O espírito de corpo contra o espírito de porco

O espírito de corpo contra o espírito de porco

BERNARDO CARVALHO

Ninguém de bom senso duvida que Olafur Eliasson seja um grande artista. O interessante é saber como procede um gran­de artista hoje. Um amigo escultor, ao saber que eu ia visi­tar o ateliê do criador dos espetaculares Duplo pôr do sol (1999), Weather Project (2003) e Cachoeiras de Nova York (2008) – entre outros ilusionismos, simulacros e paradoxos espaciais –, me saiu com uma tautologia carregada de sar­casmo: “Ele é um homem do seu tempo”. Poucos dias antes, um poeta islan dês tinha se referido a Olafur como “um ho­mem do renascimento”, repetindo o bordão um tanto sur­rado ao qual se costuma recorrer para dar conta da ampli­tude de seus interesses entre arte e ciência. E isso na mesma mesa onde se discutia a morte dos oceanos e o crescimento descontrolado e aparentemente irreversível das colônias de águas-vivas, consequência de um desequilíbrio ambiental provocado pela ação humana.

Olafur Eliasson pode até querer ser um homem do renas­cimento. Mas o que informa a obra desse homem é o fra­casso do renascimento, ou seu desdobramento necessaria­mente trágico: um mundo à beira do fim.

Portanto, só lhe resta comportar-se como um menino brincando de cientista – se, como parece ser o caso, quiser celebrar a ciência numa era em que ela passou a representar ao mesmo tempo a salvação e a destruição, o futuro e o fim confundidos. Em seu ateliê, em Berlim, a ciência é infantilizada, reduzida a jogo e ficção, igualada a arte. O artista retém apenas o efeito lúdico do experimento, a experimentação como forma, levando a percepção a seus limites, à ilusão de óptica e ao trompe l’oeil, por meio da criação de ambientes e situações paradoxais. É um modo de lidar com as contradições tanto da ciência como da arte, anulando os efeitos nefastos e indesejáveis de ambas.

Em princípio, a arte não salva nem mata. Ou pode até fazer as duas coi­sas, simbolicamente. É diferente da arte aplicada que emula a funcionali­dade da ciência ao criar produtos de uso. A ideia por trás do projeto artístico de Olafur é menos aplicar a arte que desaplicar a ciência, desfuncionalizá­-la, inutilizar seu potencial negativo em obras de arte cada vez mais abs­tratas, bem mais próximas de uma idealização da ciência, da imaginação e da especulação, que da criação de utilidades e produtos. E assim ele parece acreditar que pode, ao mesmo tempo, atribuir um novo sentido, educa­tivo e messiânico, à arte, num momento em que a voracidade mercadoló­gica faz que ela corra o risco de se autodevorar, reduzindo tudo ao mesmo, como as águas-vivas transformando os oceanos em ácido.

Nos últimos anos, Olafur vem promovendo uma série de encontros interdisciplinares. Faz parte de um projeto de troca de experiências entre representantes de diferentes atividades e campos do saber. No ateliê berli­nense, instalado numa fábrica de cervejas desativada, onde o artista traba­lha com dezenas de assistentes e estudantes, esses encontros receberam um nome que faz lembrar as séries de ficção científica do tempo em que Olafur era criança e devia ver televisão: Life in Space. É ali também que funciona a escola comandada pelo artista, o Instituto para o Experimento Espacial. Maquetes e projetos estão espalhados por mesas e bancadas. E um jardim com plantas comestíveis é cultivado organicamente no telhado. Tudo no espírito mais positivo possível. Faz lembrar uma feira de ciências.

A jornada de confraternização deste ano ganhou um nome mais ambi­cioso e arriscado: Life is Space. Cinquenta convidados (entre colaboradores, patrocinadores, curadores, marchands, críticos, filósofos, cientistas e artis­tas), além de assistentes e alunos, passaram um dia ensolarado de junho no ateliê de Olafur, entre reflexões e atividades que começaram com um exercício de meditação e terminaram com o alerta de um cientista sim­pático, de cabelos brancos (o bioquímico Otto Rössler), sobre os riscos e a proximidade do fim do mundo, enquanto a algumas centenas de metros um grupo de neonazistas fazia uma provocação pública diante da sede do Partido de Esquerda (Die Linke), por ocasião do aniversário do mas­sacre da sublevação operária de 17 de junho de 1953 pelo governo comu­nista da Alemanha Oriental. E embora o modo como acontece o encontro no Instituto para o Experimento Espacial não esgote nem comprometa a obra do artista, termina por esclarecer algumas de suas orientações mais fundamentais.

Salta aos olhos, por exemplo, o espírito benevolente e comunitário que, reproduzido e reiterado como norma tácita, acaba não apenas banindo toda manifestação negativa, mas, consequentemente, camuflando contra­dições essenciais à arte e ao pensamento, sem as quais os trabalhos mais excepcionais de Olafur tampouco poderiam existir. É difícil imaginar como uma arte pode ser ao mesmo tempo excepcional e consensual, sem ambi­guidade e sem contradição. E, no entanto, é isso o que todos parecem bus­car ali, em uníssono, como se filiados a uma ONG do bem (o pleonasmo é proposital). O consenso é um valor essencial ao mundo pós-utópico, desen­cantado com as rupturas e com os desvios. A norma é banir o espírito de porco para manter o espírito de corpo. Analogias entre as coisas mais díspa­res servem para mitigar diferenças, aplainar arestas, dar uma unidade har­moniosa ao todo. Onde não há contradição, tampouco pode haver choque ou conflito; só convivência pacífica. É uma fantasia análoga à do espírito holístico new age. O inimigo é o velho ideal da exceção individual, das sub­jetividades divergentes e das singularidades radicais.

Não é por acaso que os trabalhos do dia começam com um exercício de meditação. O instrutor Karunabandhu pede aos convidados que fechem os olhos e mantenham as costas eretas. A meta é “amar a si mesmo”. Ele fala em “fazer do seu desejo o desejo do outro”, em “trazer para si a felici­dade”. Pede que cada um se concentre “num ente querido pelo qual não sinta atração sexual e que esteja vivo”. Os convidados riem. Um pouco. O exercício dura dez minutos. E enquanto as pessoas de olhos fechados se concentram nos entes queridos, máquinas fotográficas disparam por todos os lados. Imagino como deve ser difícil para um adepto da meditação con­centrar-se no que quer que seja –— esteja o ente querido vivo ou morto – com tanta distração sonora ao redor. Para mim, que não sou adepto de nada, é obviamente impossível. Abro os olhos e deparo com uma cena surreal: um punhado de fotógrafos registram, em close, o rosto das pessoas de olhos fechados. A manhã começa errada. A cena me deixa com uma impressão de engodo e autoengano. A irritação toma conta de mim. Decido exprimir meu desconforto discretamente, mantendo os olhos abertos, enquanto o resto dos convidados finge que medita sob o barulho irritante das câmeras que registram tudo.

Quando afinal os convidados abrem os olhos, sempre sob as instruções do mestre Karunabandhu, o performer e street dancer dinamarquês mr. Steen entra em cena e atravessa a sala, reproduzindo, como um mímico faria na época em que os mímicos não eram considerados ultrapassados e cafonas, o movimento de alguém correndo em câmera lenta, quadro a quadro. Olafur dá as boas-vindas. Explica, para quem, ao contrário de mr. Steen, não frequentou os encontros anteriores, que essa é a quarta vez que se reúnem: “Vocês são livres para ir embora ou não ficar interessados momentaneamente”. Fala de valores. É isso o que estará em jogo durante todo o encontro, nem arte nem ciência, mas valores. Agradece os patrocínios. O encontro (incluindo hotéis e passagens para os convidados) foi financiado pela empresa dinamarquesa Kvadrat, fabricante de tecidos especiais e cola­boradora do artista. E aí, depois de explicar que não consegue criar sozinho e dar crédito aos colaboradores presentes, ele diz uma frase que, na sua inten­ção generosa, me faz estremecer: “Eu sou todos vocês”.

Como acontece com outros grandes criadores (sobretudo em teatro e cinema), o trabalho aqui depende de um processo no qual o artista pre­cisa convencer os demais participantes de que eles também estão criando. E, nesse sentido, o modelo renascentista parece pertinente. O artista pre­cisa estar cercado de colaboradores para criar, mas essa é, no final das contas, para além das exigências que as dimensões industriais de uma produção como a de Olafur impõem, uma necessidade basicamente subjetiva e pessoal. Não é mais o artista romântico, isolado na montanha. Ele precisa da troca, da companhia, da presença dos outros, embora termine por criar um trabalho que é absolutamente autoral e individual. Por isso, precisa convencer seus colaboradores, ao contrário do que ocorria no renascimento, em que esse era o modo de produção natural, de que só há arte coletiva. Não foi à toa que o modelo do artista romântico se tornou o bode expiatório, o inimigo número um, o demônio e o mal, a imagem do anacronismo, e talvez por isso mesmo volte em breve a adquirir algum valor subversivo.

