A última traição de Truman – por Paulo Roberto Pires

A última traição de Truman – por Paulo Roberto Pires

 

Truman Capote, em foto de Otto Stupakoff (Acervo IMS)

Truman Capote viveu um dos mais dramáticos e bem pagos bloqueios criativos que se tem notícia. Em seus últimos 14 anos prometeu e não entregou o livro que, acreditava, seria o coroamento de sua obra. Cacifado pelo sucesso monumental de A sangue frio (este sim, uma obra-prima) conseguiu um total de US$ 1 milhão em adiantamentos para um romance à clef de inspiração proustiana que jamais foi concluído. Dos capítulos planejados – que seriam sete, como sete são os livros da Recherche –, três foram publicados na Esquire (e depois reunidos em Súplicas atendidas, título original do projeto) e um quarto, na verdade um esboço, acaba de ser revelado por outra revista devotada ao mundo glamouroso que ele tanto prezava, a Vanity Fair.

Nancy Schoenberger, uma professora de literatura americana, foi quem localizou “Iates e coisas” em meio aos papéis do escritor depositados na Public Library de Nova York. Gerald Clarke, amigo e biógrafo, confirmou autoria e título. Mas acha pouco provável que as seis magras páginas – cinco datilografadas e uma manuscrita que podem ser vistas aqui – correspondam a uma versão final do texto. Não deixa de ser irônico que em 1984, pouco depois da morte de Capote, o próprio Clarke tenha dado com os burros n’água na tentativa de localizar vestígios do livro.

Na Vanity, a bem conhecida história de Súplicas atendidas é contada por Sam Kashner, parceiro de Nancy Schoenberger em livros sobre Liz Taylor & Richard Burton e sobre bastidores de Hollywood. O jornalista tem intimidade com o personagem, importante em Quinta Avenida, 5 da manhã (Zahar), o ótimo making of de Bonequinha de luxo, o filme. E resume  a controvérsia numa fórmula muito simples: Capote criou para si uma armadilha ao morder a mão das dondocas que alimentaram sua vaidade – e não só ela. Basicamente, contou para todo mundo, trocando os nomes, histórias das diversas intimidades que frequentava. “Toda literatura é fofoca”, tentava, sem sucesso, se defender numa entrevista à Playboy.

As inconfidências causaram espécie, do desconforto ao desespero.

Foi nas páginas da Esquire que Babe Palley, mulher de Bill Paley, chefão da CBS, soube que o marido, numa pulada de cerca com a mulher de um governador de Nova York (provavelmente a segunda mulher de Nelson Rockfeller, diz Kashner), passou maus momentos tentando limpar a cama de uma mancha “do tamanho do Brasil” deixada por sua namorada num dia daqueles. Em tempo: Capote idolatrava-a e o casal o tratava como um filho.

A série de textos também lembrou ao grand monde que Ann Woodward, ex-call girl e mulher de William Woodward Jr., uma das grandes fortunas da cidade, havia simplesmente  assassinado a tiros o marido, alegando que o confundira com um ladrão. Ao saber do que seria publicado na revista – ela teria recebido um exemplar adiantado – Ann suicidou-se. Sua sogra dizia a quem quisesse ouvirem Nova York: “Bem, é isso aí. Ela atirou em meu filho e Truman a assassinou”.

“Iates e coisas” pega muito mais leve – talvez por ser ainda o embrião de um capítulo. Capote é, implicitamente, o narrador, que parte num cruzeiro pelo Mediterrâneo com uma certa Mrs. Williams, identificada como Katherine Graham, a toda-poderosa dona do “Washington Post” e homenageada pelo escritor no famoso Baile Preto e Branco que promoveu no Plaza Hotel em 1966. Os personagens viajam a convite de um milionário italiano, supostamente Gianni Agnelli, que na última hora não pode embarcar por conta de uma morteem família. Aosaber que, mesmo assim, o convite está mantido, o narrador suspira de alívio, discreta comemoração na qual é seguido por Mrs. Williams: “É isso que eu chamo de ter classe”.

Pouco acontece de objetivo. O que interessa é a marca da maldade de Capote. A paisagem grega, observada da ilha  de Stavros Niarchos, parece com “pedras do Arizona lançadas no Egeu. Era um pouco artificial, sinistra, mas sem dúvida uma obra de arte”. Os companheiros de viagem se entendem, a não ser pelo fato de ela adorar um turismo, tendo lido “vários livros” antes da viagem. “Eu odeio turismo; uma pedra velha é só mais uma pedra velha – provavelmente sou uma das poucas pessoas que, tendo visitado Atenas, não uma, mas muitas vezes, jamais tenha me aventurado para os lados do Panteon”.

O ponto alto da viagem é quando a dupla resolve experimentar haxixe. “Bateu forte em nós dois”, comenta o narrador. Deitados no convés – “porque não podíamos mais ficar em pé”, diz ele – são pura euforia. “Tudo parece muito engraçado. Hilário. Vamos dançar”, diz a respeitável senhora, doidona. E, ao fim do passeio, satisfeita, comemora a descoberta: “Foi o melhor momento que tivemos. Eu não estou com um pingo de ressaca”.  E o narrador fulmina: “É muito melhor do que sair por aí no calor, suando que nem louco, para olhar um monte de pedra velha”.

Bem menos engraçado é o que acontece nestes 14 anos decisivos. Primeiro deslumbrado com a notoriedade de A sangue frio, depois deprimido pelas (naturais) reações de seus ex-amigos aos textos de Súplicas atendidas, Capote bebe o que pode e não pode. Recusado pelo dinheiro antigo de Nova York, cai de boca na notoriedade do momento, passando a frequentar compulsivamente o Studio 54 e a usar a droga da vez, a cocaína. Morreu a um mês de fazer 60 anos, obeso, rejeitado e profundamente infeliz.

Outra língua de trapo, o aristocrático Gore Vidal cravou em “Palimpsesto”, o primeiro e melhor volume de suas memórias, uma retrato cruel e preciso do escritor: “Truman Capote tentou, com algum sucesso, entrar no mundo do qual eu tentei, com algum sucesso, escapar”.

5 respostas para A última traição de Truman – por Paulo Roberto Pires

  1. Pingback: O CRIME DE TRUMAN CAPOTE – rutilonada

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *