Barcelona (àquela altura o dita­dor Franco já esmagara a Catalunha). Falta apenas a escala final em Lisboa, de onde partirá de navio.

Tudo bem? Tudo mal: o avião desce no aeroporto de Sin­tra (o único do mundo que oferecia voos regulares tanto para Londres como para Berlim). Os passageiros são autorizados a desembarcar. Todos, menos Saul Steinberg. “Foi-lhe proibida a entrada no país e obrigado a retornar no mesmo avião.”3

Jamais conseguiu saber o motivo do desastre que mudou radicalmente a sua vida. Nos nove meses seguintes, teve que se ocupar com questões mais urgentes, como sobreviver sem dinheiro, sem emprego, num estado policial em que não havia lugar para judeus e menos ainda para judeus estrangei­ros. Chegou a ser internado no campo de Tortoreto, na costa Adriática, destinado aos expatriados, ciganos e marginais.

Com a ajuda de Cesar Civita e das entidades judaicas internacionais para socorro de refugiados, consegue, em junho de 1941, novos vistos (Espanha, Portugal e República Dominicana), novo bilhete aéreo (Milão-Barcelona-Madri­Lisboa) e a passagem Lisboa-Ciudad Trujillo (como se cha­mava Santo Domingo. Embarca finalmente, no dia 20 de junho de 1941, no ss Excalibur. Só conseguirá enxergar a Estátua da Liberdade no verão do ano seguinte.

Foi por pouco. A alegação oficial portuguesa para negar o primeiro pedido de visto de Steinberg foi estúpida e sim­plória: o pedido teria caducado (o visto fora negado “por ter perdido a oportunidade”).4 Mentira: ainda em 11 de maio de 1940 um memorando confidencial do Ministério dos Negócios Estrangeiros à PUDE, assinado por V. da Cunha em nome do diretor-geral, explica a recusa do visto ao estudante romeno Saul Steinberg, “segundo todas as indi­cações de raça judaica”: “A Romênia se debate com o grave problema que procura activamente resolver, de se liber­tar duma indesejável, numerosa e crescente população de raça judaica”. Fecha o documento a obrigatória saudação salazarista, espécie de “Heil, Hitler” camarada: “A bem da nação”.5 Na sequência, a PUDE circulou, para uso interno, a “interdição de entrada no país” do jovem judeu romeno.6

Steinberg jamais viu estes papeis, morreu sem saber por que foi deportado e quase foi parar numa câmara de gás, longe, muito longe, da Nona Avenida em Manhattan, de onde na famosa capa da New Yorker (29.03.1976) des­cortinou o mundo.

 

Notas

  1. As fontes usadas para este artigo foram o diário de Saul Steinberg, recentemente publicado na Itália por Mario Tedeschini Lalli, “Fuga d’artista. L’internamento di Saul Steinberg in Italia attraverso il suo diario e i suou disegni”. Mondo Contemporaneo, n. 2, 2008, e o arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Lisboa, 2º piso, A/43, M/17.
  2. Telegrama do consulado português em Milão ao Ministério dos Negócios Estrangeiros em Lisboa, 15.05.1940.
  3. Memorando confidencial da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE) ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, Lisboa, 07.09.1940.
  4. Anotação manuscrita no telegrama do consulado português em Milão ao Ministério dos Negócios Estrangeiros em Lisboa, 15.05.1940.
  5. Cópia de memorando confidencial do Ministério dos Negócios Estrangeiros à PVDE, Lisboa, 11.05.1940.
  6. Memorando confidencial da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE) ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, Lisboa, 07.09.1940.

 

 

 

 

 

 

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