Logo fica claro – quando começam as apresentações dos experimentos dos alunos e colaboradores –— que Olafur pode até ser todo mundo, mas nem todo mundo é Olafur. Karunabandhu, o mestre da meditação, aproveita a brecha aberta pelo próprio artista ao dizer que estávamos livres para ir embora quando bem entendêssemos e se retira antes que a responsável pela primeira obra (uma animação digital na qual uma criatura entre cão e raposa fala sobre metamorfose e máquina do tempo) possa explicar o que pretendia com seu experimento.

Os experimentos seguintes derivam por exercícios lúdicos de percepção e interação, que são a base de todo o resto. Por exemplo: cada convidado fita um ponto na sala e depois o descreve. O conjunto das descrições deve criar um “ponto de vista coletivo” do espaço. Ou ainda: cada um escolhe um “modelo” entre os participantes e passa a observá-lo e a imitar seus gestos, sem que o modelo perceba, até que toda a sala se transforme numa coreogra­fia coletiva de gestos reproduzidos. Os exercícios lembram as experiências de Lygia Clark e Lygia Pape em outros tempos. A graça, entretanto, aumenta conforme aumenta também a exigência de desprendimento. Seguindo as instruções de duas coreógrafas, os convidados são levados a engatinhar pela sala, reproduzindo os movimentos dos leões, como crianças brincando de animais. A atmosfera é de laboratório teatral, mas sem a violência e a impon­derabilidade que muitas vezes a experiência teatral desperta. O exercício prossegue enquanto um filósofo austríaco fala da presença do homem no cosmos e associa a indolência à criatividade e ao subdesenvolvimento, em oposição ao capitalismo. O exercício pretende mexer com a percepção que o homem tem do ambiente, fazê-lo ver o mundo do ponto de vista animal. Para o futuro e o bem de ambos, homem e animal. Tudo é registrado em som e imagem.

Depois do almoço, a violoncelista islandesa Hildur Guãnadóttir se apre­senta com um mecanismo que reproduz em rabiscos circulares os sons da música, as vibrações do corpo e da sala. Os convidados cantam. Todas as manifestações tendem a reiterar o mesmo ponto: a obra é o resultado (ou a transcrição) de uma ação (ou de uma não ação) coletiva. O grupo é um corpo – e o corpo coletivo é o artista. É um lugar-comum do nosso tempo. Só que aqui a ênfase está numa espécie de sonho de volta à infância como possibilidade de salvação pela redescoberta do mundo. Somos todos convi­dados a brincar e a nos surpreender com os efeitos, as trapaças, os enganos e os limites da nossa percepção individual, como crianças tocando os obje­tos pela primeira vez, ouvindo novos sons, descobrindo as cores. É preciso recomeçar. Já não é possível renovar a experiência do mundo simplesmente pelo acúmulo de descobertas. Basta ver aonde o conhecimento nos levou. Então, como produzir encantamento numa era de desencanto? Como pro­duzir “bom conhecimento”? A resposta de Olafur e de seus colaboradores em Life is Space é reduzir o corpo a seu estágio primevo, de antes de o sujeito se constituir como uma entidade individual e autônoma, quando a per­cepção ainda é capaz de surpreendê-lo, para que possamos nos reinventar como coletividade. O “Poema de duas palavras”, declamado em seguida pelo arquiteto Eric Ellingsen, ilustra bem essa vontade ao reduzir as palavras – pela repetição do som das vogais num “looping respiratório” (inspirando e expirando as vogais, contínua e coletivamente, em coro, até heart virar art) – ao estágio anterior ao sentido, ao corpo, à percepção mais básica, de onde tudo poderia idealmente recomeçar, onde “arte” e “coração” passam a ser indistintos, porque emanam do mesmo sopro.

O corpo é, afinal, esse lugar para onde o idealismo converge. As experiên­cias sensoriais, na sua abstração, na sua imaterialidade, apontam sempre para esse mesmo ponto físico, o corpo como pivô da percepção, antes de se configurar como sujeito autônomo submetido à razão. E não é por acaso que em seguida é proposta uma sessão de cócegas coletivas. Para além do humor, do riso e do divertimento, as cócegas servem de metáfora para esse estágio em que o sujeito perde o autocontrole, e o corpo passa a imperar não mais como garantia de uma autonomia individual (não é possível fazer cócegas em si mesmo), mas como cruzamento sensorial de percepções (o corpo só existe em relação).

