Radicalismo – por Ruy Fausto

Radicalismo

por RUY FAUSTO

A serrote #15, publicada em novembro de 2013, trazia um caderno especial em que intelectuais e jornalistas buscavam decifrar, a quente, o significado político das grandes manifestações populares que tomaram o Brasil em junho daquele ano. No artigo “Radicalismo”, o filósofo Ruy Fausto dizia enxergar nos protestos uma “constelação original” de ideias e atitudes que apontavam para “uma esquerda nova”, “com outro caráter”. Pensador marxista que não poupava críticas à esquerda, ele apontava também equívocos dos protestos e das lideranças que buscavam dialogar com eles, como a tolerância com atos de vandalismo e com regimes autoritários.

Mas, longe de apenas condenar o “radicalismo” dessas atitudes, Fausto fazia no artigo um elogio das posturas “radicais, no melhor sentido”, daquelas manifestações. “Ser radical é buscar soluções novas e corajosas, a contrapelo da mediocridade, do dogmatismo, do carreirismo e das práticas de corrupção vigentes”, escreveu: “Ser radical é recusar a direita e o centro-direita, em cuja política investem as classes dominantes que não querem dizer adeus às desigualdades escandalosas que dominam a vida social-econômica do país. Mas ser radical é também recusar o dogmatismo neototalitário de certa extrema-esquerda; e ainda o semipopulismo duvidoso da esquerda oficial”.

Professor emérito da USP e doutor em filosofia pela Universidade de Paris I, Ruy Fausto morreu no dia 1 de maio, aos 85 anos, em Paris, enquanto tocava piano em sua casa. Foi fundador de revistas como Fevereiro e Rosa e autor de, entre outros títulos essenciais para o debate político brasileiro, A esquerda difícil: em torno do paradigma e do destino das revoluções do século XX (Perspectiva, 2007) e Caminhos da esquerda: elementos para uma reconstrução (Companhia das Letras, 2017).

Em homenagem a ele, republicamos aqui o artigo “Radicalismo”, como parte da série #IMSquarentena, que reúne ensaios do acervo, colaborações inéditas e uma seleção de textos que ajudem a refletir sobre o mundo em tempos de pandemia. 

O filósofo Ruy Fausto / Foto: Renato Parada

O que há de novo na mobilização de junho é que ela reúne três tipos de reivindicações ou posições que raramente andam juntas: 1) postura ética de repúdio a toda sorte de corrupção e de desonestidade administrativa; 2) bandeiras “culturais”, do tipo direito ao aborto, ou legislação favorável à liberdade sexual; 3) exigências que implicam, direta ou indiretamente, redistribuição de renda, e que se abrem para um questionamento da desigualdade econômica brutal que existe no país.

Ora, essas três coisas (ou quatro, caso se acrescente o compromisso com a democracia) dificilmente aparecem juntas. Na esquerda oficial, se é favorável, pelo menos em teoria, à redistribuição de renda, acolhem-se muitas vezes, embora não sempre, as reivindicações progressistas “de sociedade”, mas raramente se leva a sério o tema da honestidade administrativa, que é remetido à direita. A extrema-esquerda quer redistribuir renda e até mais do que isso, e hoje é também, em geral, aberta aos avanços em matéria de costumes; mas em geral dá de ombros diante das questões de moralidade administrativa, além de ser bem pouco exigente em matéria de garantias democráticas. Os “verdes”, pelo menos se pensarmos nas posições da sua figura mais carismática no Brasil, assinam a carta da honestidade, e assumem a luta contra a desigualdade. Em matéria de costumes, entretanto, dizem amém – se ouso empregar o termo – à ética retrógrada do catolicismo tradicional e do protestantismo evangélico. O centro-direita é às vezes avançado em matéria de costumes, e em princípio exigente em termos de luta contra a corrupção, mas não se pode dizer que o empenho pela redução das desigualdades seja o seu forte.

Estamos assim diante de uma constelação original. Ela já seria visível em movimentos anteriores? Vejamos. Em 1968 havia uma bandeira de liberdade de costumes, embora mais limitada do que a que se vê hoje (o feminismo estava quase ausente, por exemplo); e, sem dúvida, lutava-se contra as injustiças econômicas. Porém, a honestidade administrativa, reduzida a simples epifenômeno do capitalismo, não era o que levava os estudantes a sair às ruas. As chamadas “primaveras árabes” foram um fenômeno bem mais complicado, dada a presença dos grupos fundamentalistas entre as forças que se mobilizaram contra os governos autoritários. O exemplo mais próximo das manifestações de junho é provavelmente o das mobilizações dos chamados “indignados”. Tratava-se de movimentos antiautoritários, por uma democracia “real”, e alérgicos à corrupção. Mas há diferenças entre o junho brasileiro e os acontecimentos da Europa.

