Um detalhe na paisagem – por Leonardo Fróes

Um detalhe na paisagem

Por LEONARDO FRÓES

Retirar-se da cidade é, para toda uma linhagem de poetas, mais do que afrontar os excessos de civilização: o que nasce no campo é um outro “eu”, integrado e até diluído em seu entorno

O contraste entre a tranquilidade do campo e a agitação da cidade já se fazia notar na antiga literatura latina, aflorando em poemas de alguns dos seus maiores autores, como Horácio e Virgílio. Na sátira 3 de Juvenal, uma das 16 que são tudo o que resta do poeta, o contraste entre a paz e o caos, tantas vezes esboçado em outras fontes, só pela superfície, é tratado com efeitos dramáticos de ruptura ou cisão definitiva.

Na sátira mordaz em questão, um cidadão chamado Umbrício, que se percebe ser alter ego do poeta, fala ao leitor no instante exato em que vai pondo numa carroça seus livros, seus poucos móveis e demais pertences rústicos para mudar-se para sempre de Roma, ainda então a capital do mundo, e se instalar numa aldeia à beira-mar. Nas palavras do português Francisco Antônio Martins Bastos, que em 1837 traduziu todas as sátiras de Juvenal, o retirante assim se justifica:

Por que hei de em Roma estar? Mentir detesto;
Maus livros não aprovo, nem os leio;
Não sei de astrologia; menos quero
Ou posso predizer de um pai a morte:
Não vejo rãs para extrair venenos;
Não sei levar de adúlteros recados;
Ladrões não aconselho; eis os motivos
Por que de Roma vou sem companhia,
Qual corpo inútil, manco, inerte e coxo.

Muitos outros problemas da antiga Roma, metrópole febricitante e apinhada, atormentavam Umbrício, o sensível porta-voz do satirista, que os relaciona em detalhes, ao longo do texto em versos, entre as várias razões que o motivavam à fuga: a barulhada irritante e persistente, os trancos, empurrões e cotoveladas na desordem das ruas, os frequen­tes incêndios e desabamentos, a arribação cada vez maior de estrangei­ros àquele centro de especulação e comércio, a penúria indigente da ralé, os cacos de louça que voavam por janelas abertas e as imundícies despejadas dos prédios sobre os desprevenidos passantes, que além do mais ficavam à mercê, se ousassem sair à noite, das ameaças e ataques desferidos por arruaceiros e bêbados.

Admite-se que Décimo Júnio Juvenal tenha nascido no ano 60 e morrido por volta de 130 da era cristã. No entanto os dados de sua quase inexistente biografia são deduzidos sobretudo de fracas evidências contidas no próprio corpo das sátiras. Sequer se sabe ao certo se ele fez ou não fez sucesso em vida. Em compensação, Juvenal varou os sécu­los como um dos poetas romanos mais copiados nos mosteiros, nos tempos medievais da reprodução por manuscritos, e certas máximas extraídas de seus versos passaram a ter lugar de destaque no rol uni­versal das citações em latim, como Mens sana in corpore sano [Mente sã em corpo são], Panem et circenses [Pão e circo] e Vitam impendere vero [Dedicar a vida à verdade]. Esta, no século 18, se transformou na divisa de Rousseau.

Entre os séculos 17 e 19, à medida que as cidades ocidentais se expan­diam e o descompasso entre urbanidade e natureza se tornava cada vez mais agudo, multiplicaram-se na Europa, principalmente em inglês e francês, as traduções e adaptações de Juvenal. Uma de suas imitações mais famosas é o poema “London”, publicado sob anonimato em 1738, no qual Samuel Johnson se baseou naquela sátira 3, a do adeus a Roma, para atacar os vícios e as afetações em vigor na capital inglesa, onde o que mais saltava aos olhos, segundo ele, era a opressão dos pobres. Durante o século 20, com os Estados Unidos ascendendo a uma domi­nação global comparável à do antigo Império Romano, muitos poetas americanos preferiram se retirar das cidades, como Umbrício abando­nara sua capital gloriosa, mas tão cheia de riscos e armadilhas, para viver e escrever na paz do campo.

