Esse cabelo – por Djaimilia Pereira de Almeida

Esse cabelo

por DJAIMILIA PEREIRA DE ALMEIDA

A história do meu cabelo crespo intersecta a história de pelo menos dois países e da relação entre continentes: uma geopolítica

Colagem de Lorna Simpson: Touching (2012), da série Ebony Collages (Cortesia da artista e Salon 94, Nova York)

A minha mãe cortou-me o cabelo pela primeira vez aos seis meses. O cabelo, que segundo vários testemunhos e escassas fotografias era liso, renasceu crespo e seco. Não sei se isso resume a minha vida, ainda curta. Mais depressa se diria o contrário. Na curva da nuca crescem ainda hoje inexplicavelmente lisos cabelos de bebê que trato como um traço vestigial. Nasce daquele primeiro corte a biografia do meu cabelo. Como escrevê-la sem uma futilidade intolerável? Ninguém acusaria de ser fútil a biografia de um braço; e não pode, no entanto, ser contada a história dos seus movimentos fugidios, mecânicos, irrecuperáveis, perdidos no esquecimento. A veteranos de guerra e a amputados, que imaginam dores que ainda sentem, salvas de palmas, corridas na areia, talvez isso soe impassível. Não me ficaria bem, imagino, fantasiar a reconquista da minha cabeça pelos sobreviventes lisos da base da nuca. A verdade é que a história do meu cabelo crespo intersecta a história de pelo menos dois países e, panoramicamente, a história indirecta da relação entre vários continentes: uma geopolítica.

A biografia do meu cabelo poderia começar muitas décadas antes em Luanda numa menina Constança, loura furtiva (uma apetecível “menina dactilógrafa”?), paixão silenciosa de juventude do meu avô negro, Castro Pinto, longe ainda de se tornar enfermeiro-chefe do Hospital Maria Pia; ou em como achou sublimes as tranças postiças com que o surpreendi certa noite, depois de uma sessão de nove horas de cabeleireiro passadas no chão, já sem posição para estar sentada, entre as pernas quentes de duas jovens especialmente brutas, que a meio de me arranjarem o cabelo interromperam a tarefa para converterem numa sopa de feijão a feijoada e o arroz-doce sobrados do almoço, e de quem eu sentia nas costas o calor (e um vago odor) do meio das pernas. “Que colosso”, disse ele. Sim: talvez a história do meu cabelo tenha origem nessa menina Constança, com quem não tenho parentesco, porém, procurada por ele no comprimento das minhas tranças e nas raparigas do autocarro que, na velhice, pelos arredores de Lisboa, o levava de madrugada à Cimov onde, curvado, varreu o chão até morrer. Como contar esta história, todavia, com sobriedade e a aconselhável discrição?

Talvez o livro do cabelo esteja já escrito, problema resolvido, mas não o livro do meu cabelo, o que me relembraram dolorosamente duas louras falsas a quem em tempos o entreguei de passagem para um brushing impossível – e as quais, não menos brutas do que as outras, notando em voz alta que “está todo espigado”, mo esticaram de cima para baixo, lutando contra os próprios braços, a masculinidade de cujos bíceps, inchados sob as batas, foi o tempo inteiro a minha secreta desforra pela tortura. A casa assombrada que é todo o cabeleireiro para a rapariga que sou é muitas vezes o que me sobra de África e da história da dignidade dos meus antepassados. Sobra-me, porém, em lamento e escovadelas reparadoras, regressada a casa do “salão”, como diz a minha mãe, e em não levar demasiado a mal o trabalho dessas cabeleireiras cuja implacabilidade e incompetência nunca consegui decidir-me a confrontar. Tudo aquilo com que posso contar é com um catálogo de salões, com a sua história de transformações étnicas no Portugal que me calhou – das retornadas cinquentonas às manicuras moldavas obrigadas, a contragosto, ao método brasileiro, passando pelos episódios do retraimento da minha exuberância natural numa menina que, nas palavras de todas essas mulheres, “é muito clássica”. A história da entrega da aprendizagem da feminilidade a um espaço público que partilho, talvez, com outras pessoas não é o conto de fadas da mestiçagem, mas é uma história de reparação.

Colagem de Lorna Simpson: Big Yellow (2011), da série Ebony Collages (Cortesia da artista e Salon 94, Nova York)

Nenhuma loura de autocarro jamais deu pelo meu avô Castro. Entoando para dentro cânticos bakongo, o Papá foi o homem oculto de que não se suspeita a tradição honorável que transporta em si ao nosso lado no autocarro; o homem de tradição invisível – e que bem soaria isto maiusculado: O Homem de Tradição Invisível, um novo estereótipo. Ninguém olhou nunca para ele, este autodeclarado cavaquista, o portuguesão, como ficou conhecido na juventude, que proferia “entra a bola, seu macaco” referindo- -se a futebolistas negros e dividia as pessoas por espécies de animais da selva, caracterizando-se a si mesmo enquanto “o tipo macaco”, aquele que aguarda o fim das conversas para exibir a sua sabedoria.

Descendo de gerações de alienados, o que talvez seja sinal de que o que se passa por dentro das cabeças dos meus antepassados é mais importante do que o que se tem passado por fora. A família a quem devo este cabelo descreveu o caminho entre Portugal e Angola em navios e aviões, ao longo de quatro gerações, com um à-vontade de passageiro frequente que, todavia, não sobreviveu em mim e contrasta com o meu pavor de viagens que, por um apego à vida que nunca me assoma em terra firme, temo sempre serem as últimas. Segundo se diz, desembarquei em Portugal particularmente despenteada aos três anos, agarrada a um pacote de bolacha Maria. Trazia vestida uma camisola de lã amarela hoje reconhecível numa fotografia de passaporte em que impera um sorriso rasgado, próprio daquele desentendimento feliz quanto ao significado de se ser fotografado. Ria-me à toa; ou talvez incitada por um motivo cómico por um dos meus adultos, que reencontro bronzeados e barbudos em fotografias de recém-nascida nas quais surjo sobre lençóis, numa cama.

