Vice
Por LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO
A serrote 29 apresenta uma seção especial em que seis intelectuais brasileiros refletem sobre figuras centrais da política nacional, o “Pequeno dicionário de grandes personagens da República”, com verbetes escritos por Renato Lessa (Candidato), Noemi Jaffe (Eleitora), Heloisa M. Starling (General), Mário Magalhães (Jornalista), Conrado Hübner Mendes (Juiz) e Luiz Felipe de Alencastro (Vice).
No verbete “Vice”, Luiz Felipe de Alencastro defende que “os cargos de vice devem ser extintos”. Para o historiador, o passado brasileiro mostra que “os vices falseiam os mandatos eleitorais e que a vice-presidência desestabiliza o Executivo e toda a política nacional”. Leia abaixo o verbete completo.
A Constituição de 1988 instaurou um regime presidencialista que guardou uma característica política americana previamente adaptada ao Brasil, o cargo de vice-presidente, e introduziu uma regra eleitoral cuja matriz é francesa, a eleição em dois turnos. Nessa combinação franco-americana, o posto de vice-presidente no Brasil foi radicalmente alterado e se tornou disfuncional.
Nos Estados Unidos, com o bipartidarismo e a eleição em um só turno, as primárias estabelecem a complementaridade política entre o vice e o presidente na mesma chapa partidária. A prática política e eleitoral faz com que o presidente e o vice venham de estados diferentes. O vice assume a presidência do Senado quando há empate nos votos dos senadores, exercendo o voto de minerva para definir a decisão. Mas em geral a vice-presidência tem pouco peso. John N. Garner, vice nos dois primeiros mandatos de Roosevelt, marcou a história com a frase vulgar em que definiu a inutilidade do cargo: não vale uma mijadela morna (“The job is not worth a bucket of warm piss”).
De todo modo, o vice só assume a presidência nos casos radicais de impeachment, morte ou doença grave do presidente, nunca quando este viaja para o exterior. Trump, em visita à China ou ao Canadá, continua presidente em exercício. Nas últimas décadas, só houve três casos em que o vice assumiu, sendo acting president por algumas horas apenas, enquanto os presidentes estavam hospitalizados: Bush pai, durante uma operação de Reagan em 1985, e Cheney em 2002 e 2007, quando Bush filho fez exames de colonoscopia. No Brasil, o vice, com toda a sua pomposa inutilidade, assume o executivo federal cada vez que o presidente se ausenta do país.
O cargo de vice sempre causou problemas no Brasil. A Carta de 1946 pautava a eleição simultânea, mas separada, de um presidente e de um vice, criando um descompasso político-partidário. Em 1961, o descompasso se transformou em crise, com a renúncia de Jânio e o veto dos militares à posse do vice João Goulart, herdeiro do varguismo. Três anos depois, a crise deu início a duas décadas de ditadura.
Para evitar novos desastres, a Constituição de 1988 subordinou e restringiu as funções de vice. Em primeiro lugar, retirou-lhe a função de presidente do Senado com direito ao voto de minerva, que a Constituição de 1946 copiara da americana. Mais ainda, o parágrafo 1° do artigo 77 explicitou a de- pendência do vice ao presidente: “A eleição do presidente da República importará a do vice-presidente com ele registrado”. “Importar” significa, neste caso, “ter como consequência ou resultado”. Ou seja, o posto de vice é tributário da eleição presidencial. Ao seu turno, o artigo 79 definiu o vice como um eventual auxiliar do chefe do executivo: o “vice-presidente da República, além de outras atribuições que lhe forem conferidas por lei complementar, auxiliará o presidente, sempre que por ele convocado para missões especiais”. O vice é um auxiliar subordinado à presidência. Sua legitimidade é derivada da legitimidade originária conferida ao presidente pelo sufrágio universal. Com a introdução da votação em dois turnos, essa subordinação foi reiterada nas duas etapas da eleição.
