Apesar da equidade ostensiva da argumentação, o espírito do paralelo é de troça e tem ranço de classe inconfundível, este sim interessante, e aliás nada equitativo. O cronista deplora a sorte obscura dos compatriotas pobres e provincianos, mas a comparação culta na verdade lhe serve para sublinhar a distância que o separa deles e de nossa hinterlândia cheia de facadas. Serve-lhe também para figurar na internacional dos cosmopolitas fim de século, que não se iludem com Roma e a discurseira clássica, embora disponham de seu repertório. Num caso busca diferençar-se da barbárie popular; no outro, integrar-se à elite mundial dos espíritos educados, sempre em linguagem para poucos, que marca uma superioridade meio caricata. O leitor é tratado na empolada segunda pessoa do plural, com subjuntivos e condicionais difíceis: “Talvez esperásseis que ela se matasse a si própria. Esperaríeis o impossível, e mostraríeis que me não entendestes”. Como a facilidade da pirotecnia gramatical, são aspirações medíocres, cheias de autocongratulação risível, em que, no entanto, há altura artística, pois o seu esnobismo dá forma a feições importantes da desigualdade moderna.
Precedida do artigo definido e singularizador, a Cachoeira passa a ser uma localidade familiar, que fica logo ali, mesmo para quem não tenha conhecimento dela. Algo análogo se dá com Martinha, que possivelmente seja um tanto bárbara, de má-vida e culpada de homicídio, mas a quem o diminutivo afetuoso traz para perto em ideia, incluindo-a na esfera da cordialidade brasileira, ou do sentimento nacional, desdizendo as segregações antissociais trazidas do tempo da Colônia. Noutras palavras, alguns indicadores gramaticais funcionam na contracorrente da dicção emproada, de cujas presunções de exemplaridade, estilo elevado e civilização destoam, ou, ainda, a cujas partições se opõem.
Digamos então que o paralelo clássico milita, enquanto forma, pela separação dos espaços que compara. Também do ponto de vista de classe ele mais afasta do que aproxima, pois alinha o escritor na franja europeizada e culta, estranha às circunstâncias cruas e remotas da vida popular no interior do país. Estamos próximos da posição do letrado colonial, vivendo nestas brenhas a contragosto, na companhia consoladora de ninfas e pastores de convenção. Ao passo que as descaídas chãs e familiares da prosa, menos salientes mas não menos definidoras, fazem supor um alinhamento político diverso, em que aquelas separações não são ponto pacífico. Volta e meia, a despeito da couraça retórica, o escritor parece reconhecer como suas a gente e as localidades da ex-colônia, agora o Brasil. Implícita, há também a recíproca, segundo a qual essa gente e essas localidades poderiam contar com ele nalgum grau. Está aí a posição do intelectual posterior à Independência, impregnado de tradição europeia, mas bloqueado por ela.
Como exemplo da contradição, observe-se o apreço dúbio pela bravura de Martinha, com a sua pitada de zombaria. As palavras de entusiasmo não têm como alcançar a moça, pois o paralelo com Lucrécia a despoja de seu contexto próximo e, no fundo, a faz perder de vista, embora lhe dê visibilidade e universalidade noutro nível. Enredado em sua cultura de aparato, o escritor está do lado contrário ao que desejaria defender, ocultando o mundo diferente que quereria revelar. As boas letras não funcionam apenas como trunfo, mas também como obstáculo, ao passo que a experiência local, sendo um núcleo de identidade, mas de uma identidade pouco prestigiosa, tanto fortifica como desmerece e empareda o seu portador. A mescla das dicções – da dicção engomada e da dicção familiar – interioriza e encena a crise, que se resolve nas linhas finais, pela derrota da aspiração nacional: depois de indignar-se com a “desigualdade dos destinos”, que só recolhe e transmite o que está nos livros canônicos, ignorando o que existe na realidade – leia-se o Brasil –, o escritor joga a toalha e toma o partido do opositor, o beletrista amestrado que ele traz dentro de si. “Mas não falemos mais em Martinha”, quer dizer, não falemos do Brasil.