Isso posto, pela própria originalidade do movimento, apareceram problemas e ambiguidades. Diria que há principalmente duas questões a serem discutidas. Uma é a da caracterização política geral do movimento. A outra é a da violência. Sobre o primeiro ponto: pode-se dizer que as mobilizações foram “de esquerda“? Ou, como pretendem alguns, teriam sido “de direita”? Ou, tudo somado, elas se situariam para além da esquerda e da direita? A partir do que escrevi acima, e do que acrescentarei, eu diria que elas foram majoritária e mesmo essencialmente “de esquerda”. Porém – e aí está o ponto principal – de uma esquerda nova, de uma esquerda com outro caráter. Mas, já passando ao segundo ponto, que se imbrica com o primeiro: qual a relação que o movimento teve, ou deve ter – duas perguntas difíceis de separar – com a prática da violência? Pelo que sei, os “indignados” se posicionaram claramente contra ela. No caso brasileiro, não foi muito diferente, mas em tudo mais complicado.

Houve violências, mas elas parecem ter sido de três ordens: a) respostas à repressão policial; b) violências provocadas, e em parte assumidas, por grupos neoanarquistas; c) violências de marginais. Ao que parece, não houve violência provocada voluntariamente por parte de membros dos grupos que organizaram as manifestações. Entretanto, de evento em evento, o peso das ocorrências que se situam nos casos b e c foi aumentando. Marginais conseguiram, com sucesso crescente, intervir nos protestos. Mas sobretudo grupos radicais, partidários da violência, e assumindo cada vez mais abertamente as suas posições, danificaram veículos, vitrines e caixas eletrônicas.

As ruas de junho, 2013 / Mídia Ninja

É esse último caso que me interessa, em especial, porque nos conduz ao tema do radicalismo. Entrevistados pela imprensa, os responsáveis pelas depredações disseram que se tratava de atos de violência simbólica contra o regime, e assumiram de forma quase teórica a legitimidade daquelas práticas. Uma das entrevistadas disse que era impossível enfrentar o regime pacificamente, e que por isso era preciso recorrer a atos “revolucionários”. Aqui aparece a pergunta: é imaginável supor que esses manifestantes, jovens ou não, acreditem de fato na eficácia das suas ações violentas? Ou estas se fundam em outros motivos? Porque é difícil imaginar, levando em conta a experiência histórica, nacional e internacional, das últimas décadas – para não dizer, dos últimos cem anos –, que alguém possa supor que enfrenta de modo eficaz o regime quebrando vitrines e incendiando automóveis. A ineficácia – no melhor dos casos – desse tipo de iniciativa é patente. Em geral, o resultado é pior do que este: o quebra-quebra desmoraliza o movimento – o movimento pacífico, com o qual ele acaba sendo confundido –, oblitera qualquer possibilidade de apoio mais amplo aos protestos por parte das camadas médias da população, torna fácil a infiltração do movimento por agentes da repressão etc. etc. Os seus autores tentam justificar-se dizendo que não se trata de violência, porque não atacam pessoas, mas coisas. Porém, além do fato de se passar facilmente, de forma voluntária ou não, de uma coisa a outra, é claro que a destruição de veículos, de caixas eletrônicos ou de vitrines entra na categoria das ações violentas. De qualquer modo, é assim que o grande público o percebe – esse grande público sem cujo apoio, hão de convir, manifestações de rua contra o governo têm pouca possibilidade de obter sucesso. Alguns dos violentos, já disse, reivindicam abertamente a condição de herdeiros do movimento anarquista. Ora, se no interior do anarquismo há elementos muito diversos (um Kropótkin tem pouco a ver com um Netcháiev), é difícil fazer um balanço muito positivo do conjunto das práticas anarquistas dos últimos 150 anos. Não é porque a herança marxista se revelou muito problemática que o anarquismo se sai muito melhor. Bakúnin, sua figura mais conhecida, teve o mérito de insistir, contra Marx, sobre o destino muito incerto de um eventual poder revolucionário. Mas ele próprio, Bakúnin, por paradoxal que pareça à primeira vista, era muito autoritário na sua ação, e não foram menos autoritários os anarquistas em outras situações. Poderíamos lembrar que os anarquistas têm corresponsabilidade bem precisa na liquidação das liberdades no período que se segue à chamada Revolução de Outubro (que na realidade foi muito menos revolução do que golpe de Estado). Enquanto foram aliados dos bolcheviques – a aliança não durou mais que alguns meses – tiveram responsabilidade direta em alguns episódios liberticidas, em particular no fechamento da recém-eleita Assembleia Constituinte, peça-chave ­– fruto de eleições honestas, como não houve outras no país – para a constituição de um Estado russo socialista e democrático. Esse é o balanço de pelo menos uma parte considerável do movimento anarquista, que aliás praticou um terror inútil, senão criminoso, nos séculos 19 e 20.