E no entanto o meu cabelo – e não o abismo mental – é o que me liga diariamente a essa história. Acordo desde sempre com uma juba revolta, tantas vezes a antítese do meu caminho, e tão longe dos aconselhados lenços para cobrir o cabelo ao dormir. Dizer que acordo de juba por desmazelo é já dizer que acordo todos os dias com um mínimo de vergonha ou um motivo para me rir de mim mesma ao espelho: um motivo vivido com impaciência e às vezes com raiva. Devo, porventura, ao corte de cabelo dos meus seis meses a lembrança diária do que me liga aos meus. Em tempos disseram-me que sou uma “mulata das pedras”, de mau cabelo e segunda categoria. Essa expressão ofusca-me sempre com a reminiscência visual de rochas da praia: rochas lodosas em que se escorrega e é difícil andar descalço.

A alienação ancestral surge na história do cabelo como qualquer coisa a que se exige silêncio, uma condição de que o cabelo poderia ser um subterfúgio enobrecido, uma vitória da estética sobre a vida, fosse o cabelo vida ou estética distintamente. Os meus mortos estão, porém, em crescimento. Falo e vêm como versões do que foram de que não me lembro. Esta não é a história das suas posturas mentais, a que não me atreveria, mas a de um encontro da graça com a arbitrariedade, o encontro do livro com o seu cabelo. Nada haveria a dizer de um cabelo que não fosse um problema. Dizer alguma coisa consiste em trazer à superfície aquilo de que, por ser segunda natureza, não nos apercebemos.

À saída do avião, evocando a amante de estadista que aterra horas depois do voo oficial, a menina Constança começava por desapertar o casaco. O bafo de Luanda sugeria a aguardada ausência das suas tias nos passeios pelo jardim em que, por simples milagre, não consta que tivesse sido apanhada de mão dada com o meu avô. Do estado do tempo ao estado do estado, trocava dedos de conversa por uma bolacha dada à boca, molhada em chá. Encontro nela a hombridade do Papá, nas calças subidas de então, o casaco, o chapéu, uma hombridade que a corcunda de imigrante velho abateria. Constança era, entre nós, um assunto de intervalo das notícias, um reclame de dentífrico, de que a pena de melindrarmos a avó nos desviava, mas também pretexto de chantagem que irritava o avô Castro: ou nos dava dinheiro para pastilhas, ou “então e a loura?” – como se a respeito desta adivinhássemos mais do que a promessa de hálito fresco e eliminação do tártaro. Deixo-a aqui como Couto, a meio, abandonada num copo de plástico, entre escovas, baça de calcário, em memória da minha querida avó Maria, em quem instalou uma ciumeira para o resto da vida.

Colagem de Lorna Simpson: Blue Wave (2011), da série Ebony Collages (Cortesia da artista e Salon 94, Nova York)

Nunca cheguei a fazer com o Papá o percurso de autocarro para a Cimov, que me aparece sob a forma de mito. Não sei como seria a cidade vista pelos seus olhos. Penso hoje no renque de prédios pelo caminho pardos, na escuridão – como uma imagem dos seus pensamentos, do seu modo introspectivo no autocarro antes de amanhecer. Os contornos do dia eram bem claros para si. Sempre foi um homem de objectos, um latoeiro ambulante: primeiro, um homem de gaze, seringas, bisturi; mais tarde, de baldes, bálsamo analgésico, lâminas embrulhadas em papel, Bactrim Forte, termos, sacos de plástico, canetas, o bolso da camisa deformado por maços de boletins de toto-loto e folhas anotadas nas quais calculava o algoritmo de chaves, garantia ele, vencedoras.

Nada existe aqui de romântico. O bálsamo e a tralha enferrujada eram apenas o que restava do passado, desencaixado, tudo fora de prazo, da vida de enfermeiro em Luanda que não precisou de esquecer e de que nunca se demitiu, preservando, aplicada aos seus, a mesmíssima rotina de injecções, prescrições de medicamentos e algumas circuncisões caseiras a sangue-frio a que, por pura sorte, todos os rapazes sobreviveriam. Ao mínimo espirro ou enxaqueca, administrava doses de antibiótico; e assim foi até ao fim dos seus dias e sem dar ouvidos a protestos.

Formara-se em Enfermagem em Angola, educando-se de noite à luz da vela, o que pagaria com cataratas prematuras. Orgulhava-se de, ao longo de todo o curso, se ter alimentado de nada mais do que bananas e jinguba, dieta recordada por volta dos anos 90, neste outro hemisfério, com a mesma nostalgia com que aludia à manteiga e à marmelada dos tempos áureos da nossa família. Desde pequena o imagino a estudar seminu, numa cubata, de lanterna presa ao queixo apontada aos livros – como, numa síntese implausível de épocas e lugares, um inadaptado construtor de caminhos de ferro temendo, acampado, um ataque de coiotes –, travando uma luta contra a insónia, o calor, os mosquitos; mas bem sei que nada disso corresponde à verdade. Em Luanda, na casa do Papá, onde ainda passei férias, comia-se então margarina de uma grande lata, como eu nunca vira fazer. Areando panelas no calor da tarde, as vizinhas ouviam-me histórias de Portugal. Introduzia-as ao conceito de “escada rolante”, a que elas reagiam cantarolando que “sou feliz, não me falta nada”. Ao amanhecer, não muitos anos depois, à saída de casa, a caminho do autocarro e da Cimov, carregado de uma humidade fresca a que também me afeiçoaria, o ar dos arredores de Lisboa trazia à vida inteira um indistinto cheiro a desinfectante.