A conclusão não é para ser acatada, ou melhor, é para ser desobedecida. Trata-se de mais uma versão do refinado procedimento machadiano do (inale em falso, ou do (inale inaceitável, na verdade uma provocação que manda reexaminar criticamente a persona que está com a palavra. No ato, o literato consumado que não tem coragem de romper com a máquina literária culta se transforma em figura lastimável. Deve ceder o passo a seu alter ego recalcado, este sim capaz de reconhecer a poesia que existe em Mar-tinha e na Cachoeira – uma poesia desafetada, sem fórmulas de Tito Lívio, sem atitudes de tragédia, sem gestos de oratória, sem quinquilharia clássica, mas com “valor natal e popular”, incluídas aí as afrontas à gramática, e valendo “todas as belas frases de Lucrécia”.
Assim, o prosador duvida entre atitudes opostas, muito representativas, em confronto dentro dele. Numa, a anedota local – marcada pela nota primitiva e por vestígios da Colônia, que são a substância efetiva do pitoresco – é sujeitada à luz dos modelos ditos universais, que lhe impõem a medida. Na outra, a mesma anedota ou matéria seria valorizada nos seus próprios parâmetros, liberta das convenções literárias que nos separam e escondem de nós mesmos, embora nos identifiquem como civilizados. O que seria essa prosa voltada para o natal e o popular, sem guarda-roupa clássico, e ainda assim capaz de merecer um lugar na memória dos homens?
Note-se que o ideal da autossuficiência estética, ligado ao nacionalismo romântico, bem como a uma noção mítica da Independência, inclui a quebra da hierarquia entre as nações, que seriam todas igualmente válidas, ainda que diferentes. Recusando os paradigmas externos, antigos ou contemporâneos, é uma ideia que a seu modo converge com o desejo de autarquia, com a aspiração moderna à desconvencionalização completa. Mas a equiparação geral entre as nações, que anularia os hegemonismos, seria uma possibilidade efetiva? Mesmo que só imaginária, essa verdadeira revolução cultural, que obrigaria ao realinhamento das afinidades de classe internas e externas, compondo um bloco histórico diferente – em que as classes cultas se deveriam mais a seu povo que a seus pares nos países adiantados –, faz recuar o cronista, que volta às garantias tradicionais da posição anterior.
Em resumo, o paralelo com Lucrécia começa como uma piada de literato bem-posto e rebuscado, conformista no fundo. Em seguida, ao inverter as precedências entre a romana e a baiana, a brincadeira toma um rumo menos convencional, mas ainda assim enquadrado pela autossatisfação das classes cultivadas, únicas em condições de apreciar o lance. É num terceiro passo que o punhal de Martinha e o esquecimento inglório que o espera adquirem a vibração notável. Como a familiaridade da linguagem indica, Martinha não é apenas uma representante de costumes bárbaros, que os civilizados de todos os quadrantes, entre os quais o cronista, olham com curiosidade, de fora e do alto. Ela faz parte também do povo brasileiro e, por aí, da problemática interior do mesmo cronista. O homem ilustrado, sempre um conselheiro da pátria em formação, sente que o destino dos compatriotas pobres e relegados é menos exótico e mais representativo do que parecia. Mal ou bem, a falta de reconhecimento em que vivem não deixa de lhe dizer respeito. Aliás, a inadequação literária do cronista, ou seja, a sua reverência por Lucrécia, não teria parte na condição apagada que diminui a sua gente? E não haveria também nele próprio algo da marginalização histórica, para não dizer da barbárie e até do exotismo de Martinha? Sem contar que a simplicidade clássica da punhalada em João Limeira revela riquezas inexploradas da nação, ao menos quanto às possibilidades literárias.
Como indicam essas inerências à distância, ou determinações recíprocas entre classes quase estranhas, deixamos o âmbito retórico das oposições abstratas e maniqueístas, além de vagamente colonialistas, do tipo Civilização versus Barbárie. Em seu lugar, entram as identidades problemáticas, os desníveis nacionais e internacionais, mais a correspondente dialética social, com as suas interligações imprevistas e significados instáveis. Sob a forma ostensiva, a forma latente: a bravura ou braveza da moça dá assunto a comparações engenhosas e fora do tempo, mas veicula também a ambiguidade estético-política de quem escreve, imprimindo à prosa uma nota de inquietação e culpa históricas. Dentro do cronista coexistem e lutam, ou alternam, o cosmopolita empertigado e o escritor mordido pela situação brasileira, com todas as ambivalências do caso. Assim, o esquecimento em que desaparecerá a moça da Cachoeira merece as lágrimas de crocodilo do humorista de salão, bem como as lágrimas sentidas mas confusas do escritor nacional, que lastima nela a obscuridade em que vegetam o seu país e ele próprio.