Em 1994, um dos mais conhecidos desses retirantes modernos, Gary Snyder (nascido em 1930), escreve em seu livro de ensaios A Place in Space (1995): “Agora, no final do século 20, as sociedades, em sua maioria, nem de modo mediano estão funcionando. O que então faz a poesia? Há pelo menos um século e meio, os escritores socialmente engajados têm assumido que seu papel deve ser de resistência e sub­versão. A poesia é capaz de revelar o mau uso da língua por detento­res do poder, é capaz de atacar arquétipos perigosos empregados para oprimir e é capaz de expor a fragilidade de falsas e surradas mitologias. Selvagemente, ela pode ridicularizar a pretensão e a pompa e também oferecer – de modos óbvios ou sutis – palavras e imagens mais elegan­tes, mais saborosas, mais admiráveis, mais profundas, mais extáticas e muito mais inteligentes.”

Resistência e subversão foram atitudes de proa quando o jovem Snyder entrou na cena literária, em meados da década de 1950, como um membro destacado da beat generation. Ele e seus parceiros da época, entre os quais Ginsberg, Kerouac e Ferlinghetti, não só lança­ram uivos possantes como também comportamentos anômalos para se opor com veemência aos padrões do “modo americano de vida”. Na esteira dessa dissidência poética, grandes parcelas da juventude e da intelectualidade americana passaram a enviar mundo afora, nas décadas seguintes, mensagens e modelos de novas e esperançosas pos­turas de contestação ao sistema. As canções de protesto, os hippies e a contracultura, as marchas contra as guerras e por direitos civis, os levantes das minorias, o alargamento das visões sobre sexo e o des­pertar da consciência ecológica hoje indicam que os Estados Unidos, no auge de seu triunfo militar e econômico, também criaram e expor­taram as bases de uma poderosa discórdia.

Em 1956, Gary Snyder se distanciou da onda beat para se radicar no Japão, onde se consagrou ao zen-budismo, ao estudo de línguas e tradi­ções orientais, ao desenvolvimento de sua própria poesia e à ordenação de uma imagem de serenidade e prazer que sempre seria associada à sua combativa pessoa. Doze anos depois, quando voltou para os Esta­dos Unidos, esse poeta nascido em São Francisco, mas desde a infân­cia ligado à natureza, por ter sido criado em fazendolas nos estados de Washington e Oregon, refugiou-se no extremo norte da Sierra Nevada, a cordilheira que avança pela Califórnia. Lá, construiu com as próprias mãos sua casa, dedicou-se à vida em família e nunca mais voltou a residir em cidades. Na poesia de Snyder, densa em sentidos e muito ori­ginal pelas formas, e nos ensaios por ele publicados –, que em geral se concentram na necessidade de proteger o planeta, garantir a harmonia entre as espécies que o habitam e valorizar o conhecimento obtido na vivência praticada entre paisagens tranquilas –, o substrato trazido do Oriente se mescla a visões procedentes das culturas autóctones, porque ele também sempre se interessou pelos índios e seus saberes arrancados dos primeiros solos da América.

Entre os poetas americanos que no século 20 trocaram as “luzes da cidade” por uma “residência na terra”, dois contemporâneos de Snyder sobressaíram-se igualmente pelo radicalismo e pela originalidade das opções que fizeram: Wendell Berry (nascido em 1934), que voltou às suas próprias raízes ao tornar-se fazendeiro no Kentucky, e John Haines (1924-2011), que sobreviveu por algum tempo como caçador de peles no Alasca, onde morou por mais de 20 anos. Nenhum dos dois participou de movimentos ou grupos. Ambos agiram motivados por razões e inclinações pessoais.

