Para tomar a medida do abismo de classe por trás dessas vacilações, basta colocar-se na posição da heroína meio anônima e quase admirada que está no outro polo. Submetido a uma ducha escocesa, o destino popular tanto pode ser enaltecido e servir de bandeira regeneradora como pode ser simplesmente posto de parte, segundo a inspiração momentânea dos bem-postos, que têm e não têm compromisso com os compatriotas pobres.
Dito isso, a nossa apresentação vem forçando a nota num ponto delicado: palavras da esfera histórico-política, como pátria, nação, Brasil etc., e também as referências à questão nacional, em que insistimos, não comparecem no argumento explícito da crônica. Elas são as suas presenças ausentes. Ao lastimar as injustiças da fama, que, ao que tudo indica, não irá conservar a punhalada de Martinha, o cronista toma um rumo entre trivial e metafísico, em detrimento do senso histórico. Segundo a sua explicação, Martinha vai “rio abaixo do esquecimento” porque é uma criatura “tangível”, como aliás todo mundo, e não por ser brasileira e popular, como indica o contexto. A “parcialidade dos tempos”, da qual ela é vítima, não se refere à desimportância que aflige o Brasil e as suas classes pobres, mas à oposição entre os clássicos e a mera vida em carne e osso. Como os clássicos são “pura lenda”, “ficção” e “mentira” compiladas em livros recomendados, notáveis pelo apuro da gramática, é claro que não deixam lugar para a mocinha empírica da Cachoeira, que tem endereço e ofício conhecidos, erra na colocação de pronomes e não foi celebrada pelos poetas – ela sim real e verdadeira. A conclusão acaciana do cronista filósofo, que medita “sobre o destino das coisas tangíveis em comparação com as imaginárias”, é que os humanos só dão valor ao que não existe. “Grande sabedoria é inventar um pássaro sem asas, descrevê-lo, fazê-lo ver a todos, e acabar acreditando que não há pássaros com asas…”
A ironia está na composição. Como nos seus grandes romances, Machado faz literatura “do seu tempo e do seu país” – para lembrar o programa famoso – por meio e à custa da personagem cosmopolita que tem a palavra e se acredita acima das circunstâncias, o que mais a localiza.22 Cabe ao leitor, armado de implicância e antena histórico-social, contrapor a feição brasileira das situações à sua redução pelo cronista a uma generalidade atemporal e vazia. É certo que é possível sujeitar a lista de nossos traços notórios de ex-colônia à categoria dos “tangíveis”, por oposição aos “imaginários”, preferidos pela fama. Contudo é possível também enxergar nessa operação do espírito mais outro exemplo de defeito nacional, pronto para figurar naquela mesma lista de traços de atraso, à qual a mania de transformar em pontos de filosofia as nossas mazelas históricas se integra à perfeição. A função nobilitante e mascaradora do deslocamento fala por si.
Entrando em matéria, aí estão a Martinha, entre familiar e desconhecida, como o povo a que pertence; a condição social de zé-ninguém, sem nome de família nem proteção da lei, e com prenome no diminutivo; a facada meio urbana meio sertaneja, e a Cachoeira, que é um faroeste com feições locais. No campo dos instruídos, há o exibicionismo retórico e gramatical, que compensa o complexo de inferioridade herdado da Colônia; o sentimento geral de irrelevância e de vida de segunda classe, além do ressentimento com a falta de repercussão de nossas coisas; há ainda as províncias remotas como um ultramar, envolvidas em certo apego sentimental etc. A incongruência entre isso tudo, “tão Brasil”,23 e os conceitos filosóficos do cronista incita à reflexão histórico-social, que fica desafiada a completar e denominar o que está configurado, a incongruência inclusive. O procedimento é vertiginoso, mas efetivo: a acuidade mimética para os problemas brasileiros combina-se à inclusão maliciosa de raciocínios desfocados, e à exclusão, também deliberada, do vocabulário e dos argumentos ligados à questão nacional. Esta, cuja ausência é estridente, passa a ter a presença que o leitor insatisfeito seja capaz de lhe conferir por conta própria, com as matérias à mão e longe dos chavões românticos e naturalistas então disponíveis. O movimento ultrapassa o marco explícito colocado com pompa pelo explicador da fábula, e “cabe ao leitor tirar as conclusões da conclusão”24
Enquanto o cronista se queixa do pouco sucesso de Martinha, é claro que ela está mais que imortalizada – graças a essa mesma queixa, que traz em si, sem o saber, uma condição moderna de grande ressonância artística. Para ele, indeciso entre o clássico e o autóctone, ambos incapazes de assegurar à moça “um lugar de honra na história”, não há como sair do impasse. Já para Machado – que inventava a situação narrativa – o trio formado por: a) a região relegada do universo; b) o repertório clássico que desmerece as realidades locais; e c) o cronista culto, portador de um despeito histórico-mundial, é ele próprio a solução: uma vez articulada pelo jogo literário, esta verdadeira célula social-histórica imprime à cena algumas das linhas inconfessadas da atualidade. Ela deixa entrever uma história mais real, em andamento, mas de rumo incerto, na qual a escolha entre localismo e universalismo funciona de modo imprevisto, com as noções trocando e destrocando de posição, em discrepância com o seu conceito abstrato. Olhando bem, Martinha não se tornou imortal, ou relevante, porque um literato nativista se ateve aos termos dela e da Cachoeira, rejeitando a tradição estrangeira que as impede de brilhar. Pelo contrário, na ausência do paralelo ilustre, o episódio ficaria reduzido a uma facada entre outras. Na verdade, é a referência à dona celebrada ou ao repertório clássico que tira da vala comum a mocinha do meretrício local, transformando-a em tema “para a tribuna, para a dissertação, para a palestra” – não porque seja uma igual de Lucrécia, como quereria o cronista, mas porque a comparação não se aplica, fazendo girar em falso a cultura canônica e indicando algo que lhe escapa, que fica atravessado e seria o principal.
