Martinha versus Lucrécia

O processo de fundo é a formação da nacionalidade nas condições herda­das da colonização, inevitavelmente fora de esquadro, se o esquadro forem as autoidealizações da Europa adiantada. Traduzindo os termos pelo seu desempenho, “local” é o déficit de mediações, o fosso escancarado entre o dia a dia semicolonial e a norma do mundo contemporâneo; e “universal” é o consagrado e obrigatório, a presunção de exemplaridade que se torna uma quimera ou uma estupidez quando aplicada sem mais à mesma circunstân­cia. As mediações não se podem fabricar por um ato de vontade, do dia para a noite. Ao desenvolver uma escrita em que os dois registros contracenam a seco e com ironia, incongruentes, complementares e des­cambando no seu contrário, Machado criava um equivalente estilístico dessa constelação histórica, além de colocá-la em movimento, com seus fortes momentos de verdade. O uni­versal é falso, e o local participaria do universal se não esti­vesse isolado e posto à parte, um degrau abaixo.

Enquanto outros escritores buscavam a cor local em regiões e classes pouco afetadas pelo progresso, onde um citadino em dia com os tempos a admite facilmente, com bonomia e sem custo para a autoestima, Machado foi detec­tá-la em nossas classes mais civilizadas, ou universais, ou residentes na corte. O frequentador carioca de Tito Lívio, que zomba dos compatriotas desfavorecidos e no íntimo se ofende com o destino que lhes cabe, à margem do mundo, não é menos pitoresco do que Martinha. Mas não se pode dizer que seja uma figura localista, pois os seus ressenti­mentos derivam claramente da história contemporânea em sentido amplo, a qual expressam e cujo quadro de desigual­dades e humilhações internacionais não diz respeito só aos brasileiros, mas a todo mundo – embora de maneiras dife­rentes.27 Ao fazer dessa personagem o seu narrador, ou, por outra, ao desuniversalizar o narrador cosmopolita – uma operação formal decisiva –, Machado dessegregava a maté­ria local. Esta saía de seu confinamento histórico e via-se intermediada por um vivíssimo jogo de interesses de classe atrasado-modernos, nacionais e internacionais, disfarçados de universais. Por baixo da engrenagem retórica, lógica e estética do particular e do universal, pressionando-a e dan­do-lhe verdade, como um imenso subentendido, há luta de classes, luta entre nações, patamares desiguais de acumula­ção cultural, além de luta artística e crítica.

O referente remoto, que valida ou desqualifica a com­posição artística – se estivermos certos –, é a ordem mun­dial desequilibrada e em litígio, de que o país faz parte. A última palavra não pertence à nação, nem à cultura hege­mônica internacional, mas ao presente conflituado que as atravessa e desdiz. Entre outras coisas, este é uma fábrica de recalques, que reconhece só o que é consagrado pelo establishment, ou que se pareça com ele. E deixa esqueci­das a um canto as ex-colônias, que não correspondem ao padrão. Era o próprio desequilíbrio, sempre em processo de se renovar, que ditava aos escritores a angústia em que se expressa a condição periférica: o espírito vale porque, a despeito de desterrado, se filia ao repertório dos modelos europeus? Ou vive do apego ao viés peculiar, muitas vezes inaceitável e constrangedor, além de próprio e novo, do país em formação?28 Machado de Assis, que era avesso à unilate­ralidade, não só não tomou partido no caso, como tomou o partido de assumir e acentuar as decalagens, fazendo delas e de seu jogo – entre Roma e caixa-pregos – uma regra de sua prosa. Mais compósita e tensionada do que se diz, esta articulava uma parceria de incompatíveis. Casava a inves­tigação numerosa e original das relações sociais brasileiras ao recurso em grande escala ao pacote greco-romano-hu­manista-ilustrado-cientificista, em suma, universalista, em parte avançado, em parte um anacronismo irônico. É claro que a vizinhança imediata e metódica entre local e univer­sal, familiar e encasacado, informal e oficialista, contingente e clássico, arbitrário e ilustrado, nacional e estrangeiro, des­conhecido e célebre e, para tudo resumir, ex-colônia e paí­ses-paradigma, apontava para um denominador comum, ainda que movediço e dotado de inúmeras faces. As dualida­des recobriam-se em parte, expressavam-se uma pela outra e originavam um jogo de substituições que as ultrapassava. A nota dissonante, sem solução em perspectiva, tinha pos­sibilidades cômicas e representatividade nacional, além de funcionar como caricatura do presente do mundo, em que as experiências locais deixam mal a cultura autorizada e vice-versa, num amesquinhamento recíproco de grande envergadura, que é um verdadeiro “universal moderno”.

