1966, um ano qualquer
Annus mirabilis é a expressão latina para um ano excepcional, que logo se transforma em marco, farol de uma época. Basta pensar em 1789, 1968 ou 2001 para imaginar livros, aulas, congressos, debates. Antoine Compagnon, titular de Literatura Francesa Moderna e Contemporânea no Collège de France entra no seu sexto ano como professor da instituição máxima do ensino na França dedicando um curso inteiro a 1966, designando-o como annus mirabilis, ou seja, um ano notável, prodigioso, farol. Depois de debruçar-se, tradicionalmente até, sobre Proust e Montaigne, o professor Compagnon está dando um show de criatividade e rigor, confirmando a idéia, pouco ortodoxa e muito verdadeira, de que um curso é tanto melhor quanto o professor caminha sem o apoio das certezas.
A idéia é estimulante mas não inédita. E Compagnon, logo na primeira aula, reconhece o trabalho Hans Ulrich Gumbrecht, alemão que ensina e Stanford e faz constantes visitas ao Brasil e dedicou um livro inteiro a 1926, outro ano de aparente desimportância. Mas é buscando estas margens e periferias que um e outro conseguem traçar a origem de uma época, de uma mentalidade, de uma história. Um e outro são, aliás, professores de literatura, bons o suficiente para entender que o assunto é sério demais para se restringir aos estudos puramente literários.
No dia 22 de fevereiro, assisti uma das aulas de Compagnon, já num segundo anfiteatro do Collège, pelo telão. É que a sala principal lota muito antes do horário. O público, me diz minha companheira de aula, brasileira que viu Barthes e Foucault quando os professores não usavam Macbooks e powerpoint, é muito distinto dos cabeludos que, envoltos na fumaça de cigarros, pensava em todo tipo de revolução. Já havia desconfiado diante da predominância de senhores e senhoras grisalhos e muito formais, talvez muitos deles cabeludos de outrora – o que, no final das contas, combina também com uma certa formalidade que vejo em Compagnon.
Mas se no palco não se propõem teorias mirabolantes, desenrola-se uma aula que fez me sentir careta. Naquele dia, por exemplo, Compagnon analisou, na primeira hora, Masculino/Feminino e Au hasard Balthazar, mostrando como Jean-Luc Godard e Robert Bresson fazem filmes sobre a juventude ou melhor, sobre uma idéia de juventude numa França ultra-conservadora que, naquele mesmo 1966 em que estrearam os dois filmes, censuraria A religiosa, de Jacques Rivette. Na segunda hora do curso, sempre reservada a um convidado, Philipe Roger falou sobre Sade, sobre a presença do Divino Marquês naquele ano em que estreou em Paris, com escândalo, o Marat-Sade de Peter Weiss (com direção de Peter Brook). Aliás, aquele também foi o ano em que a estréia de Les paravents levou multidões de manifestantes de extrema direita à porta do Odéon.
Na aula, Compagnon passa trechos de filmes, exibe muita imprensa da época, lembra sucessos do rádio, busca um mergulho radical naquele ano notável, em que Michel Foucault publicou As palavras e as coisas, saíram os primeiros números da Quinzaine Littéraire e do Magazine Littéraire, Alain Resnais estreou A guerra acabou e Serge Gainsbourg bombava com Les sucettes. Aos poucos, a estratégia vai se desenhando: 1966 seria o verdadeiro 1968? Um ano já acontecia no outro? Quais os caminhos da inovação e da resistência e como estas forças se recombinam ao sabor daquela História que se quis terminada há algum tempo?
Até o dia 29 de março, quando o curso termina, será possível saber um pouco mais por que aquele ano que a História esqueceu – ou pelo menos desconsiderou – teve tamanha importância. O que traz outras questões, sobre a eleição de vencedores e vencidos, sobre como nasce a literatura, a arte e o pensamento na impureza da imprensa, dos hits do rádio, nas pesquisas antropológicas e até na literatura mesmo.
Se é preciso entender francês para acompanhar esta aventura, pode-se prescindir de ir a Paris. O curso está totalmente disponível, em áudio e vídeo http://www.college-de-france.fr/default/EN/all/lit_cont/index.htm, no site do Collège. No iTunesU, seção da loja virtual dedicada ao ensino, pode-se inclusive baixar o áudio. Uma banalidade nestes anos 2000, tão desimportantes até que, sabe-se lá, um intelectual sem afetação como Compagnon nos ensine a ler o próprio tempo.