General – por Heloisa M. Starling

General

Por HELOISA M. STARLING

A serrote 29 apresenta uma seção especial em que seis intelectuais brasileiros refletem sobre figuras centrais da política nacional, o “Pequeno dicionário de grandes personagens da República”, com verbetes escritos por Renato Lessa (Candidato), Noemi Jaffe (Eleitora), Heloisa M. Starling (General), Mário Magalhães (Jornalista), Conrado Hübner Mendes (Juiz) e Luiz Felipe de Alencastro (Vice).

No verbete “General”, Heloisa M. Starling diz que a interferência dos militares na política, ao longo da história brasileira, é provocada sempre por três fatores: “crise política aguda; algum estímulo vindo de pessoas e setores sociais dispostos a ultrapassar as barreiras constitucionais para alcançar seus objetivos; fragilidade das agências de governo – executivo, legislativo, judiciário”. Leia abaixo o verbete completo.

Qualquer pessoa que saísse às ruas do Rio de Janeiro durante o Carnaval de 1950, ao ouvir a batucada, se renderia – era uma marchinha de tirar o chapéu. Combinava a mistura melódica típica do gênero – compasso binário, andamento muito rápido e linguagem musical concentradíssima – com a percussão rítmica de um ponto de macumba em saudação a Ogum, orixá da guerra. Aguda, maliciosa, a marchinha era um tipo de canção que se intrometia em todas as questões do seu tempo e invariavelmente emitia uma opinião ou um comentário sobre os acontecimentos do cotidiano, do comportamento e da vida política nacional. Meio pretexto, meio testemunho, suas letras fazem farto uso da sátira, do trocadilho, do subentendido, do nonsense, e descrevem uma única situação que às vezes se expande em comentário, mas é recorrente, sempre volta ao refrão. Exatamente o caso de “General da banda”, uma marchinha arrasadora.

“General da banda” é obra de três autores. Raimundo Satyro de Mello nasceu no Pará, era negro, decidiu engajar-se no exército para tentar melhorar de vida e acabou dando baixa, em 1929, no Rio de Janeiro, onde fez carreira de compositor. Tancredo Silva, um pai de santo competente na arte de aproximar a linha melódica do samba carioca com o ritmo do tambor afrorreligioso do candomblé. José Alcides, um sambista de mão-cheia, respeitado no morro do Cantagalo, onde morava. A marchinha politizava e subvertia a hierarquia da caserna e fazia pouco de seu grau militar mais elevado: “Chegou o general da banda êê…/ Chegou o general da banda ê…a!/ Mourão! Mourão!/ Vara madura que não cai/ Mourão! Mourão!/ Oi cutuca por baixo que ele vai…”

General significa chefe. Corresponde ao estágio mais alto na escala das forças armadas brasileiras – no exército, na marinha ou na aeronáutica, oficiais generais ocupam o posto de comandantes de uma tropa, uma esquadra de guerra ou uma brigada do ar. A patente traz exigências: generais concebem estratégias militares, controlam a disciplina e o treinamento formal de seus soldados, determinam manobras de tropas para patrulha e defesa de fronteiras terrestres e do mar territorial. Eventualmente se envolvem em programas cívicos educacionais e de saúde ou de desenvolvimento industrial e tecnológico, participam de missões de paz das Nações Unidas. “General da banda” desacatava alegremente a cadeia de comando das três forças e, para não haver dúvidas, o cantor Blecaute, seu melhor intérprete, só se apresentava em público paramentado de general: fardamento verde brilhoso, dragonas e alamares dourados e uma profusão de medalhas de latão. Era ano de eleições presidenciais, e não sabemos se “General da banda” aludia a um personagem em particular, como, por exemplo, ao general Eurico Dutra, que deixava a presidência da República após um governo desastrado. Ou se fazia referência ao enxame de generais que pontificavam na vida pública brasileira desde 1937, quando as forças armadas derrubaram o governo constitucional em nome da segurança da pátria e garantiram a ditadura do Estado Novo – “Em 1930, eu fiz a revolução com os tenentes; em 1937, com os generais”, resumiu, meio a sério, meio gracejando, Getúlio Vargas.

Não era só retórica. Vargas abriu a porta, e os generais entraram. O exército foi o mais sólido e confiável aliado da ditadura do Estado Novo, seu principal instrumento de controle, e emergiu, em 1945, com papel redefinido. Tornou-se uma instituição moderna, com armas, equipamentos e tropa condizentes; também havia se transformado em algo qualitativamente diferente e, politicamente falando, bem mais letal: uma força autônoma, intervencionista, convicta de ser a única em condições de formar uma elite bem treinada, organizada, com visão nacional e preparada para atuar na cena pública com legitimidade própria – e generais iriam agir movidos por essa convicção ao longo da nossa história republicana. O general mais importante da época, Góis Monteiro, costumava alardear o resultado da mudança: “Sendo o exército um instrumento essencialmente político” – ele dizia –, seu comando havia “acabado com a política no exército para os militares poderem fazer livremente a política do exército”.