Na madrugada em que nasceu o meu avô Castro, o seu pai estava no mar. Era isso numa mítica M’Banza Kongo, na Província do Zaire, em Angola. Visto de longe, da praia, o cabelo louro do albino era um ponto de luz na paisagem. Pescava nas rochas, com uma lança, esperando ver passar um certo peixe sob a água. O peixe estouraria então, soltando sangue negro, tornando mais nítida ao pescador a sua própria imagem reflectida no fundo. Por vezes, em madrugadas semelhantes, e estando a maré cheia, o homem erguia a lança ao alto abrindo um caminho no mar e percorrendo-o enquanto lhe apetecia, lento entre as águas separadas, diante da visão das ondas erguidas ao seu lado num muro alto. Não o faria estando acompanhado ou em apuros, mas para gozar um passeio sozinho. Ser, porém, ele mesmo a testemunha de um dom que não podia partilhar dava-lhe o sentido exacto de ser escolhido. A graça parece contrária a termos um público: é uma oferenda para uso da solidão. No dia em que nasceu o meu avô Castro, o seu pai saíra de casa com um certo peixe na cabeça, uma coisa especial que vira passar por ali. A praia estava vazia, névoa pairava. Foi como se lançado sobre o único peixe vivo que o meu bisavô se equilibrou numa rocha, ganhando balanço, erguendo o braço e detendo-se no seu retrato – leite sobre óleo –, o cabelo numa trança comprida, já o peixe rebentara em espessura e densidade. Em casa, a mulher deu à luz. O pequeno Castro, contaram-lhe depois, falara em vez de chorar ao sair para o escuro do casebre iluminado a óleo da pesca, tresandando a peixe como todos tresandavam, o que o pescador antevira. Talvez não haja praia nem peixes que estoirem em M’Banza Kongo.

Herdei do meu avô Castro uma colecção de canetas Parker de imitação que guardou dentro de uma mala durante uma década. Viera para Portugal em 84 com o intuito de tratar um dos seus filhos, nascido com uma perna mais curta do que a outra, num hospital de Lisboa. A perna exigia cuidados médicos inexistentes em Angola. Não veio por isso enquanto imigrante, para trabalhar, mas como pai, acabando por ficar mais tempo do que o previsto e depois, ao ritmo das operações e da fisioterapia, até ao fim da sua vida, para uma coda almejada à era de Angola. Em Lisboa, ficavam hospedados em pensões perto do hospital, como faziam e ainda fazem um grande número de enfermos da África de expressão portuguesa enquanto duram os seus tratamentos médicos, ou por tempo indeterminado.

À entrada da Pensão Covilhã, mesmo na esquina da Casa de Amigos de Paredes de Coura, os doentes tomam um ar de Lisboa. Trazem um penso num dos olhos, uma gangrena na coxa, o braço guardado num gesso já puído e tatuado, sob o qual se coçam com um pauzinho chinês. São os despojos do império, Camões de ocasião embora tenham apenas nove anos, escusados à mortalidade infantil para o que lhes parecem umas férias urbanas e, à semelhança de todos, destinados a conhecer de Portugal, com alguma sorte, apenas o mundo de onde vieram.

Entrar na Covilhã é meter o nariz numa mala velha. A pensão tem não o aroma alcoólico que se sente nos hospitais, mas o cheiro a unguentos expirados combinado com o odor a podre das infecções e uma vaga nota metálica a sangue, traços de naftalina, numa mistura ao mesmo tempo química e orgânica, cortada por um travo adocicado de ketchup ou Old Spice, vertidos dos frascos para a mala por entre fios de cabelo e tintura de iodo, e inutilizando uma embalagem de Valium. O meu avô adormece neste cheiro com uma resignação cabal, perguntando ao meu tio se o quarto não lhe cheira a mulher. “É impressão – dorme, Papá”, responde-lhe o miúdo.

Na tasca do lado, os doentes fazem conversa com os velhos em quem, embora os repugnem, despertam alguma compaixão. Levam o desportivo do dia deixado numa mesa para o quarto da Covilhã e festejam os golos do Belenenses ao domingo. A visão dos enfermos mexe com os velhos da tasca a quem, por vezes, tiram o apetite já em casa e causam vómitos, transportando-os à guerra e à juventude; mas são angústias caladas que eles disfarçam às patroas, dizendo que lhes caiu mal um ovo verde, ou que “o vinho do ti Zeca estava passado, o malandro”. Aos miúdos, os mesmos velhos estendem às vezes um ovo verde, o que eles nunca viram, ou apresentam-lhes o ketchup com que lambuzam o nariz. “Puto, pede um desejo!”, dizem-lhes, explicando que é o que se faz quando se prova uma coisa pela primeira vez, explicação que os miúdos não entendem.

E é assim que nesses dias, entre pisar cocó de cão, de chinelo no dedo apesar do Outono, e namorar um placard de gelados Olá – razão para sobreviver –, os rapazes doentes provam um sabor novo e os velhos se redimem do nojo que eles lhes metem, um nojo que sacodem dizendo “pronto, pronto”. Os putos fecham então os olhos e pedem um Perna de Pau. São nisso os velhos boas almas, embora apenas se tenham a si mesmos na cabeça ao longo da prova, aguardando a reacção dos miúdos para sentirem alguma coisa enquanto os olham.

A Covilhã sobrelotada não é, em Lisboa, uma estalagem de vila, mas uma colónia de leprosos à beira da estrada, ao mesmo tempo no centro da cidade e ostracizada, porque para chegarmos a nenhures basta virar uma esquina suja. Da janela do quarto, os doentes vêem por detrás de grades as traseiras do hospital, acompanham a recolha de resíduos e entretêm a promessa de quartos mais amplos, imaginados através das paredes cinzentas do que mais parece uma fábrica do que uma casa de saúde.