Neste modelo franco-americano de presidencialismo, a vice-presidência funcionou a contento nos governos FHC e Lula, os quais escolheram vices discretos e republicanos. Com Temer, a vice-presidência gerou um desastre político. Ao inverso de seus predecessores, Temer complotou contra a presidente. Em dezembro de 2015, em plena manigância para derrubar Dilma, ele reclamou de ser tratado como um “vice-presidente decorativo”. Já na presidência, por duas vezes, em setembro de 2016 e em fevereiro de 2018, reiterou que havia sido apenas um “vice decorativo”, justificando assim a manobra que o levou do Jaburu ao Planalto. A insistência em desculpar sua artimanha política ilustra, na hipótese mais generosa, um desconhecimento da sua job description: nos termos da Constituição, o cargo que ele ocupou é mesmo “decorativo”.
Tal entendimento foi recentemente explicitado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Em pleno naufrágio do governo Temer, numa entrevista publicada em 22 de abril de 2017 pelo jornal lisboeta Público, FHC sublinhou a legitimidade restrita do atual presidente. Respondendo a uma pergunta sobre a baixa taxa de popularidade de Temer, FHC disse: “Ele não foi eleito pelo voto popular, então perguntar a popularidade dele é uma inconsequência”. Embora FHC não tenha explicado mais em detalhe tal “inconsequência” – e a mídia brasileira não tenha repercutido nem comentado sua declaração –, a definição do ex-presidente é certeira: Temer não tira sua legitimidade do sufrágio direto, mas dos votos que Dilma recebeu e do programa que ela defendeu perante os eleitores.
Agindo contra o espírito e a letra da Constituição, Temer arvorou-se o direito de permanecer na vice-presidência depois que seu partido rompeu com o governo federal. Perpetrado o impeachment, ele demonstrou a nocividade do vice-presidencialismo: exorbitando os limites de seu mandato, afrontou a soberania popular ao implementar um programa de governo oposto ao escolhido pela maioria dos eleitores. No meu entender, essa dupla traição, configurada pela derrubada da presidente e, na sequência, pela introdução de reformas políticas e econômicas contrárias ao programa votado pelos eleitores em 2014, caracteriza o impeachment e seus desdobramentos como um golpe parlamentar.
Nas esferas municipais ou estaduais, o cargo de vice também contribui para burlar as regras democráticas. Em São Paulo, João Doria renovou a tramoia inaugurada por José Serra em 2006, saindo da prefeitura para concorrer ao palácio dos Bandeirantes. Doria se engajara a cumprir a íntegra de seu mandato para dar vigência ao programa que defendeu perante os eleitores. Não há ilegalidade, mas há quebra do contrato eleitoral: os eleitores haviam escolhido Doria, e não Bruno Covas, para ser prefeito. No Paraná, numa manobra similar, o governador Beto Richa entregou o cargo a seu vice para se candidatar ao Senado. Tanto Doria quanto Richa cumpririam seus mandatos até o fim se não tivessem vices para garantir sua retaguarda. Tais expedientes desmoralizam as eleições, os mandatos políticos e a democracia. A história mostrou que os vices falseiam os mandatos eleitorais e que a vice-presidência desestabiliza o Executivo e toda a política nacional.
Como fazer então quando o presidente, o governador ou o prefeito sofrerem impeachment ou morrerem no exercício do cargo? Algumas constituições europeias podem servir de exemplo. Na França, quando há vacância da presidência por impeachment, desistência (como De Gaulle em 1969) ou morte (como Georges Pompidou em 1974), assume uma autoridade de um dos três poderes com um mandato restrito, mantendo-se os ministros e convocando-se nova eleição presidencial num prazo de 35 dias. Assume como presidente interino o presidente no Senado, órgão de pouco peso na França, porque os senadores são eleitos pelo voto indireto. No Brasil, a presidência interina de 35 dias poderia ser exercida pelo presidente do STF, que não representa nenhum partido político. Há um precedente, em 1945, quando o presidente do STF, José Linhares, assumiu a presidência de outubro daquele ano a janeiro de 1946, depois da queda de Getúlio e antes de eleição de Dutra. No caso dos prefeitos e dos governadores, buscaria-se solução análoga na esfera municipal e estadual.
A evolução recente das instituições brasileiras demonstrou a nocividade dos vices e do vice-presidencialismo. Os cargos de vice devem ser extintos.
Luiz Felipe de Alencastro(1946) é professor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas e professor emérito da Sorbonne. Historiador e cientista político, é autor de O trato dos viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII (Companhia das Letras, 2000).
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