Berry, além de vários romances e da poesia em linguagem coloquial e sem adornos que o caracteriza, focalizando temas como a impor­tância dos ciclos naturais, das pequenas comunidades e das “coisas silvestres” que o enchiam de admiração e respeito, escreveu também muitos artigos sobre agricultura, publicados originalmente em revis­tas especializadas como New Farm Magazine e Organic Gardening and Farming. Desistiu da carreira de professor, depois de nela ingressar ainda jovem, na Califórnia e em Nova York, para realizar sua obra e assumir em seu estado natal a administração das terras que recebeu como herança. Ativo em lutas pela preservação das matas, inimigo dos agrotóxicos e defensor das plantações em pequena escala, por métodos tradicionais, Wendell Berry se posicionou com vigor, quer em poemas, quer em ensaios, contra os ferozes apetites da guerra e os avanços do industrialismo no campo.

No texto em prosa “An Entrance to the Woods”, incluído em seu livro Recollected Essays 1965-1980 (1981), ele descreve um dos muitos dias em que, acampando feliz e solitário, passou por experiências assim na natureza:

Hoje, como sempre quando eu caminho na mata, sinto a possibilidade, a razoabilidade, a praticabilidade de viver no mundo de um modo que ve­nha a aumentar, e não diminuir, a esperança de vida. Sinto a possibilidade de um amor pela criação, frugal e protetor, que seria inimaginavelmente mais significativo e mais prazeroso do que nossa atual economia destrutiva e perdulária. A ausência de companhia humana, que ontem à noite me dei­xou tão intranquilo, começa agora a ser um alívio para mim. Vou a pé pela mata. Estou vivo no mundo, neste instante, sem a ajuda ou a interferência de qualquer máquina. Posso mover-me sem me referir a nada, a não ser à conformação do terreno e às habilidades de meu corpo. As exigências da locomoção a pé por esta região escarpada anularam todo o supérfluo. Eu simplesmente não poderia ingressar neste lugar e assumir sua quietude se trouxesse comigo os pertences de um chefe de família, de um proprietário de terras etc. Estou reduzido, por ora, à minha irredutível pessoa. Sinto a leveza de corpo que um homem que acaba de perder 20 quilos deve sen­tir. Quando saio da extensão de pedra nua para entrar outra vez embaixo das árvores, tenho consciência de me mover na paisagem como um de seus detalhes.

É por viver há mais de 40 anos no campo que o assunto sobre o qual estou escrevendo me interessa de perto. Como o personagem da sátira de Juvenal, pus meus livros e trastes num modesto veículo, um jipe usado e avariado, mas que avançou por estradinhas de barro que nem constavam do mapa, e me despedi da cidade. Como Snyder e Berry, também me entrego a caminhadas na mata (meu próprio sítio é uma pequena floresta, não uma área de lazer ajardinada) e, do silêncio pro­criador que aí me envolve, recebo a mesma sensação que eles descre­vem de integração com o todo – de eu ser apenas um detalhe da paisa­gem, não uma cabeça que pensa estar sem consolação e perdida diante do mistério do mundo. Idênticas perspectivas parecem ter ocorrido a John Haines, que aborda esse entrosamento em The Stars, the Snow, the Fire (1989), belo livro de memórias sobre sua vida no Alasca, no qual as andanças que ele fazia por vastidões geladas espelham-se em passagens como esta: “Deixo algo de minha condição humana para trás de mim, por um tempo, e em parte me torno árvore, uma cria­tura da neve. O caminho de volta é longo, quase sempre na escuridão. Ali eu enxergo um pouco, não muito, mas o que vejo jamais será des­truído.” Em alguns de meus poemas da mata, essa ideia de integração é tão forte que o próprio eu se dilui em seu entorno, surgindo então uma terceira pessoa que não sei bem mais quem é, como se o prati­cante ou autor da experiência fosse visto de fora por outros olhos ou outros elementos em cena. É o que acontece, por exemplo, no poema “Desencorpando”:

Sentado atento como um totem,
um índio ou um animal que espreita
a dança de movimentos da mata,
pela própria concentração diluído
em tranquilo despetalar de instintos,
não perguntando coisa alguma e se dando
à consciência regeneradora do todo.
Não abrigando sequer um sentimento
no iodo de decomposição que o circunda.
Testemunhando o nascimento das folhas
numa voracidade exaltada.