Infelizmente, essa não é a única forma de pseudoradicalismo que se manifesta no nosso meio. Não faz muito tempo, li na internet um artigo de um intelectual ligado ao PT em que se faz um elogio indisfarçado e indisfarçável do regime da… Coreia do Norte! E o autor é um intelectual, e ainda por cima historiador. Um historiador de esquerda tecendo loas à Coreia do Norte em pleno século 21! Se esse historiador se dispusesse a refletir um momento que fosse, se daria conta de que o regime norte-coreano é claramente regressivo em termos de uma história crítica. Se ele tiver presente o que ocorreu no ano de 1789, eu lhe diria que o poder norte-coreano representa, em termos de liberdade e também de igualdade (pelo menos de igualdade política), uma regressão de uns cem anos em relação aos princípios de 1789. E no entanto o historiador reconhece esse regime como socialista, e sua ideologia é legitimada porque estaria a serviço da autonomia econômica e da soberania política do país. Enfim, o regime é implícita ou explicitamente incorporado, como um componente respeitável do campo “progressista”. Trocada em miúdos, a razão desse enorme engano político parece estar em um raciocínio vicioso que, ainda por cima, articula uma premissa de verdade duvidosa. Assim: os maiores adversários do progresso social seriam os americanos, a Coreia do Norte é um dos regimes que mais se chocam com o governo americano, logo a Coreia do Norte encarna bem o progresso social, e por isso merece ser defendida… Acho que não é difícil explicar o que não funciona nesse raciocínio. Sem dúvida, os americanos não são, como dizem os franceses, “des enfants de coeur”, mas no contexto atual eles representam apenas um dos poderes na cena internacional. Poder que não é bom, como não são bons os demais, mas que provavelmente não é o pior deles. Em segundo lugar, há aí um vício de raciocínio. A inferência em questão se funda no princípio do terceiro excluído. Ora, o princípio do terceiro excluído nunca valeu em matéria de política, e hoje vale menos do que nunca. Os inimigos dos nossos – eventuais ­– inimigos não são necessariamente, nem mesmo em geral, nossos amigos. Não há apenas uma força reacionária ou antiprogressista na história contemporânea. Há várias e de conteúdo múltiplo.

O que unifica esses “radicalismos”? Eu diria, simplificando um pouco, que na base deles há uma concepção retilínea das posições políticas. Ou, em outros termos, que se supõe aí que essas posições se dispõem num espaço “euclidiano”. De fato, nessa hipótese, poder-se-ia dizer que, quanto mais “radicalizamos” nossa posição, mais crítica e revolucionária ela será. De fato, nessa hipótese, quanto mais “radical” (sem excluir nenhum meio) for a nossa política, maior será a sua distância em relação à dos nossos adversários. Assim, no tempo da luta contra a ditadura, havia quem supusesse que a ação revolucionária por excelência era, por exemplo, a dos que planejavam lançar automóveis carregados de dinamite para dentro dos quartéis. Foi, aliás, o que alguns tentaram fazer, com os resultados que conhecemos. Os responsáveis pelas violências atuais – que, não esqueçamos, não lutam contra uma ditadura odiosa, como no passado, mas enfrentam um regime democrático, embora arquiduvidoso – dirão, como já mencionei, que eles não atacam indivíduos, mas coisas inertes. Porém a diferença de objeto não é tão grande, além do fato de que, na luta contra a ditadura, as ações visando pessoas foram, na realidade, excepcionais.