Muitas vezes, os doentes passam ali anos, tendo da cidade apenas um vislumbre, e do País somente o conceito de “chanfana” que lhes traduz nos dias bons a dona Olga – uma beirã talvez de Seia e dona da pensão –, os dias em que não chama a tudo uma pocilga, ao espreitar de raspão a confusão de malas, roupa suja e garrafas vazias que são os quartos dos doentes onde nunca entra e de onde sai o som de uma cassete debitando a lambada. A idéia de Portugal percebida na recepção da Pensão Covilhã é a noção de comida típica com que começa a ignorância sobre qualquer país: um banquete de explicações rudimentares sobre o paladar dos rojões, o paladar da ervilha torta, o paladar das papas de sarrabulho. Ainda vai chegando para uma horta lá na terra, pensam a dona Olga e os enfermos.

O meu avô guardou as canetas que me legaria numa das suas malas ao longo de dez anos, amarradas com uma guita e oxidadas. Vinha preparado para compromissos, assinaturas, contratos, quando o esperavam anos de um lavabo partilhado, anos sem uso para aftershave. Volvida uma década, sairia da Covilhã para São Gens, um bairro clandestino nos arredores de Lisboa, mandando vir de Angola a mulher e outros filhos, guardando as mesmas malas por desfazer sob uma nova cama, numa casa que também cheirava a mala velha.

Colagem de Lorna Simpson: Blackeye (2012), da série Ebony Collages (Cortesia da artista e Salon 94, Nova York)

O primeiro salão da minha vida escondia-se numa rua íngreme, em Sapadores, que viria a reencontrar por acaso, numa mudança de bairro, vinte anos depois. Andámos muito para lá chegar, eu e a minha mãe, que então gozava as férias de verão em Oeiras, hospedada em casa da avó Lúcia e do avô Manuel (os meus avós paternos), com quem passei a infância. Não andámos tanto nesse dia, contudo, quanto numa expedição ao Barreiro, de que, numa alegoria da minha vida, retenho uma interminável espera pelo barco a que imprecisamente chamávamos “cacilheiro”. Embora não partíssemos do Cais do Sodré nem fôssemos à praia, mas arranjar o cabelo à outra margem, essa ida ao Barreiro cintila nas páginas de Ramalho Ortigão sobre as praias do Tejo. Vejo-a insolitamente aí, turvada pelo século 20, pela rede de transportes públicos, condição de possibilidade da história dos salões africanos. “Há peixinhos que amam seus filhos”, escreve Ramalho falando da minha mãe e de mim: trutas que enterraram os seus ovos numa cova. Perdemos o último barco: só pode ter sido isso. Perdemos o último barco e passámos a noite no cais, iluminadas ambas a gás, e ao frio, deformando os penteados contra um banco de madeira. (Ou terá sido um sonho?)

De Sapadores, volta-me com tonturas de amoníaco descer umas escadas para uma cave exígua de paredes brancas, salão cujo excesso de zelo com a higiene, comum na pobreza, me pareceu aos seis anos luxuoso. Sobra-me pouco mais do que o rosa-choque da embalagem de desfrisante Soft & Free (ou seria Dark & Lovely?), anunciando, na variedade infantil, crianças negras de cabelos lisos, risonhas, modelos de vida instantâneos. Publicidade enganosa, perceberia eu no dia seguinte. O tratamento, cuja química abrasiva obriga ao uso de luvas, consistia, segundo me explicaram, em “abrir o cabelo”, torná-lo mais maleável. (Essa ida a Sapadores fora, na realidade, precedida de um ensaio singular, perto de casa, na dona Esperança, a cabeleireira da avó Lúcia. Inconformada com o estado do meu cabelo, agarrou num secador e numa escova e, no intervalo de pentear a minha avó, esticou duas madeixas por caridade, para provar que não era um caso perdido. “Está a ver? Não lhe digo que a Mila tem um belo cabelo? É só esticar um bocadinho e – veja!” Saímos da dona Esperança de mão dada: a minha avó com a mise do costume, eu com umas mechas esticadas um pouco acima das orelhas, que não se pentearam para podermos mostrá-las em casa, ambas tentando esconder a descrença nesta solução milagrosa. O meu avô exprimiu a sua aprovação com um gesto de sobrancelhas, fazendo de conta que esse “assunto de senhoras” não era da sua preocupação ou esfera de interesses, encomendando – também com as sobrancelhas – à minha avó a sua resolução improvável.) Abrir o cabelo era, de facto, outra coisa. Mentiria se dissesse que recordo o ritual operado em Sapadores, mas não deve ter fugido do habitual. Primeiro, devem ter-me sentado numa cadeira com uma almofada por baixo do rabo e eu devo ter desfeito o penteado improvisado que trazia. Do espelho, via para além das minhas costas o salão, onde talvez houvesse mais pessoas. Alguém me terá separado o cabelo em quatro partes fazendo força demais com um pente fino. Depois, alguém ter-se-á esquecido de me proteger o couro cabeludo com a loção aconselhada, etapa preventiva normalmente dispensada pela experiência. Também não me lembro de como saí de Sapadores. O baptismo era então o meu renascimento para o horror de pensar que me haviam esquecido entre as esperas necessárias ao efeito do produto e a impressão de falarem de mim nas minhas costas, a maledicência. Eu nascia, com um grau distinto de paranóia, para o meu cabelo e ao mesmo tempo para uma idéia de mulher. Nos pacotes de desfrisante, via-se uma menina que, segundo asseverava a minha mãe, não era negra, envergando um fato-macaco às pintas, a primeira vestimenta de que tenho memória: um fato-macaco a estrear que terei vestido para um aniversário. Horas antes do início da festa, pus-lhe uma nódoa; o que remendei cortando a nódoa com uma tesoura; o que remendei cortando ainda um pouco mais, esburacando o fato que, afinal, talvez nunca tenha chegado a estrear – e inaugurando uma série de métodos pessoais de disfarçar nódoas, como o de coser botões sobre cada medalha.