Em 1947, dois anos após terminar a grande guerra da qual parti­cipou no Pacífico, John Haines comprou uma propriedade no Alasca, onde se fixou com a intenção de dedicar-se à pintura. Nascido na Virgínia, estava então com 23 anos e contava com o aprendizado já realizado em escolas de arte de Nova York e Washington. Mas, ao notar que suas tintas congelavam nas baixíssimas temperaturas do Norte, Haines abandonou a pintura e começou a escrever. Aproveitando as madeiras de uma ponte ruída e desativada que havia por perto, cons­truiu com as próprias mãos a cabana que lhe serviu de moradia no frio. Abriu trilhas, plantou hortas, rachou lenha, teceu redes para pescar salmão, venceu longas distâncias no trenó que seus cães puxavam e, para sobreviver, aprendeu com velhos nativos da região a caçar ani­mais de pelo raro. A cacetadas certeiras na cabeça, porque peles com buracos de tiro valiam menos no mercado, matou arminhos, castores, martas e outros bichos para adorno, que por bobeira se enroscassem nas armadilhas que ele ocultava em locais estratégicos. Viveu sozinho a maior parte do tempo, mas às vezes contou com a companhia de alguma de suas cinco sucessivas mulheres ou de eventuais namoradas, que logo se cansavam do isolamento no ermo ou de seu temperamento difícil. Entre elas, deixou fama de rabugento.

Soa estranho que um artista se especializasse em trucidar seres vivos para obter os recursos que lhe permitiam manter-se e execu­tar uma obra. Mas John Haines deixa claro, em suas memórias, que enfrentar condições tão adversas, como as prevalecentes no Alasca, fazia parte de um plano arquitetado para se livrar dos acréscimos que a civilização tinha imposto à sua índole. Resolvido a descondicionar­-se no campo, a fim de sentir-se livre, espontâneo e autêntico, hercu­leamente ele regrediu às instâncias da nudez mais arcaica, como se pretendesse refazer, corpo a corpo ou carne a carne, todo o aciden­tado percurso do próprio gênero humano. Chegando em casa sono­lento, ao voltar no fim do dia de uma das tantas e exaustivas caçadas que nem sempre tinham êxito, mas por norma o obrigavam a redobrar de esforço e atenção em quilômetros de buscas pelas trilhas nevadas, ele reflete sobre o cansaço que a situação lhe trazia: “Bem por dentro de mim estou feliz. Não é o cansaço mental do pensamento excessivo, das ideias que infinitamente se perseguem umas às outras nesta flo­resta de nervos, ansiedade e medo. É uma espécie de cansaço para se espreguiçar, o sossego e a satisfação do tempo bem gasto e da existên­cia profunda renovada.”