O general Góis Monteiro foi um oficial competente, chefiou de fato o processo de transformação da instituição militar em dupla com Dutra, sentia-se orgulhoso da obra e era um boquirroto incorrigível. Também foi próximo dos integralistas, notório admirador da Alemanha nazista e um general poderoso; os detratores adoravam anunciar as transformações por que passou seu estado natal, Alagoas, depois que o general se meteu na política – “virou Alagóis”, explicavam. Mas uma marchinha é repleta de ironias e duplos sentidos, e, talvez, “General da banda” tivesse na mira um alvo mais amplo: os generais brasileiros sofriam de uma compulsão para intervir na política nacional e participar do poder – “cutuca por baixo que ele vai…”, pressagiava, na mosca, a letra da canção.

É bem verdade que a palavra “general”, na sua origem, engata funções militares e políticas. A república romana esperava duas coisas de seus magistrados, além da completa lealdade aos valores republicanos: capacidade de liderança política no Fórum para decidir sobre as questões públicas e, se preciso fosse, competência para comandar um exército em campanha. Não era pouca coisa. Em Roma, um comandante de exército devia ser saudado como imperator, e daí deriva a palavra “general”: quem recebia comando militar tinha imperium, isto é, passava a ter mando para ordenar aos soldados e fazer justiça. Deu no que deu. Alvo da cobiça de poder de Júlio César, um dos generais mais capazes da história de Roma – ao lado de Cipião Africano e de Pompeu –, a República esvaziou-se de seu ideário mais próprio e acabou corrompida por seus senadores.

Evidentemente, “General da banda” não chegou tão longe. Nem precisava. No Brasil, a República instalada em 15 de novembro de 1889 foi o resultado de um golpe militar. Quando Deodoro da Fonseca saiu de casa naquela manhã, em direção ao quartel-general do exército, defronte ao campo de Santana, no Rio de Janeiro, estava convencido a derrubar o gabinete do visconde de Ouro Preto. Cutucado por Benjamin Constant, Lopes Trovão, José do Patrocínio e um punhado de jovens oficiais republicanos liderados pelo capitão Mena Barreto, ele foi em frente “fazer a República”, como dizia Martinho Prado Júnior, um civil injuriado com a interferência dos quartéis no movimento. Deodoro era marechal de campo, a patente recebida pelo general que esteve em ação na guerra – no seu caso, a Guerra do Paraguai –, e acabou eleito, por via indireta, o primeiro presidente da República. Foi nomeado “generalíssimo das forças armadas brasileiras” pelo exército, governou boa parte do tempo como ditador, tinha horror a negociar com o Congresso e renunciou nove meses depois da posse.

Seu vice, Floriano Peixoto, outro marechal, voltou da Guerra do Paraguai com o peito coberto de medalhas conquistadas na retomada de   Uruguaiana, nos pântanos que circundavam o lago de Tuiuti, no ataque a Curuzu e nos campos de Cerro Corá. Era um militar impecável, mas com uma irreprimível vocação para ditador. Guardava a Constituição na gaveta, explicava aos auxiliares, e, enquanto ela estava lá, ia mandando prender os adversários. Prendeu generais, deputados, senadores, jornalistas, funcionários públicos e deportou boa parte deles para prisões na Amazônia – a “antessala do inferno”, como se dizia então. Na realidade, Floriano engavetou a Constituição no dia da posse: jamais convocou as eleições presidenciais previstas para se realizarem dois meses depois por conta da renúncia do titular do cargo, e sabia bem o tamanho da ilegalidade que estava cometendo – só assinava documentos com o título de vice-presidente da República.

Em 1892, 13 generais perderam a paciência com o marechal e publicaram um manifesto exigindo eleições presidenciais; não satisfeitos, convocaram, em conjunto com lideranças civis, uma passeata cívica no Rio de Janeiro. Floriano nem piscou: mandou demitir e aposentar do serviço ativo os generais envolvidos. No dia seguinte, saiu de casa, no subúrbio de Piedade, desceu do bonde no largo da Lapa, meteu-se a pé entre os manifestantes e deu voz de prisão a todos que foi encontrando pela frente, civil ou militar, no trajeto até o palácio do governo. Desterrou uma parte dos presos para a Amazônia e trancafiou os demais nas fortalezas militares no entorno da baía de Guanabara. Quando soube que o jurista Rui Barbosa tinha entrado com habeas corpus a favor dos prisioneiros no Supremo Tribunal Federal e que os ministros estavam reunidos para discutir o assunto, despachou um recado curto ao STF: “Se o tribunal conceder habeas corpus, eu não sei quem dará aos juízes amanhã o habeas corpus de que, por seu lado, necessitarão”. O pedido de habeas corpus foi rapidamente engavetado pelo Supremo ao lado da Constituição, e Rui Barbosa afivelou as malas para mais uma temporada em Londres.