Logo se entende a razão de reduzir tanto a ciência como a arte à percep­ção. É um modo de igualá-las, para além/aquém da razão, e assim “resol­ver” suas contradições (sociais, econômicas etc.), agora que a consciência do limite e do esgotamento de ambas se dissemina num sentido generalizado, imobilizador e difuso de fim de mundo. O problema é que essa redução pre­cisa se fazer acompanhar de algum valor coletivo, moral e altruísta, que a justifique e sustente. E é aí que a benevolência e as boas intenções come­çam a criar novas contradições para o trabalho artístico. O impasse fica claro quando a neurocientista Tania Singer fala, com base em pesquisas recentes, de sincronização de pupilas, de compaixão e empatia, e de como podemos influenciar uns aos outros sensorialmente, já que estamos todos conectados. O objetivo é “atrair a boa energia” e “promover a compaixão para acabar com as guerras”. É claro que, para dissuadir o mal, as “pupilas do bem” (perdoem o trocadilho) precisam entrar em contato com as pupilas do mal (daqueles indivíduos que se recusam a fazer parte do corpo coletivo harmonioso). Ime­diatamente, uma historiadora reage entre os convidados. Mas é sintomático que sua reação já não seja contra o princípio de mecanismos de manipulação e influência neurossensorial a impor um modelo do bem, mas antes tenha sido provocada pela repulsa a ter de se relacionar de alguma forma com um facínora (mesmo que seja apenas ao pôr suas pupilas em contato com as dele) para poder influenciá-lo. Quando o corpo é reduzido às percepções mais básicas, é natural que a inteligência também saia comprometida.

Felizmente, o constrangimento se resolve em brincadeira, com uma “ioga do riso” proposta pelo próprio Olafur. O artista se revela um showman e um gozador. É impossível não ser contagiado e influenciado pelo riso que ele oferece como modelo a reproduzir. De repente, a sala inteira está rindo, a imitá-lo. Sua presença de espírito, reintroduzindo o jogo quando o barco parecia atolar na lama dos bons sentimentos, faz pensar que talvez haja, afinal, alguma ironia nesse processo de infantilização da ciência. E, por um instante, eu me pergunto se todo o encontro não passaria, no fundo, de uma grande peça pregada pelo artista em seus convidados. Seria genial. Mas inve­rossímil demais. Porque revelaria um sentido bem menos altruísta para a necessidade de colaboradores, reinstaurando o artista no lugar de gênio individual e comprometendo todo o seu discurso.

Ainda assim, ao conceder ao bioquímico Otto Rössler a fala de encer­ramento das atividades, Olafur vai reinstalar a ambiguidade que parecia perdida e sem a qual fica difícil distinguir o trabalho artístico da doutrina e da palavra de ordem. Pondo a ciência em questão, Rössler lança, parado­xalmente, dúvidas sobre seu próprio discurso. Quem não o conhece tam­pouco sabe o que pensar. Rössler é um velhinho amável e simpático. Mas sua investida contra o que é compartilhado por todos não condiz com a bene­volência de sua figura. O bioquímico está preocupado com o fim do mundo, como todos. Mas o que ele diz ninguém mais diz. Está sozinho. E mesmo assim continua falando, contra todos, contra o consenso e o bom senso, como falaria um artista que correspondesse ao modelo do gênio romântico, louco e individualista, hoje considerado anacrônico pela maioria dos cura­dores, críticos, artistas e marchands. Não dá para saber se estamos diante de um cientista de verdade ou de um maluco: Rössler aproveita a oportunidade para lançar mais um apelo contra um dos maiores experimentos já conce­bidos pela ciência: o grande acelerador de partículas (LHC), construído pela Organização Europeia de Pesquisa Nuclear (CERN), na Suíça. Desde 2008, o bioquímico alemão vem criticando em público o grande acelerador de partículas (chegou a impetrar uma ação contra o seu funcionamento), aler­tando para o perigo de um buraco negro, produzido em seu interior, engolir o planeta. O que Rössler diz é incrível. Seu discurso frágil e benévolo faz a ciência terminar o dia como ficção científica. O velho bioquímico poderia muito bem interpretar o papel do herói num típico filme de Hollywood, um cientista maluco e desacreditado por todos, mas cuja dissonância da palavra ainda tem o poder de salvar a humanidade de si mesma. A depender, é claro, de um menino determinado a fazer o restante do mundo ouvi-la. E não é difícil imaginar a quem foi reservado o papel do menino nesse filme escrito e dirigido por Olafur Eliasson.

 

 

BERNARDO CARVALHO (1960) é escritor, autor de, entre outros, O filho da mãe (200g), Mongólia (2003) e Nove noites (2002), os dois últimos vencedores, respectivamente, dos prêmios Jabuti de melhor romance e Portugal Telecom. Em 2011, mudou-se para Berlim para uma temporada dentro do programa de bolsas do DAAD, órgão de intercâmbio cultural do governo alemão.

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