Além dos bichos de pelo que caíam nas armadilhas, sua fonte de renda no comércio então intensivo dos enfeites exóticos, o poeta matou outros a tiros, animais de maior porte, como os alces, para se alimentar de carne, congelada ao ar livre na temperatura ambiente, e dar comida aos cachorros. Ao rememorar essas matanças, que diz ter feito entre emoções conflitantes, no mesmo trecho ele as associa aos horrores por que teve de passar quando serviu na Marinha: “Vi uma guerra, um homem morto flutuando no mar, ao largo de uma ilha do Pacífico, e eu estava lá. Só por minha presença tomei parte em muitas mortes. Não posso pretender estar isento e sem culpa. A justiça nos escapa; a floresta ainda está dentro de nós, com toda sua antiga escas­sez e perigo, e pode ser que nunca venhamos a conhecer um mundo não assombrado por aquela noite do espírito em que o algoz ajusta seu laço e o carrasco afia à perfeição seu machado.” A julgar pelo teor de seus relatos, Haines parece que tendia, naquele empenho por tornar­-se um primitivo do gelo, a encarar a existência como uma forma depurada de prazer que requer algum sacrifício. Cada gesto que o envolve, seja para pôr a cabana em ordem, secando as roupas e lavando as vasilhas, seja para preparar armadilhas ou dissecar os animais abati­dos, a fim de lhes retirar sem rasgões a pele inteira, é minuciosamente descrito como um ritual necessário à maior clareza do espírito. Sua identificação com a vida ao natural foi tão grande que, ao referir-se a uma coruja no poema “If the Owl Calls Again”, ele fala o tempo todo na primeira pessoa do plural (“nós vamos roer os ossos de ratinhos desatentos” etc.), como se o observador que a vislumbra e a rapineira que cumpre seu destino de ave formassem no momento do encontro uma só e mesma entidade.

Se os poetas são “as antenas da raça”, como Ezra Pound propôs, e se “a poesia é o registro dos melhores e mais felizes momentos dos melho­res e mais felizes espíritos”, como escreveu Shelley, em seu vibrante entusiasmo juvenil, os escritores em geral também são, segundo Sartre, a conscience malheureuse da espécie. Antenados, os beats de 1955 pres­sentiram a tempo as grandes mutações sociais do final do século 20, articulando uma escrita libertária que pudesse traduzir seus novos modos de vida, assim como os modernistas brasileiros de 1922 e anos seguintes notaram, premidos entre os ranços coloniais ainda fortes e o incerto imaginar de algum futuro – que a língua literária do Brasil não poderia continuar atrelada aos modelos já mofados que Portugal repassara. Enquanto consciência desditosa, não só os poetas americanos de meados do século, mas também muitos romancistas que marcaram com brilho sua primeira parte, como Sinclair Lewis (1885-1951), William Faulkner (1897-1962) e John Steinbeck (1902-1968), os três contempla­dos com o Prêmio Nobel, criaram obras de cunho dissidente, nas quais uma crítica arrasadora dos valores dominantes nos Estados Unidos é exposta em relevo pleno.

Admite-se que o canto humano, isto é, a poesia em seu estado larvar, como pura expressão individual de deleite, como estímulo cadenciado para corpos reunidos em trabalhos grupais ou como fórmulas propi­ciatórias de encantamento ou magia, tenha surgido nos primeiros tempos da espécie, quando a cisão entre a paz do campo e o estrata­gema defensivo da cidade murada ainda nem ameaçava existir. Ape­sar dessa origem presumida, é fato inquestionável que desde séculos bem recuados da escrita, como versículos do Velho Testamento ou as impiedosas sátiras de Juvenal atestam, a poesia também se ergueu como arma para se contrapor aos excessos que a própria civilização impunha às pessoas.

No Romantismo europeu e em suas ramificações enxertadas em literaturas ainda incipientes, como a nossa, a atração pelo campo inspirou não poucos poetas. “O coração polui-se nas cidades:/ Podem ser bons os homens isolados,/ Mas se o nó social num corpo os liga,/ Meu Deus! tornam-se atrozes!”, escreveu Fagundes Varela (1841-1875), por exem­plo, no poema “A filha das montanhas”. Depois disso, e com ênfase cada vez mais visível durante o século 20, a poesia se manifestou sobretudo como fenômeno urbano. A princípio, muitas vezes ela aderiu às novi­dades e se empolgou com as miragens do progresso. À medida que os problemas sociais se avolumaram, sob os desatinos do autoritarismo e das guerras, as febres do consumismo, os espasmos da violência, os tiques da ostentação e os graves acessos de uma vulgaridade epidêmica, versos de subversão e resistência, para denunciar os rumos nefastos ou “ridicularizar a pretensão e a pompa”, foram no entanto se tornando comuns na expressão poética.