A “menina muito clássica” aprendera a coser botões com a dona Antónia, a costureira da avó Lúcia, que nos visitava uma vez por semana, passando tardes à mesma secretária a que aprendi a escrever, cerzindo e fazendo bainhas, os óculos no nariz pontiagudo. A dona Antónia, cuja cabeça anacrónica – mise impecável em cabeleira negra – me fartei de azucrinar, não me era tão querida quanto a dona Lurdes, cujo penteado esquecível nos visitava diariamente. Com a dona Lurdes, que deixava um rasto de lixívia e cuja casa visitei uma vez, nunca me faltou assunto. Vivia em São Domingos de Rana. Enquanto trabalhava, conversávamos as três na cozinha: eu, ela e a avó Lúcia – o que exasperava o meu avô Manuel, que então nos chamava para a sala, reclamando que “não estejam aí as duas sozinhas”. Com a dona Lurdes aprendi nessas tardes a arte de falar sem dizer nada, habilidade social execrada pelo meu avô Castro, mas que considero um princípio prático de grande utilidade moral. Perguntava-lhe pelos filhos – que foram ficando crescidos em São Domingos de Rana e de vez em quando nos visitavam, tímidos e corados, como se eu mesma não fosse ficando crescida na cozinha – e falava-lhe dos acontecimentos na escola, marcando o ramerrame quotidiano. Eu não fazia idéia de que vivia a reforma dos meus avós como a mascote de uma casa de repouso, montando construções de fósforos no chão da sala, convertidas mais tarde em bordados, confundindo diariamente “cotovelos” com “ombros” e “calcanhares” como se para marcar a passagem do tempo, motivo de lições que duravam tardes inteiras, ou fazendo cocó na carpete apenas para o poder examinar.

Perante o nosso modo de viver o molde único das nossas deformações e o momento em que nos encontrávamos, penso hoje que experimentávamos as minhas travessuras e os seus reparos como se não fossem mais que ontogénese. É porém a ignorância de que atravessávamos estádios do nosso próprio curso, salientada no meu encontro com a avó Lúcia e o avô Manuel, cosmicamente arbitrário embora projectado, o que fez dele um encontro entre pessoas para além de uma relação familiar. “Estamos todos velhos”, suspirava a minha avó no fim da vida, generalizando. Lúcia libertou-se dessa ignorância ao dar por nós adultos. O envelhecimento dos que a rodeavam era então revelador quer do seu passado individual, quer de que pertencia a uma espécie, como se fôssemos a derradeira geração, e nada viesse a suceder-nos.

Reveria Sapadores apenas duas décadas depois. Muito antes da mudança de bairro, e por muitos anos, a zona não passara de uma memória difusa de que me fui esquecendo por longos intervalos. “Sapadores” era então o destino indicado num autocarro com que por vezes me cruzava na cidade, tão absolutamente obscuro como o “Senhor Roubado” ou o “Poço do Bispo”, lugares para fazer tranças, necessidade que tinha o condão de me ir ampliando Lisboa. Se me acontecesse ter de apanhar um desses autocarros, não juro que as minhas idas de infância a cabeleireiros não me fizessem supor já ali ter estado alguma vez, sem saber distinguir a verdade das minhas impressões. Em incidentes de percurso, ocorre por vezes esta sensação de déjà-vu, a de andarmos por lugares novos com a intuição de os conhecermos. Reparo, porém, com surpresa, tal ser a expressão exacta da minha memória de Angola.

Guardo, a esta distância, a visão do Hotel Turismo cravejado de balas ainda dos anos 90; o Teatro Avenida, a entrada do Jornal de Angola, um intenso cheiro a tinta, ruas em que não me saberia orientar. No emaranhado de gruas da actual Luanda, que recebo pela televisão, pouco mais consigo reconhecer. De todo o resto retenho apenas a mesma idéia que fazia de Sapadores, uma idéia que nos chega quando andamos por onde já passámos. É como se Luanda ficasse ali para os lados de Odivelas, um destino de autocarro próximo, mas confuso. Num equilíbrio entre memória e altura apercebo-me agora de a reconstrução de Luanda acompanhar a minha própria reconstrução. Nos troncos das árvores, nas portas das casas de banho públicas, escreve-se: “x esteve aqui”. Como saber, pergunto-me, de que é legenda essa inscrição?

Esta é uma história de resultados fugazes: penteados que nunca soube manter e que, no dia seguinte, quando não no próprio, eram um desapontamento. Tenho aprendido muito a respeito de regimes e manutenções; em conversas ocasionais, cruzo-me com o hábito matutino de esticar o cabelo e o hábito hebdomadário recomendável de o hidratar, aplicando máscaras Não tenho, porém, vivido nada disso, mas antes a realização de cada penteado como uma elevação seguida sempre de uma curva: um declínio. Os penteados – que são, admito, apenas isso – têm durado em mim o instante de sair para a humidade da rua, que logo os desfigura; ou para a almofada e as voltas na cama de qualquer noite, num combate com a minha natureza Cedo à frivolidade, poderia dizer-se. Com o passar do tempo, o escrúpulo a respeito da frivolidade deu lugar à percepção da frivolidade do próprio escrúpulo, como se a moral de um livro pudesse radicar em deixá-lo ser como é, e não no que nele se diz.

