Janet Malcolm, a narrativa impossível

serrote #7, março 2011

Janet Malcolm, a narrativa impossível

OTAVIO FRIAS FILHO

 

Joe McGinniss, o jornalista que aparece no título e atua como vilão deste livro, certa noite foi à casa do escritor William Styron para entrevistá-lo. Conversaram e beberam até bem tarde, e McGinniss aceitou o convite do anfitrião para pernoitar. Na manhã seguinte, o jornalista acordou com fome. Como não havia mais ninguém na casa e o dono ainda dormia, ele foi à cozi­nha e abriu a geladeira, onde encontrou uma lata de carne de caranguejo.

Styron havia mencionado a lata na véspera. Era uma iguaria cara e rara, reservada para alguma ocasião especial. McGinniss abriu a lata, pegou farinha, molho inglês, tabasco, ovos e creme. Usou todo o caranguejo para preparar e assar uma torta, que serviu ao estupefato Styron quando ele se levantou. Depois do choque inicial, o entrevistado comeu, embora observasse em tom de lamento que “essa carne de caranguejo tem um sabor muito delicado”.

Descrito pelo próprio McGinniss, o incidente é pinçado por Janet Malcolm para servir como uma de suas violentas metáforas sobre a relação entre jor­nalista e entrevistado. A tenra carne de caranguejo é a vida do entrevistado e sua versão sobre os fatos de que participou. A gororoba servida pelo jor­nalista – diz Janet Malcolm –— é consequência de um furto prometeico, seme­lhante ao vandalismo que McGinniss cometeu na geladeira de sua vítima.

Janet Malcolm escreveu oito livros, baseados em labirínticas reporta­gens publicadas na revista The New Yorker. Seu assunto pode ser o legado de escritores como Anton Tchekhov, Gertrude Stein e Sylvia Plath, a dis­puta pelo acesso aos arquivos de Freud ou processos judiciais que causaram comoção nos Estados Unidos, como no caso deste O jornalista e o assassino. O tema subjacente, porém, é sempre o próprio jornalismo.

Não o jornalismo noticioso, dos furos de reportagem obtidos e relatados às pressas, da informação como serviço público de primeira necessidade.

Mas um jornalismo mais extensivo e elaborado, situado já nas vizinhanças da biografia, do ensaio e da crítica literária. Mesmo nessas alturas rarefei­tas, porém, subsiste a relação crucial entre aquele que narra e aquele que é objeto da narração, entre escritor e fonte. A autora argumenta que essa é uma relação de poder em que a fonte é invariavelmente prejudicada.

Nascida em Praga, em 1934, numa família judia levada pelo pai psiquiatra para os Estados Unidos em 1939, Janet Malcolm estudou na High School of Music and Art de Nova York e na Universidade de Michigan. Aos 29 anos, começou a trabalhar na The New Yorker, escrevendo inicialmente sobre decoração, design, compras e fotografia. A partir dos anos 1970 passou a colaborar também na The New York Review of Books. Vive em Nova York.

O jornalista americano Murray Kempton (1917-1997) disse que o traba­lho dos editorialistas – autores de comentários opinativos e judiciosos, em geral não assinados –— é “descer das colinas depois da batalha para matar os feridos”. Nos termos dessa imagem, Janet Malcolm desce para ouvir o que os moribundos têm a dizer. Ela exuma as versões sepultadas nas diversas narrativas, mostrando a intrincada rede de conflitos, acidentes e compro­missos que as engendrou. Publicada em 1990, O jornalista e o assassino é sua principal obra.

Em 1970, Jeffrey MacDonald, um médico então a serviço do exército ame­ricano, foi acusado de matar a mulher grávida e as duas filhas pequenas na casa da família, na Carolina do Norte. As vítimas haviam sido trucidadas a golpes de bastão e faca. Ferido superficialmente na cena do crime, MacDonald alegou que a casa fora invadida por delinquentes drogados e que ele desmaiara ao ser atingido pelos criminosos.

Anos mais tarde, quando o réu aguardava novo julgamento depois de absol­vido num tribunal militar, o jornalista Joe McGinniss o procurou para uma entrevista. MacDonald gostou tanto de McGinniss que sugeriu a ele escrever um livro sobre o caso. O acusado franquearia livre acesso ao repórter, inclusive às reuniões com seus advogados. Parte dos adiantamentos e ganhos com o livro seria repassada pelo autor a MacDonald, a fim de custear a defesa.

O acordo foi cumprido. Durante quatro anos o jornalista conviveu com o réu. Trocavam correspondência e frequentavam-se como amigos. Todas as aparências indicavam que McGinniss confiava na inocência de MacDonald. Fatal Vision foi lançado com estardalhaço em 1983. Mas suas quase 700 páginas eram um libelo contra MacDonald, apresentado do início ao fim sob luz desfa­vorável e enquadrado na categoria psiquiátrica de “narcisista patológico”.

Embora condenado à prisão perpétua, MacDonald, que sempre se decla­rou inocente, processou McGinniss pelo livro. Sustentava que o relato era distorcido e que o autor abusara de sua boa-fé, fazendo crer que escrevia uma narrativa sobre sua inocência enquanto preparava o retrato de um psicopata.

Insinuara-se em sua intimidade a fim de colher aspectos aptos a incriminá-lo. Nos Estados Unidos, o júri tem de deci­dir por unanimidade, o que não aconteceu nesse processo. Antes de ocorrer novo julgamento, McGinniss pagou 325 mil dólares a MacDonald, encerrando a pendência.

Esses são os fatos. Mas Janet Malcolm não está interes­sada neles. Embora seja meticulosa e detalhista quanto a fatos, ela ressalta a dificuldade de saber a verdade sobre qualquer coisa. Pode-se examinar um incidente com máximo cuidado, ela escreve, “tal como os investigadores passaram anos trabalhando com o assassinato da família MacDonald, e no fim não obter nenhuma resposta segura sobre o que ‘realmente’ aconteceu”. O foco de Janet Mal­colm é o emaranhado de versões e a luta de seus autores para fazer a sua prevalecer.

Isso não significa que ela cultive uma atitude de neutra­lidade ou indiferença como narradora. Empenha-se em ler todo material disponível sobre o assunto e registrar em lon­gos e sucessivos encontros o que suas personagens têm a dizer. Mas não é raro que tome partido (no caso deste livro, a favor do “assassino” e contra o “jornalista”), deixando explícito que entre fato e relato se interpõe o filtro da personalidade de quem escreve.1

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