Nas metrópoles motorizadas, o poeta sem função, longe de poder aspirar à integração com o todo, acabaria por sentir-se um marginal alijado. Como tantos confrades citadinos, o americano John Berryman (1914-1972) não encontrou senão um lenitivo, a bebida, para se aliviar de existir como desenquadrado. Trabalhou como professor e passou por três casamentos, mas nem o álcool o libertou da contínua depressão e da angústia. Ele próprio se incumbiu de exterminá-las quando pulou de uma ponte para morrer afogado nas águas do Mississippi. O tema do estranhamento no mundo surge bem orquestrado em seu poema “The Traveller”, que numa série intitulada Clones do inglês (2005) eu traduzi como “O viajante”:

 

Me apontaram na estrada, e aí disseram: “Que estranho é
Este sujeito, com seu jeito de andar de cabeça em pé”.

Me apontando na praia, comentaram: “Por mais que tente,
Este camarada nunca será como a gente”.

Me apontaram quando o guarda, na estação,
Espiou-me várias vezes, pensativo e durão.

Peguei o mesmo trem que outras pessoas pegavam,
Para o mesmo lugar. Não fosse por que me olhavam,
Não fosse por aquelas palavras, seríamos um só todos nós.
Consultei mapas, nada mais. Tentei fixar depois
Os efeitos dos trancos sobre os passageiros,
Vendo nos rostos de um casal, que eu via inteiros,
Sua graça e maldição, seu destino e coragem,
O logro que os deixou na estação em desvantagem.
Quando o trem parou e eles souberam que ali
Sua viagem terminava, eu também desci.

Entre os poetas americanos do campo, Robinson Jeffers (1887-1962) ocupa uma posição singular. Mal terminada a Primeira Guerra Mundial, em 1919, ele foi dos primeiros, no século 20, a se retirar das cidades para viver com sua esposa, a bela Una, numa quase indevassável solidão a dois. Fixado perto de Carmel, na Califórnia, que era então uma aldeola deserta, mas já servindo de refúgio para escritores e artistas desgarrados, o casal teve uma história de companheirismo e amor que Jeffers cele­braria em várias referências escritas. Em 1938, ao prefaciar a primeira edição de uma antologia de sua obra, já bem extensa a essa altura, ele disse que Una nunca tinha visto um poema dos seus antes de pronto, mas que só “pela presença e a conversa”, ao longo de tantos anos, ela era na verdade “a coautora de todos”.

Nascido na Pensilvânia e filho de um pastor presbiteriano, que foi também professor de história bíblica e de línguas antigas, Robinson Jeffers recebeu desde a infância uma educação extremada, condizente sobretudo a formar um príncipe da erudição. Tinha 11 anos quando o pai, rigoroso, o enviou para Leipzig, a fim de que aprendesse alemão enquanto estudava latim e grego. Logo em seguida ele ingressou numa escola na Suíça, onde avançou nos estudos clássicos, aprendendo então francês. Para as duas línguas estrangeiras vivas, e não para o inglês nativo, é que lhe davam para traduzir textos das línguas mortas.

Por volta dos 20 anos, de volta aos Estados Unidos, o estudante apli­cado e inteligente se mostrava tão indeciso com seu capital de saberes que, segundo o biógrafo James Karman, em Robinson Jeffers, Poet and Prophet (2015), ele mais parecia transformado numa “alma perdida”. Fazia um curso após o outro, passando por assuntos tão díspares como a introdução à filosofia e a história do Império Romano, a vida e a obra de Dante e a poesia espanhola, a literatura francesa dos mais recentes períodos e a literatura inglesa dos mais remotos primórdios, mas nunca se fixava num rumo capaz de prepará-lo para exercer profissões. Em 1907, Jeffers entrou em uma faculdade de medicina, que abandonou porém no terceiro ano, trocando-a logo por outra, de engenharia flores­tal, que também não concluiu. Um ano antes, o encontro com Una, sua colega num curso sobre o Fausto de Goethe, foi o farol que o iluminou para se consagrar à poesia.