 

ROBERTO SCHWARZ, um dos mais importantes intelectuais brasileiros, é crí­tico literário, ensaísta, poeta e tradutor. Lecionou teoria literária e literatura comparada na Universidade de São Paulo e é professor aposentado de teoria literária pela Universidade de Campinas (sp). É autor dos livros de poesia Pássaros na gaveta (Massao Ono, 1959) e Corações veteranos (Mapa, 1974), da peça de teatro A lata de lixo da história (Paz e Terra, 1974), dos volumes de ensaios A sereia e o desconfiado (Paz e Terra, 1981), O pai de família e outros estudos (Paz e Terra, 1978), Que horas são (Companhia das Letras, 1987), Sequências brasileiras (Companhia das Letras, 1999), e das obras considera­das referências na análise de Machado de Assis: Ao vencedor as batatas (Duas Cidades/34, 2000), Um mestre na periferia do capitalismo (Duas Cidades/34, 2001) e Duas meninas (Companhia das Letras, 1997). Este ensaio é uma ver­são atualizada de “Leituras em competição”, publicado na revista Novos Estudos (n. 75, jul. 2006).

 

1. Beatriz Sarlo, Jorge Luis BorgesUm escritor na periferia. São Paulo: Iluminuras, 2008.

2. Mário de Andrade, “Feito em França” (1939), in O empalhador de passarinho. São Paulo: Martins, 1955, p. 34.

3. Sergio Miceli, A desilusão americana. São Paulo: Sumaré, 1990, p. 13.

4. Susan Sontag, “Afterlives: the Case of Machado de Assis” (1990), in Where the Stress Falls. Nova York: Picador, 2002, p. 38. O romance de Sontag, The benefactor, é de 1963. William L. Grossman, o tradutor das Memórias póstumas para o inglês (Epitaph of a Small Winner, 1952) viera ao Rio de Janeiro em 1948, a convite do governo, para criar uma business school. Ver o depoimento na resenha de Alexander Coleman à nova tradução do romance, em 1997, agora como The Posthumous Memoirs ofBras Cubas. Disponível em: http://www. americas-society.org.

5. Ver Saturday Review (19.03.1960, p. 20), na qual há uma resenha do romance de Cecil Hemley, The Experience, feita pelo mesmo William L. Grossman. Este assinala a influência de Machado sobre a estrutura e o estilo do livro. Acompanha a resenha um comentário de Hemley, que transcrevo na íntegra, por tudo que antecipa. “Devo admitir a minha dívida com o grande escritor brasileiro Machado de Assis, cujas obras venho admirando desde que tomei conhecimento delas, há oito anos. Sempre fui um apaixonado por Laurence Sterne e, de fato, quando jovem, escrevi prosa muito influenciada por ele. É claro que Sterne foi também um dos escritores que abriram os olhos a Machado, de sorte que Machado e eu havíamos sido próximos antes ainda de nos encontrarmos. Contudo, o significado do escritor brasileiro para mim esteve não tanto naqueles elementos técnicos evidentes – como os capítulos breves e as interrupções súbitas da narrativa pelo autor – que ele tomara emprestados a Sterne. O que achei particularmente estimulante foi a sua ruptura radical com a tradição realista. É claro que há muitas maneiras de escrever um romance e não desejo desmerecer romances e romancistas com tendência diferente da minha. Machado mostrou-me um modo de tornar contemporâneo o romance clássico.

Não quero dizer que o copiei. Sob alguns aspectos as minhas ideias estão em oposição até direta com as dele. Não sou um niilista. Mas tenho me interessado pelo tratamento cômico de ideias, bem como por maneiras diferentes de lidar com as personagens, para fugir ao psicologismo dos escritores em busca do Zeitgeist (espírito de época). Com efeito, a minha visão do universo não confere um lugar demasiado alto à psicologia e à sociologia, de sorte que a espécie de forma que desenvolvi é estreitamente ligada a meu tema. O ser humano preocupa-se com o “ser”, quer queira, quer não, e é por natureza uma criatura filosófica. Qualquer romance que não tenha dimensões metafísicas e ontológicas estará necessariamente truncado.” Devo a citação a Antonio Candido, a quem agradeço.

6. Comunicação pessoal de Jorge Edwards.

7. John Barth, “Foreword”, in The Floating Opera and The End of the Road. Nova York: Anchor, 19 88, pp. vi-vii. Os romances são respectivamente de 1956 e 1958.