Colagem de Lorna Simpson: A Friend (2012), da série Ebony Collages (Cortesia da artista e Salon 94, Nova York)

Entre várias franjas, cortes à tigela, guedelhas grunge e o não haver nome definido para o meu despenteado triangular do início dos anos 90 (duas tristes mechas desfrisadas disparando dos lados e encimadas por um pseudo rabo de cavalo descolorado pelo sol), os penteados da minha família portuguesa protagonizam uma famosa fotografia de grupo. Assinalando o ponto em que parei de contar quantos éramos, a fotografia indica que somos 16 primos, número que, apesar de sermos realmente 19, fixei como certo, da mesma forma que ao longo de tanto tempo guardei os 36 anos do meu pai, os meus nove anos do retrato de família, toda a infância um único ano. Na fotografia, estamos atrás de um sofá ao lado uns dos outros, em casa da avó Lúcia e do avô Manuel. Nas nossas costas, vê-se a tapeçaria que, nesse tempo, materializava o meu ideal de bom gosto.

Como para qualquer menina de nove anos, pentear o cabelo da avó Lúcia, com quem vivia, era uma das minhas ocupações favoritas. O seu cabelo exalava um perfume a antiguidade que jamais reencontrei: um cheiro a Feno de Portugal, tabaco e oleosidade, que aprendi a adorar. Espalhadas pela casa e por gavetas, encontrava fotografias suas da juventude, de quando o seu cabelo era ainda negro e reluzente, graciosamente composto num alpendre na Beira, ou esvoaçando entre pombos junto a uma fonte numa viagem à Itália projectada na parede pelo meu avô. O cabelo negro da avó ficaria pelo caminho ou, parecia-me então, renascera na cabeça de algumas primas, nas quais, embora ainda meninas, se reconstituía com força e intenção: um cabelo de mulher legado precocemente e cuja graça as aguardava, disfarçado na fotografia de grupo em franjas caricatas e farfalhudas, tapando-lhes a vista. Das primas que herdaram o cabelo da avó Lúcia, nenhuma podia por enquanto adivinhar a bênção que lhe tinha calhado: uma herança viva e vã. Enfiava o meu nariz no cabelo da avó Lúcia discretamente, tentando não perder a noção da minha força com a escova (ou “acaba-se a brincadeira”). Esse cheiro foi o primeiro lugar de onde julguei ter origem, muito antes da imagem mental de pedras da praia, projecção de uma metáfora cruel. Costumo pensar que esse cheiro é tudo o que posso dizer sobre a minha identidade. Um primo de visita comenta que sou “uma angolana mais que falsa”. Tem razão. Para meu grande pesar, não é aceitável declarar à polícia de fronteira que a minha pátria é o cabelo de Lúcia. Saber de onde venho, no entanto, pareceria crucial para a história do meu cabelo, rememoração permanente não de esquinas ventosas de Oeiras por volta de 1990, não de pedras e cheiros, mas de uma origem concreta, uma origem no sentido habitual.

Surpreende-me então uma coincidência entre o que sou e a narração da minha origem. Apenas a partir da sua irrelevância, posso deter-me na memória de penteados, coroa estática assente naquilo de que distraem. Serem precisas ventanias para perturbar o meu cabelo não deixa de ser irónico. Tem resistido a todos os tremores como uma planta que sobrevive à quebra de um vaso. Fazer justiça a essas formas sensoriais de origem salvar-me-ia porventura do mal de pensar em mim mesma a partir de um estereótipo. Que preferível seria um cosmopolitismo autêntico a um paroquial cheiro de senhora, vestígio do cruzamento das vidas de um comerciante português errante pelo Congo, um pescador albino de M’Banza Kongo, católicas anciãs de Seia, cristãos-novos maçons de Castelo Branco, meus ancestrais? A minha declarada ignorância quanto à topografia de Luanda talvez tenha a única vantagem de me proteger de um cortejo de lugares-comuns da lusofonia, substituídos, todavia, por outros, a que nem sempre sou sensível, e que vigio como um guarda-nocturno obeso. O lugar-comum mais evidente e literário, o de ver no cabelo uma imagem da mente, é a razão de ser da História do Cabelo, para que nunca tive muito tempo. História que apenas existe, contudo, por distracção, como se durante anos tivesse esquecido a experiência em curso no alto da cabeça, num desleixo retrospectivamente metódico, para um dia ter assunto. A avó Lúcia cheirava ao sítio de onde vim, à minha terra, um cheiro a falta de arejamento, a pessoa aposentada, a luz artificial.

O pai da avó Lúcia, o proprietário português de uma caravana de bagatelas onde é hoje Kinshasa, partira para África recém-casado no princípio do século 20. A mulher, de saúde frágil, deu à luz a pequena Lúcia e outros dois irmãos, mas acabaria por morrer de tuberculose poucos anos depois. O pai mandaria então os filhos para Seia, de onde era a mulher, para serem criados por duas primas dela. As crianças cresceram aí aos seus cuidados como se fossem de lá. Eram todavia congolesas, o que a goma dos seus bibes não deixava adivinhar. Uma dessas crianças chegou a bispo. As outras duas, a minha avó Lúcia e a irmã, fizeram-se professoras. Das jornadas de caravana, vendendo panos, sabão, serapilheira e tachos, não se ouviu falar por muitos anos. Manuel, com quem Lúcia se casaria aos 19 anos, descuidava esse passado de comércio, embora tivesse orgulho em saber a mulher africana, o que emprestava a ele uma certa aura de homem do mundo, que agradava. Foi por isso com naturalidade que lhe falaria de partir para África como engenheiro, a convite de uma companhia hidroeléctrica, para construir barragens. Uma das consequências da colonização desse tempo era a difusão da idéia de que esses africanos, como o era a minha avó Lúcia, não regressavam de facto à sua terra quando para lá partiam em navios. Lúcia regressava à origem, embora sentisse que partia de casa – emigrava para o sítio de onde era natural: um modo de emigrar de si mesma. Chegariam à Beira, em Moçambique, depois de se casarem em Seia numa manhã húmida.