Alguns dos contemporâneos de Jeffers, ligeiramente mais velhos ou mais novos que ele, como Ezra Pound, T.S. Eliot, Marianne Moore, Wallace Stevens, William Carlos Williams e e.e. cummings, tornaram-se poetas de primeira grandeza, não só pelo valor intrínseco de suas ino­vações modernistas, como também pela repercussão e influência que suas obras tiveram, dentro e fora dos Estados Unidos. Já o solitário de Carmel, que em geral circulava apenas pelas paragens idílicas da região de Big Sur, hoje uma das mais preservadas do país, teve uma carreira totalmente diversa, que o levou de uma ascensão repentina à queda mais fragorosa. Na década de 1930, durante a Grande Depressão pro­vocada pela quebra da bolsa, Robinson Jeffers foi um dos nomes mais famosos da poesia americana, circunstância que sempre se ressalta pelo fato de ele ter sido, em 4 de abril de 1932, capa da Time. No período do pós-guerra, quando a vitória militar coincidiu com a aceitação cada vez maior dos postulados modernistas, sua voz deixou de agradar, seu estilo saiu de moda – sua poesia envelheceu.

As obras mais ambiciosas de Jeffers, alimentadas pela farta erudi­ção que lhe foi incutida em tantos cursos, são imensos poemas narra­tivos, ou romances em versos, aparentados aos “poemas dramáticos” compostos, na era vitoriana, por ingleses como Robert Browning e sua esposa Elizabeth Barrett. Passagens e enredos bíblicos, nas ficções ver­sificadas de Jeffers, entrelaçam-se com situações resgatadas das anti­gas tragédias gregas, da época medieval ou da Europa moderna, para criar conflitos violentos –— traições, incestos, desesperos, estupros, cri­mes passionais e loucuras – que põem em cena personagens rudes que atuam, quase sempre em locais ermos, no dia a dia americano. Sempre oposto ao modernismo, cuja poesia ele afirmou na época que “estava se tornando fútil, fantástica, abstrata, irreal e excêntrica”, Jeffers per­maneceu fiel aos longos versos discursivos e à convicção de que sua literatura deveria “apresentar aspectos da vida que a poesia moderna tinha geralmente evitado e tentar a expressão de ideias filosóficas e científicas”. Seguiu assim na contramão da ironia, da concisão, do dizer espontâneo, dos eventuais hermetismos e da inventividade formal que se impuseram à grande maioria dos poetas, em todo o mundo, como os caminhos mais promissores.

Apesar disso, em numerosos e ardorosos poemas líricos, curtos, não submissos ao encadear teatral das narrações, “ele falou repetida­mente sobre a destruição do ambiente da Terra, advertindo, de modo às vezes rumoroso, quanto aos efeitos da superpopulação, da poluição e da exploração dos recursos naturais”, como o biógrafo James Karman faz questão de lembrar ao defendê-lo. A imersão na natureza levou Robinson Jeffers a formular um conceito, o de inumanismo, imprescin­dível a seu ver para entendermos que o mundo não se fez para nós. Suas opiniões decorriam, quando o conceito tomou forma, da originalidade estampada em seu estilo de vida. Na torre de pedra que ele construiu para si à beira-mar, resolvendo questões práticas com as próprias mãos, depois de tanto trabalhar com a cabeça, o peso dos dissabores humanos lhe pareceu aumentado por um desvio de enfoque. Num texto de 1947, Jeffers escreveu que o inumanismo “se baseia num reconhecimento da beleza surpreendente das coisas em sua totalidade viva e numa aceita­ção racional do fato de que a humanidade não é central nem importante no universo; nossos vícios e crimes hediondos são tão insignificantes quanto nossa felicidade”.