A essa concepção de “radicalismo” se opõe uma outra. A que entende que o espaço da política não é euclidiano, mas curvo, e que por isso mesmo não se trata de ir para a esquerda “tão longe quanto possível”. Num espaço curvo, como aquele em que a política efetivamente se apresenta, quem vai “até o fim”, no caminho da esquerda – ou que supõe seja o da esquerda – acaba… na direita, senão na extrema-direita. Isso não é uma hipótese de salão. Essa passagem não ocorreu, muitas vezes, só na primeira metade do século passado, em particular nos anos 1930, mas também depois, nos anos 1990 e no início do nosso século, e continua ocorrendo. Um bom posicionamento político exige outra mirada. Saber que os caminhos da luta política são complexos, e que as soluções “extremas”, como as que apregoam a violência – contra pessoas ou contra coisas – levam a um resultado contrário àquele que é visado. (A propósito, os ativistas pretendem mesmo mudar o país, ou estão em busca de emoções fortes“? Se o objetivo é “viver” estas últimas, eles estão no caminho certo.)

E aqui introduzo o que, principalmente, gostaria de dizer: que as manifestações de junho – refiro-me aos atos pacíficos contra o aumento do transporte em São Paulo, e outros do mesmo tipo, atos que foram perturbados pelos neoanarquistas – representaram, elas sim, autênticas manifestações radicais, no melhor sentido. Por isso mesmo não foram entendidas. Aquelas ações foram radicais pelos seus objetivos, por pontuais que estes possam ter sido no plano mais imediato; foram radicais nos métodos; radicais na atitude geral. Ser radical é buscar soluções novas e corajosas, a contrapelo da mediocridade, do dogmatismo, do carreirismo e das práticas de corrupção vigentes. Ser radical é recusar a direita e o centro-direita, em cuja política investem as classes dominantes que não querem dizer adeus às desigualdades escandalosas que dominam a vida social-econômica do país. Mas ser radical é também recusar o dogmatismo neototalitário de certa extrema-esquerda; e ainda o semipopulismo duvidoso da esquerda oficial. Mas como esse radicalismo pode se manifestar hoje? Precisamente saindo à rua, sem bandeiras político-partidárias, sem violência, lutando por medidas que parecem minúsculas mas a partir das quais se abre um leque de reivindicações maiores, e rejeitando in limine toda concessão aos corruptos ou aos que sonham com a limitação das liberdades públicas. Se não sou otimista demais, foi o que tentaram fazer aqueles jovens (e menos jovens).

Há um texto célebre de Kant em que ele fundamenta sua confiança no progresso ético-político da humanidade – não na Revolução Francesa, mas na atitude de simpatia que tiveram observadores desinteressados com os ideais daquela revolução. (Quanto a ela mesma, Kant, que, a aprecia por um lado, não se furta a denunciar seus horrores.) Se o leitor permite que eu me ponha à sombra imensa do “chinês de Königsberg”, diria que as manifestações de junho, apesar de todas as ambiguidades, me fazem acreditar na possibilidade, embora problemática, do progresso social. Num mundo em que os fundamentalismos religiosos reaparecem com o seu cortejo de violências, em que o capitalismo se manifesta na sua forma mais selvagem, apesar das conquistas obtidas em termos de previdência social e de liberdades, em que do lado da esquerda as coisas vão muito mal – a social-democracia se esgota, a extrema-esquerda não se liberta dos seus antigos fantasmas, o movimento ecológico se mostra frequentemente incapaz de uma política independente e corajosa –, a gente respira ao ver que existe quem se disponha a buscar outros caminhos. De que essas tentativas tenham continuidade, de que elas não venham a ser afogadas pela repressão ou pelos donos da verdade teórica ou prática, de que não se trate de um fogo de palha a extinguir-se com a primeira chuva – disso não tenho certeza. Diria, mesmo: infelizmente, acho mais provável que venha a acontecer o pior. De qualquer modo, entretanto, e guardadas as proporções, os manifestantes de junho, parecem representar – como os espectadores generosos da Revolução Francesa para o grande autor das três críticas – aquele mínimo não só de lucidez mas sobretudo de boa vontade, que manifesta às vezes uma parcela diminuta da população humana, mínimo de uma fragilidade extrema, mas que, num instante pelo menos, aparece como suficiente para que não se perca de vez a confiança no progresso ético e político da humanidade.

Uma resposta para Radicalismo – por Ruy Fausto

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