O meu bisavô comerciante foi ao longo de quatro décadas um fantasma de que não houve sinal. Talvez a certo ponto, lá por onde andava, nas margens de um afluente do rio Congo, tenha estabelecido uma hospedaria ou chegado a matar um preto numa rixa. Um dia, quando a avó Lúcia e o avô Manuel chegaram a Luanda, muito depois do desembarque em Moçambique, onde nasceria a maioria dos seus filhos, o homem bateu-lhes à porta. Os meus avós receberam-no como a um hóspede, cuidando dele até a sua morte com uma abnegação com que não havia sido preservada a sua memória. Regressara para morrer, descobrindo a filha sem que se percebesse como. Não sei dizer se sentia que regressara à caravana, se a um lugar onde enterrara um tesouro. Pode ser que a minha avó tenha chorado o pai ausente, tenha chorado a sua jovem mãe, ao longo dos seus anos africanos, dos seus anos portugueses. Estavam nela como um elástico posto no pulso para a lembrar de alguma coisa que jogava fora antes do tempo, distraída, e sem perceber o que ali fazia, como acontecia era eu pequena e lhe faltava a memória. Ninguém na família herdou a sagacidade do homem da caravana, embora todos tenham precisado de desafiar o desterro da sua jovem mulher.

Na reforma, a avó Lúcia preparava um chá para uma das suas irmãs, Justina, que então vivia no Porto e por vezes a vinha visitar. Na sala de estar do apartamento de Oeiras, a tia Justina gabava o tricô que ocupava a minha avó por esses dias. Comentavam uma com a outra a acção do anticiclone dos Açores ou a construção de outra autoestrada, até ao limiar de um arrufo de namorados ideológico. Vistas da sala, contra o pano de fundo da arbitrariedade que as unia, eram ali duas jardineiras ocupadas com um canteiro, abandonadas à pouca importância que davam à opinião uma da outra (“Tem visto a Vacondeus?”) e dando-me a ver a mim, que testemunhava o seu encontro, como a cortesia é a condução atenta do desinteresse, algo que nada tem de nefasto.

Estando a tia Justina para aí virada, a visita era comemorada com um bolo inglês que ela fizera, impregnado do mesmo perfume que eu lhe sentia no pescoço ao cumprimentá-la à chegada – o perfume, aposto, das gavetas de sua casa. E então acompanhava-se o chá com o bolo, por entre suspiros dirigidos à sua oportunidade e sabor imutável: pouca coisa aliviava a sorte da consanguinidade como uma cereja cristalizada. Mastigar o miolo seco e maçudo dispensava-as por momentos da necessidade de fazer conversa. Eram cavalos do mesmo dono, vizinhos de estábulo, pouco mais que quaisquer outras duas almas tomadas ao acaso.

Uma praga de escaravelhos, Rhynchophorus ferrugineus, consumiu as palmeiras do passeio Cesário Verde por onde eu me passeava com a avó Lúcia nesse tempo. Os escaravelhos voaram da Polinésia e da Ásia Oriental para o Sul da Europa e devastaram palmeiras do Algarve a Lisboa. Questiono-me quanto lhes terá levado o voo. No meu regresso a casa, recebem-me seis cotos de palmeira portentosos. O que pode ser dito rende-se ao que se consegue dizer por não me estar aberto lembrar-me mais do que sou. Precisamos de ajuda das coisas para nos recordamos uns dos outros. O cenário tornou-se a cartografia dessa inaptidão. Cotos de palmeira são, todavia, posteridade e logro suficiente. As boas-vindas do futuro são essas amputações que agora, quando ousava enfim sondá-la, me dão a impressão de ter terminado a era do meu cabelo. Obsoletos, os calendários e a ecologia. As eras sucedem-se segundo os mandamentos incompreensíveis do ciclo de vida de espécies de animais menosprezados. Os funcionários da Câmara selam as zonas de abate para não lesar transeuntes e património enquanto tratam das árvores; sobem de capacete amarelo a uma escada móvel; decepam palmeiras com serras eléctricas; a outras desbastam as copas desvendando a verdadeira altura dos seus troncos. Numa manobra engendrada por cenógrafos bíblicos, as metáforas do livro tornaram-se literais. Sucumbidas à calvície a que as vota a directiva camarária, Dalila briosa, essas assombrações deixam de conseguir escrever-me. Oeiras fechou.

Quando, aos oito anos, eu era confidente de uma lojista que vendia lustres e cristais no Centro Comercial Europa, sob o prédio onde morávamos, as escadas rolantes eram uma novidade. Na loja, numa vitrina giratória a que encostava pasmada o nariz, eu admirava uma fábula na qual mochos, borboletas e escaravelhos de cristal adquiriam contornos azulados e lilases devido à entrada do sol pela montra da loja, que dava para a rua. No lado interior da montra, que se abria para uma tabacaria, desaguava uma escada rolante, namorada por mim à distância.