Embora eu goste, em especial, da poesia meio zen de Gary Snyder, não foi pelo valor literário, mas por me sentir atraído por suas expe­riências prosaicas, que ando agora nas pegadas desses poetas do campo. Seguindo-os, creio achar mais sentido em resumir-me a um “detalhe da paisagem” do que em viver amedrontado numa “floresta de nervos” onde eu talvez me perdesse, torturando-me com fabulações egocên­tricas. Pelas trilhas que eles abrem, sinto o infinito prazer de estar no mundo, mas não ser apenas eu. Noto enfim que os trabalhos manuais, longe de me degradarem, me ajudam a manter o necessário equilíbrio entre corpo e mente. Pensando bem, lavar a louça que usamos talvez não seja um suplício.

REFERÊNCIAS

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CUNLIFFE, Marcus. The Literature of the United States. Harmondsworth: Penguin, 1966.

FAGUNDES VARELA, L.N. Poesias completas. Organização de Miécio Táti e E. Carrera Guerra. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957.

FELSTINER, John. Can Poetry Save the Earth? – A Field Guide to Nature Poems. [Com capítulos sobre Robinson Jeffers, John Haines e Gary Snyder.] New Haven: Yale University Press, 2009.

FINCH, Robert e ELDER, John (org.). The Norton Book of Nature Writing. [Contém os ensaios “An Entrance to the Woods”, de Wendell Berry, e “Moments and Journeys”, de John Haines, além de grande variedade de textos em prosa sobre temas correlatos.] Nova York/Londres: W.W. Norton, 1990.

FISHER-WIRTH, Ann e STREET, Laura-Gray (org.). The Ecopoetry Anthology. [Contém poemas de Robinson Jeffers, Wendell Berry, John Haines e Gary Snyder.] San Antonio: Trinity University Press, 2013.

FRÓES, Leonardo. Chinês com sono seguido de Clones do inglês. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

HAINES, John. The Stars, The Snow, The Fire –- Twenty-five Years in the Northern Wilderness: A Memoir. Saint Paul: Graywolf Press, 19 89.

HAMILTON, Ian (org.). The Oxford Companion to Twentieth-Century Poetry in English. [Contém verbetes sobre todos os poetas americanos mencionados.] Oxford/Nova York: Oxford University Press, 1996.

HIGHET, Gilbert. Juvenal the Satirist. Londres: Oxford University Press, 1962.

JEFFERS, Robinson. The Selected Poetry of Robinson Jeffers. Organização de Tim Hunt. Stanford: Stanford University Press, 2001.

JUVENAL. Sátiras completas. Trad. [em versos, de 1837] Francisco Antônio Martins Bastos, intr. de José Pérez. 2. ed. São Paulo: Edições Cultura, 1945.

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KARMAN, James. Robinson Jeffers, Poet and Prophet. Stanford: Stanford University Press, 2015.

SNYDER, Gary. A Place in Space Ethics, Aesthetics and Watersheds. Berkeley: Counterpoint, 2008.

_____. The Practice of the Wild. Berkeley: Counterpoint, 2010.

_____. Turtle Island. Nova York: New Directions, 1974.

WILLIAMS, Gordon. The Nature of Roman Poetry. Londres/Oxford/Nova York: Oxford University Press, 1970.

WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade na história e na literatura. Trad. de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

* Verbetes sobre John Berryman, John Haines, Wendell Berry e Gary Snyder foram também consultados em www.poetryfoundation.org.

 

Poeta e tradutor, Leonardo Fróes (1941) é autor de livros como Língua franca, Sibilitz e Trilha (Azougue), este último uma antologia que organizou a partir de toda sua produção poética. Tradu­ziu, entre outros, Faulkner, Goethe, Swift e Le Clézio. Há mais de 40 anos mudou-se para um sítio em Secretário, a cerca de 100 quilômetros do Rio de Janeiro.

A oposição entre cidade e campo é tema recorrente no trabalho do desenhista e arquiteto irlandês Nigel Peake (1981), autor de livros como In the City (2013) e In the Wilds (2011), no qual foram publicados os desenhos reproduzidos nesta edição.

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