Um deslocamento análogo desuniversaliza a forma do paralelo, que de clássica se torna pitoresca. Em tom grave, como convém às comparações cultas, ela deixa à vista uma porção de realidades entre indesejadas e risíveis, além de distintivas, que destoam do padrão. Os vexames incluem o nosso reflexo estrangeiro diante dos patrícios pobres, desprovidos de existência civil, as veleidades de requinte dos educados, a sua avidez de reconhecimento, o papel antipopular da alta cultura, a adoção semiculta e pernóstica desse mesmo papel, e assim por diante. Entretecidos com a retórica rebuscada, os traços precários adquirem tessitura literária, além de dar a Martinha o contexto adensado, propriamente brasileiro e atual, ou moderno, que parecia faltar.
Como dispositivo formal, a comparação dos punhais é um cenário de cartolina, mas dotado da força de revelação dos achados oswaldianos: “O lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui Barbosa: uma cartola na Senegâmbia.25 Tudo revertendo em riqueza”.26 Sem nada de antiquário, as segundas intenções do paralelo são satíricas e visam o presente, em conivência maliciosa com o realismo oitocentista. A sua lição de coisas, uma documentação como que à revelia, oferecida a quem queira ver, é um subproduto da inadequação da forma ela mesma. Carregado de consciência e humorismo históricos, o despropósito formal, que é um artifício cara de pau, impõe às anedotas locais um pano de fundo extra, ou a complexidade de um fundo duplo. O estado bisonho e tão fora de tudo dos causos brasileiros, insuficientes para sustentar uma prosa à altura do tempo, é corrigido pela sombra clássica e universal.
Com recuo adequado, a “desigualdade dos destinos” lamentada na crônica se despega de Martinha e Lucrécia, da figurinha popular e do busto de museu, que não têm por que ser iguais, para aludir à condição inferiorizada e problemática de país periférico, atolado na conformação e nas privações da ex-colônia, estas sim difíceis de envergar no quadro das nações civilizadas. Martinha está para Lucrécia como o Brasil, para os países adiantados. Arbitrário como toda montagem, o paralelo entre o fait divers baiano e um dos episódios fundadores da mitologia da Roma antiga é uma substituição sutil, que expressa em termos passadistas e farsescos um mal-estar contemporâneo.
Em suma, universalismo e localismo são ideologias ou chavões, ou timbres, de que Machado se vale como de pré-fabricados passíveis de uso satírico. A parafernália da retórica e do Humanismo, universal por excelência, lhe serve, desde que faça figura imprópria, nada universal, com cacoetes de lugar e classe historicamente marcados. Uma inversão análoga atinge o anseio patriótico de libertar a matéria local dos enquadramentos como que alienígenas da cultura erudita. Também esse patriotismo serve, desde que leve aonde não quer, à insignificância e ao isolamento, a que o propósito elevado imprime conotação cômica, esta sim contemporânea e relevante. As ressonâncias não programadas dos registros universalista e localista são o que estes têm de mais verdadeiro. Ao sublinhar as desafinações e fazer que alternem, Machado dá figura artística à posição em falso da ex-colônia, às “anomalias” da integração interna e da situação externa da quase nação, também elas involuntárias. Trata-se dos resultados locais e disformes de grandes tendências-norma da atualidade, os quais dizem e valem mais do que parece. São especificações contraideológicas: cultura hegemônica ostensiva, mas desqualificada pela paisagem social discrepante; e vida popular a que não falta poesia, mas acompanhada das restrições da norma civilizada. Estamos diante de um material com fisionomia própria, compósito, desarmônico e rebaixado, que é produto histórico e pode ser ponto de partida artístico. Depositários da transformação periférica da cultura europeia, estes quiproquós põem de pé uma problemática inédita, difícil, de classes e de inserção internacional, de que a oposição corrente entre localismo e universalismo oferece uma versão distorcida e característica.