Algumas reflexões sobre a pintura

serrote #7, março 2011

Algumas reflexões sobre a pintura

LUCIAN FREUD


Meu objetivo ao pintar um quadro é estimular os sentidos pela intensificação da realidade. Esse efeito depende da intensidade com que o pintor compreende ou percebe o objeto de sua escolha. Por causa disso, a pintura é a única arte em que as qualidades intuitivas do artista podem ser mais valiosas para ele do que o conhecimento ou a inteli­gência propriamente ditos.

O pintor torna real para as outras pessoas os seus mais profundos sentimentos em relação a tudo o que lhe é caro. Um segredo é revelado a qualquer um que olhar o quadro com a mesma intensidade com que ele foi concebido. Para isso, o pintor deve liberar os sentimentos ou as sensações que guarda e rejeitar tudo aquilo com que já está naturalmente envolvido. Essa autoindulgência é a mesma disciplina que descarta tudo aquilo que não lhe é essencial – e que cristaliza, assim, seus gostos. Afinal, os gostos do pintor devem ser fruto daquilo que, na vida, o deixa obcecado a tal ponto que ele não precisa se perguntar o que lhe cabe fazer na arte. É somente por meio do entendimento completo dos seus gostos que ele se liberta da tendência a encaixar tudo o que vê em uma concepção preestabelecida. Caso não tenha isso sempre em mente, ele vai passar a enxergar a vida pura e simplesmente como material para uma linha artística específica. De modo que vai olhar para algo e se perguntar: “Posso fazer uma pin­tura minha a partir disso?”. E assim sua obra acaba por se degenerar, já que deixa de ser o veículo de suas sensações.

Pode-se dizer que ele acaba cristalizando a própria arte no lugar de seus gostos – afastando a arte da emoção que poderia despertar em outras pessoas.

A obsessão do pintor por seu objeto é tudo de que ele precisa para se sen­tir motivado a trabalhar. As pessoas são impulsionadas a produzir arte não por estarem familiarizadas com o processo, mas por sentirem uma necessi­dade tão intensa de comunicar seus sentimentos em relação a determinado objeto que esses sentimentos se tornam contagiosos. O pintor, portanto, precisa se colocar a certa distância emocional do objeto para deixá-lo se expressar. Caso contrário, se sua paixão transbordar durante o ato da pin­tura, o pintor pode sufocar o objeto.

Os pintores que se recusam a representar a vida e limitam sua lingua­gem a formas puramente abstratas estão reprimindo em si a possibilidade de provocar mais que uma emoção estética.

Os pintores que, em contrapartida, se apropriam da vida como assunto principal, trabalhando com o objeto à sua frente, ou pelo menos com ele sempre em mente, fazem isso para traduzir a vida em arte de forma quase literal. O objeto deve ser observado com muita atenção: assim, dia e noite, o objeto – homem, mulher ou coisa – acaba revelando o todo, sem o qual a seleção em si não é possível. Essa revelação se dá por meio de alguma faceta da vida, ou da falta de vida, por meio de movimentos e atitudes, de cada variação de um instante para o outro. É essa compreensão que pode tornar a arte independente da vida – tal independência é necessária para que a pin­tura, com a intenção de sensibilizar, não apenas lembre a vida, mas inaugure uma vida própria, reflita a vida. Creio que seja necessário um conhecimento total da vida para criar uma pintura independente dela. Quando um pintor tem adoração distante pela natureza – a ponto de não conseguir se aproxi­mar dela –, ele é capaz apenas de copiar a natureza de modo superficial, pois não ousa modificá-la.

O pintor deve pensar que tudo aquilo que vê está inteiramente à dis­posição de seu próprio uso e prazer. O artista que se esforça para servir à natureza é simplesmente um artista que executa. E, levando em conta que o modelo copiado tão fielmente não ficará pendurado ao lado do quadro, que por sua vez ficará lá por si, não tem nenhuma importância saber se aquela é de fato uma cópia fiel. Se a obra vai convencer ou não, depende inteiramente do que está ali por si, do que está para ser visto ali. A função do modelo, para o pintor, deve ser apenas a do ponto de partida para sua catarse. A pintura é tudo o que ele sente por aquilo, tudo o que ele deseja preservar daquilo, tudo o que vale investir naquilo. Se o pintor conseguir colocar no quadro todas as qualidades extraídas do modelo, ninguém poderá ser retratado duas vezes.

A aura emanada por algo ou alguém é tão intrínseca ao objeto original quanto sua própria carne. O efeito produzido pelos modelos no espaço é indis­sociável deles, assim como suas cores ou cheiros. O efeito no espaço de dois indivíduos diferentes pode ser igualmente tão diverso quanto o efeito de uma vela comparado ao de uma lâmpada. Por isso, o pintor deve se preocupar na mesma medida com o ambiente em torno do objeto e com o próprio objeto. É por meio da observação e da percepção da atmosfera que o pintor pode regis­trar o sentimento que – assim ele espera – vai emanar de sua pintura.

Um momento de satisfação plena nunca ocorre durante a criação de uma obra de arte. A promessa desse instante é sentida no ato de criação, mas desaparece à medida que a obra se concretiza. É nesse instante que o pintor percebe que não está fazendo mais do que pintar um quadro. Até então, ele quase ousou esperar que a imagem pudesse ganhar vida. Se fosse diferente, o quadro perfeito seria terminado e, em seguida, o pintor se aposentaria. É essa profunda insuficiência que o faz ir adiante. De modo que o processo criativo se torna essencial para o pintor, talvez até mais importante que o quadro em si. O processo cria, de fato, uma dependência.

 

LUCIAN FREUD (1922) é um dos mais importantes pintores contemporâneos. Nascido na Alema­nha e radicado na Inglaterra, o neto de Sigmund Freud notabilizou-se pela pintura figurativa, frequentemente centrada na figura humana e quase sempre em seus aspectos mais grotescos. Este breve texto, tido como a primeira e única formulação teórica de – um ainda jovem – Freud, aos 32 anos, foi elaborado por ele a partir da transcrição de uma entrevista que concedeu à BBc em 1954. Foi publicado naquele ano na revista Encounter, por ocasião de sua participação na Bienal de Veneza representando a Inglaterra.

Tradução de ALICE SANT’ANNA

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