8. Mário de Andrade, “Machado de Assis” (1939), in Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, s/d. Para o roteiro da recepção brasileira, ver Antonio Candido, “Esquema de Machado de Assis” (1968), in Vários escritos. Rio de Janeiro/São Paulo: Ouro sobre Azul/ Duas Cidades, 2004. Para a recepção norte-americana, Daphne Patai, “Machado in English”, in Richard Graham (ed.), Machado de Assis, Reflection on a Brazilian Masterwriter. Austin: University of Texas Press, 1999.

9. Antonio Candido, Formação da literatura brasileira (1959). Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006, pp. 436-437.

10. Raymundo Faoro, Machado de Assis A pirâmide e o trapézio. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974.

11. “O que lhe faltava, e isso o enquadra na linha dos moralistas, era a compreensão da realidade social, como totalidade, nascida nas relações

exteriores e impregnada na vida interior.” Raymundo Faoro, op. cit., p. 504.

12. O conjunto desses passos encontra-se em Silviano Santiago, “Retórica da verossimilhança”, in Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978; Roberto Schwarz, Ao vencedor as batatas, São Paulo: Duas Cidades, 1977, e Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas Cidades, 1990; Alfredo Bosi, “A máscara e a fenda”, in Alfredo Bosi et ai, Machado de Assis, São Paulo: Ática, 1982; John Gledson, The Deceptive Realism of Machado de Assis, Liverpool: Francis Cairns, 1984, e Machado de Assis – Ficção e história, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986; José Miguel Wisnik, “Machado Maxixe –- O caso Pestana”, in Sem receita, São Paulo: Publifolha, 2004.

13. Michael Wood, “Master Among the Ruins”. The New York Review of Books, 18.07. 2002.

14. Acompanho aqui as grandes linhas do livro de Pascale Casanova, La République mondiale des lettres. Paris: Seuil, 1999. Numa boa discussão a respeito, Christopher Prendergast salienta o interesse dos esquemas de Casanova, sem ocultar que as análises propriamente literárias deixam a desejar. Ver “Introduction”, in Christopher Prendergast (ed.), Debating World Literature. Londres: Verso, 2004.

15. Na literatura nacional, ver Antonio Candido, Formação da literatura brasileira, op. cit. A possibilidade de retomar esses mesmos esquemas noutras esferas da cultura nacional e de entroncá-los na dialética geral do mundo moderno está esboçada no conjunto da obra de Paulo Arantes. Ver, especialmente, Otilia e Paulo Arantes, Sentido da formação. São Paulo: Paz e Terra, 1997.

16. Pascale Casanova, op. cit., pp. 37-40.

17. Considerado o maior diamante do mundo, o Koh-í-noor desde 1877 faz parte das joias da Coroa britânica. [N. do E.]

18. Helen Caldwell, The Brazilian Othello of Machado de Assis. Berkeley:University of California Press, 1960, pp. i e v. (Edição brasileira: O Otelo brasileiro de Machado De Assis – Um estudo de Dom Casmurro. Trad. Fábio Fonseca de Melo. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.)

19. Machado de Assis, Dom Casmurro, capítulo cxxxv.

20. Helen Caldwell, op. cit., p. 72.

21. Machado de Assis, “O punhal de Martinha” (05.08. 1894), in Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1959, v. m, p. 638. Como a crônica é breve, as citações encontram-se sem indicação de página.

22. Machado de Assis, “Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade”, in Obra completa, op. cit., v. iii, p. 817.

23. Manuel Bandeira, “Não sei dançar”, “Libertinagem”, in Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1966, p. 103.

24. Charles Baudelaire, “Madame Bovary”, L’Art romantique, in Oeuvres. Paris: Bibliothèque de la Pléiade, 1951, p. 1000.

25. Situada na África Ocidental, a Senegâmbia, como unidade política, foi criada pela primeira vez em 1758, por forças coloniais inglesas, que competiam com as francesas pelo controle da região desde o séc. 16. Funcionava então como depósito da mão de obra que alimentava o tráfico de escravos. Historicamente, a Senegâmbia já foi desfeita e reconstituída mais de uma vez. Ao tempo de Rui Barbosa, o Senegal e a Gâmbia eram colônias controladas por franceses e ingleses respectivamente, sendo destituídas portanto de unidade territorial e política. Na prática, porém, não havia fronteira oficial entre elas, o que de alguma forma explica o fato de a expressão continuar sendo usada. [N. do E.].

26. Oswald de Andrade, “Manifesto da poesia Pau-Brasil”, in Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 5.

27. Sobre a textura histórico-mundial dessa ordem de ressentimentos, ver Paulo Arantes, Ressentimento da dialética. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

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