Depois do governo de Floriano, é fácil perceber o intervencionismo militar na vida pública nacional. E talvez o motivo pelo qual a marchinha se revele tão próxima aos nossos assuntos contemporâneos venha dessa intuição que ela traz dobrada no seu refrão, aludindo à constante disposição dos generais a se sobrepor às autoridades civis. Mas, é claro, seus autores não podiam prever o futuro. Por mais atraente que fosse a ideia, nenhum deles podia imaginar que, na madrugada de 31 de março de 1964, o general Olympio Mourão Filho, comandante da 4ª Região Militar, sediada em Juiz de Fora, Minas Gerais, iria atropelar a conspiração contra o governo de João Goulart e descer com sua tropa em direção ao Rio de Janeiro para tentar tomar de assalto o Ministério da Guerra e depor o presidente da República. Era uma típica quartelada – o general Mourão tinha pressa, estava próximo da compulsória e tentava potencializar seu papel na chefia da conspiração. Deu tudo errado: Mourão acabou neutralizado com rapidez pelas lideranças militares que, de fato, iriam ocupar o poder – “em política, eu sou uma vaca fardada”, concluiu desolado o general quando se deu conta do acontecido.  O golpe tinha uma agenda própria, o Brasil acabava de ingressar numa ditadura que duraria 21 anos, e cinco generais do exército se revezariam no comando do executivo: Castello Branco (1964-1967); Costa e Silva (1967-1969); Garrastazu Médici (1969-1974); Ernesto Geisel (1974-1979); e João Figueiredo (1979-1985).

Os compositores de “General da banda” tampouco poderiam supor que, no século 21, os generais ainda relutariam em adotar uma nova perspectiva comum sobre o modo como a pátria dever ser ordenada. Em setembro de 2017, outro general Mourão – Antônio Hamilton Mourão – tratou de informar aos brasileiros a opinião de seus “companheiros do Alto-Comando do Exército”: “Nós teremos que impor isso [uma intervenção militar]” ao país caso “o judiciário não solucione o problema político retirando da vida pública esses elementos envolvidos em todos os ilícitos”, declarou publicamente. Um dos envolvidos era o presidente da República, Michel Temer, denunciado, pela segunda vez, por participação em organização criminosa e obstrução de justiça.

Trinta anos depois da promulgação da Constituição de 1988 e 16 anos depois do decreto assinado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso classificando como transgressão disciplinar, passível de punição, qualquer manifestação pública não autorizada de um militar da ativa sobre assuntos políticos, ainda tinha general convencido de que sua vontade devia prevalecer sobre a autoridade civil, e não o inverso. Em 3 de abril de 2018, véspera do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no STF, o comandante do exército, general Eduardo Villas Bôas, declarou pelo Twitter: “Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do país e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais”. E arrematou, ambíguo: o exército “repudiava a impunidade” e se mantinha atento “às suas missões constitucionais”. Faltou explicar aos brasileiros o que o general realmente queria dizer com tudo isso.

Canções não resolvem nenhum problema – elas não podem desfazer o passado nem adivinhar o futuro. “General da banda”, no máximo, alude a um padrão: generais saem dos limites de sua profissão e se intrometem na vida civil do país quando ocorre a combinação de pelo menos três ingredientes: crise política aguda; algum estímulo vindo de pessoas e setores sociais dispostos a ultrapassar as barreiras constitucionais para alcançar seus objetivos; fragilidade das agências de governo – executivo, legislativo, judiciário. Mas canções podem narrar a história a nós mesmos e a outros, para pensarmos sobre o que estamos fazendo. Afinal, uma marchinha, por mais que se expanda em comentários, sempre volta ao seu refrão: “Oi cutuca por baixo que ele vai…”.

 

Historiadora e cientista política, Heloisa M. Starling (1956) é coordenadora do Projeto República: núcleo de pesquisa, documentação e memória, vinculado à UFMG, universidade onde é titular livre de história do Brasil. É autora de Ser republicano no Brasil Colônia e, em parceria com Lilia M. Schwarcz, de Brasil: uma biografia, ambos publicados pela Companhia das Letras

 

Referências

Adrian Goldsworthy, Em nome de Roma. São Paulo: Crítica, 2016.

Emília da Costa, O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. São Paulo: Editora Unesp, 2006.

Frank D. McCann, Soldados da pátria: história do exército brasileiro 1889­1937. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

Heloisa M. Starling e Lilia M. Schwarcz, Brasil, uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

J. Natale Netto, Floriano, o marechal implacável. São Paulo: Novo Século, 2008.

José Murilo de Carvalho, Forças armadas e política no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

Luiz Tatit, “Marchinha e samba-enredo”, in Todos entoam: ensaios, conversas e canções. São Paulo: Publifolha, 2007.

 

 

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