Enquanto essa contemplação decorria, a lojista queixava-se do marido, como se eu não a conseguisse ouvir. Eu não sabia que se podia entrever nas figurinhas a minha fortuna de bicho documental, em relação à qual a imobilidade dos cristais correspondia a um comércio entre expectativa e denúncia, suspensão e promessa. Exactamente como se um visitante de museu, detendo-se frente a uma obra, se demorasse numa representação do que surpreendera de súbito como a sua própria figura, tirando os óculos para ver melhor, tocando na tela a medo, lendo a legenda, e continuando depois como se nada fosse. Num intervalo dos queixumes da lojista, eu saltitava para a escada rolante onde me detinha vendo subir e descer os clientes. Novo salto de pulga, novo dedo de conversa. “Aonde foste?”, perguntava-me a lojista; “cuidado com a escada!” A advertência entrava por um ouvido e saía pelo outro, como eu de saída para outra loja, outra lojista, outra amostra de perfume. Lévi-Strauss conta a história de um índio que acabou como porteiro da Universidade da Califórnia. Antes disso, e por muito tempo, vagueara pelas ruas perdido de fome sem que ninguém desse por ele. É mais ou menos o mesmo com a memória, não fosse esta a imagem justa das minhas deambulações pelo Centro Comercial Europa no fim de 80, a versão sublimada do meu testemunho do ritual do chá nos mesmos anos despenteada num fato de treino amarelo, ora comportada a escutar os adultos, ora absorta em devaneios que me são hoje tão opacos como seriam para qualquer estranho. Antes de a minha recordação ser documento e pastoreio, essas tardes sem país, entretendo e apoquentando lojistas, ou ansiando por um bolo que cheirava a perfume adulterado (e embora o cronómetro da nossa extinção conjunta estivesse já em andamento), foram o calvário urbano do nativo. Essa é a sua coda pacata cotejando rostos com nomes numa folha de presenças.

Uma vez sem exemplo arranjou-me o cabelo uma londrina que tentou a sorte no Chiado, num salão que se percebia não estar ali para durar. Ao longo de hora e meia, deitou por terra todas as anteriores cabeleireiras da minha vida, que dizia terem-me destruído o cabelo. “Este cabelo tem um ano”, disse-lhe eu, habituada. Alisou-me o cabelo com pentes quentes, que tirava com destreza de um pequeno forno eléctrico, uma versão moderna dos pentes aquecidos no carvão que eu vira em mercados de Luanda e me assustavam. Passado um intervalo de três meses, voltei e bati com o nariz na porta: o costume.

Penso que o que procurei sempre, para além de tentar aprender a responder ao bullying das cabeleireiras, foi viver uma história de fidelidade. Contou-me uma amiga que a cabeleireira de uma vida perdera a mão para o seu cabelo. Pensei que era isso que eu queria, uma mão a que confiar-me e que porventura me ensinasse: uma mão visível. A história acidentada dessas tribulações, que agora me chega enquanto torrente silenciosa e ordenada, é porém mais vasta do que a minha história e não é especificamente individual. É a história da interrupção dos negócios, das expectativas defraudadas e das mudanças de planos, de telefones, de emprego, de casa, dos que mudam de país para viverem melhor, uma condição que faz de qualquer pessoa alguém em quem não se pode confiar, que não atende, volta já, fechou, mudou-se, que está em trânsito, mostrando-nos que também estamos. Revejo o que arrisca perder-se. As minhas idas à Almirante Reis em busca do famigerado Salão Obama, a alma piedosa que me gabou o cabelo no dia em que o cortei pela última vez, lamentando-o e pensando que eu perdera a cabeça. Vejo que o compasso do livro se devia marcar não pelos cortes e os penteados, mas pelo tempo em que o cabelo deixa de ter corte. Eu procurava a fidelidade, vendo em mim um ponto fixo pelo qual medir a transitoriedade das donas dos salões. Nunca parti: fiquei por cá.

Percorrendo de carro a Almirante Reis em busca do número de uma loja agora emparedada, outro salão negativo, uma solução, eu procurava-me a mim sem perceber que a frustração antecipada era a condição desta história para que procurava assunto pensando não ter matéria para o meu livro. Conforto-me em perceber que antecipei uma biografia, com a mesma pressa com que confundo dores de crescimento com dores crónicas. A bem dos meus azares capilares provisórios, e por um revisionismo alegre, rendo-me ao pensamento de que encerrei um capítulo, possivelmente o da infância do meu cabelo. Vivi um livro, sem perceber que o que escrevo é o lixo desse livro. Tento enquanto posso a memória do que ainda vivo e que não vejo sem uma proximidade enganadora. O que escrevo é uma prótese de reserva para os braços que me ficarão pelo caminho. Confiro a lista de salões, recuso-me a encontrar sentidos, o modo como calo as contraindicações, o risco real descrito nos rótulos, a comichão, as queimaduras, a minha latente condição de amputada, a reincidente palavra “abrasivo”, literariamente estimável, a política suave da procura do sol e da água pelos jovens dos saltos mortais à beira-mar, por quem temíamos, numa altura em que todas as aventuras acabavam com um tetraplégico. A narração elíptica da biografia inacabada do meu cabelo, a que a debilidade da memória me força, frustra toda a filosofia do cabelo. Seria preciso uma memória de elefante, não uma juba revolta. Como poderia aspirar a uma política um drama interno?


Djaimilia Pereira de Almeida (1982) nasceu em Luanda e vive em Portugal. Doutora em literatura pela Universidade de Lisboa, foi terceira colocada no 20 Prêmio de Ensaísmo serrote com “Saudades de casa”, publicado na edição 17 da revista. Este texto é excerto de Esse cabelo, seu primeiro livro, que saiu em Portugal em 2015 e será lançado no Brasil em 2017 pela editora Leya.

Considerada uma das pioneiras da fotografia conceitual, Lorna Simpson (1960) foi a primeira artista afro-americana a participar da Bienal de Veneza e uma das poucas a integrar a Documenta de Kassel. As colagens aqui reproduzidas fazem parte da série Ebony Collages, que tem como ponto de partida recortes da Ebony, revista criada em 1945 voltada ao público afro-americano.

Uma resposta para Esse cabelo – por Djaimilia Pereira de Almeida

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