Cotejado com seu modelo, o Casmurro aparece como uma variante original, seja porque recombina Otelo e Iago em uma só pessoa, seja porque mistura as condições de personagem e de narrador, tornando incerta uma distinção importante. No que respeita ao enxadrismo das situações literárias, a invenção machadiana é diabólica. Investido da credibilidade que a convenção realista associa à função narrativa, Bento Santiago é, não obstante, parte parcialíssima do drama. O garante do equilíbrio expositivo não tem equilíbrio ele próprio: o memorialista honesto e saudoso é um marido desgovernado, que trata de persuadir a si mesmo e ao leitor de que fizera bem ao expulsar de casa e desterrar para outro continente a sua Capitu/ Desdêmona. Aí estão, com raio de generalidade tão supranacional quanto as instituições do casamento ou da narração, os estragos causados pelo ciúme, pela prerrogativa masculina e pela autoridade inquestionada de quem detém a palavra. São resultados de tipo universal, obtidos por Caldwell no espaço como que atemporal e homogêneo das obras-primas do Ocidente, por meio da comparação abstrata de caracteres ou situações, e de análises também elas universalistas. Os paralelos com Shakespeare, a Bíblia e a mitologia, as especulações sobre o significado dos nomes próprios das personagens machadianas no campo geral da onomástica, o estudo da consistência funcional de complexos imagísticos, à maneira de Freud e do New Criticism shakespeareano, a revelação da duplicidade do Otelo narrador, que é um feito crítico notável – nada disso requereu o recurso à configuração peculiar do país, que não conta para efeitos de interpretação.
Isso posto, Bentinho não é Otelo, Capitu não é Desdêmona, José Dias e o Pádua não são Iago e Brabantio, nem o Rio de Janeiro oitocentista é a Europa renascentista. O século 19 e seu sistema de sociedades distintas entre si e no tempo entram pela outra porta, e mal ou bem a cegueira do universalismo para a historicidade do mundo fica patente, sem prejuízo de eventuais descobertas sensacionais. As diferenças entre Machado, Shakespeare e demais clássicos não importam uma a uma, no vácuo, à maneira elementarista, como aspectos de um só e mesmo conjunto: elas têm desempenho estrutural-histórico, sugerindo mundos correlativos e separados, que esteticamente seria regressivo confundir. A presença ubíqua da cor local não pode ser mera ornamentação, sob pena de rebaixamento artístico. A própria desautorização do narrador masculino, tão esclarecedora, só atinge a plenitude de sua irradiação quando combina os atropelos do ciúme – uma paixão relativamente extraterritorial – às particularidades do patriarcalismo brasileiro do tempo, vinculado à escravidão e ao clientelismo, empapado de autocomplacência oligárquica, além de vexado pela sombra do progresso europeu.
Pensando em vantagens comparativas, ou no que as leituras podem oferecer ou invejar uma à outra, observe-se que a interpretação universalista dá como favas contadas a grandeza que a interpretação com base nacional quereria demonstrar. Será uma superioridade? Uma inferioridade? É claro que grandeza no caso tem dois significados que brigam entre si. Semelhanças e diferenças com Otelo, Romeu e Julieta, Hamlet, Macbeth etc., além de convergências com teses do New Criticism, decidem a questão da estatura artística pela simples indicação dos patronos ilustres, que não deixam de constituir um establishment. Assim, o procedimento que faz admitir Dom Casmurro entre os seus pares no campo das obras universais tem algo de cooptação, ou de reconfirmação de protótipos (de cera?) no ultramar. Graças a um sistema de menções cultas, meio ostentadas e meio escondidas – aliás, escolhidas por Machado com deliberação meticulosa –, um romance que não constava como canônico troca de estante. Por outro lado, embora ponha o livro nas alturas e o subtraia ao acanhamento provinciano, com ganho inegável, essa universalidade, devida ao ar de família, não satisfaz a outra leitura, ainda que a possa ajudar muito. Para esta, o caminho para a qualidade passa pelo aprofundamento crítico de uma experiência estético-social precária, em boa parte inglória, até então mantida à margem, cuja densidade interna se trata de consolidar e cuja relevância se trata de arguir e, mesmo, construir. Não há como desconhecer o papel que a tradição clássica tem na obra de Machado, mas o que interessa identificar é o redirecionamento nada universal que, graças ao Autor, a problemática particular do país lhe imprime. A nota de reivindicação, bem como o esboço de um contraestablishment, ou a reconsideração à nova luz do establishment anterior, não existem na outra leitura.
Ainda nesse capítulo da ajuda entre adversários, veja-se que o Brazilian Othello causou uma viravolta memorável em nosso meio, sem ser forte em seu próprio terreno: conforme entra pelas semelhanças e diferenças de personagens machadianas, shakespearianas e outras, postas para flutuar na região comum das obras universais, na qual tudo se compara a tudo, Caldwell vai se perdendo no inespecífico, para não dizer arbitrário. A verdade é que o melhor de sua intervenção – o tino para a má-fé do pseudo-autor – não frutifica no âmbito comparatista, e sim no da reflexão nacional. Esta última, demasiado bloqueada para enxergar o artifício machadiano, fizera um papelão. Por isso mesmo, entretanto, uma vez esclarecida a respeito, era ela quem tinha mais elementos para lhe apreciar o gume e explicitar o alcance, seja artístico, seja de crítica de costumes, seja político. Em suma, o resultado durável do livro não foi tanto a revelação de uma obra-prima quanto a inviabilização da leitura conservadora de um clássico nacional, até então assegurada por uma aliança tenaz de convencionalismo estético e preconceitos de sexo e classe. A solidez social dessa liga conferiu aos novos argumentos um valor de contestação inesperado, que escapa ao programa das teorias literárias universalistas. Invertendo a blague inicial da autora, segundo a qual só anglófonos e shakespearianos teriam condições de apreciar Machado de Assis, digamos que foi no ambiente saturado de injustiças nacionais e de história que o achado universalista adquiriu a densidade e o impulso emancipatório indispensáveis a uma ideia forte de crítica.
Por que supor, mesmo tacitamente, que a experiência brasileira tenha interesse apenas local, ao passo que a língua inglesa, Shakespeare, o New Criticism, a tradição ocidental e tutti quanti seriam universais? Se a pergunta se destina a mascarar os nossos déficits de ex-colônia, não vale a pena comentá-la. Se o propósito é duvidar da universalidade do universal, ou do localismo do local, ela é um bom ponto de partida.
A questão tem importância para a arte de Machado, que a dramatizou numa crônica das mais engenhosas, chamada “O punhal de Martinha”.21 Trata-se da apresentação, em prosa clássica pastichada, dos destinos paralelos de dois punhais. Um lendário e ilustre, que serviu ao suicídio de Lucrécia, ultrajada por Sexto Tarquínio. Outro comum e brasileiro, por isso mesmo destinado à “ferrugem da obscuridade”, que permitiu a Martinha vingar-se das importunações de um certo João Limeira. A moça, diante da insistência deste, previne: “Não se aproxime, que eu lhe furo”. Como ele se aproxima, “ela deu-lhe uma punhalada, que o matou instantaneamente”.
A notícia, pescada num jornal da Cachoeira, no interior da Bahia, é posta lado a lado com o capítulo célebre da História de Roma, de Tito Lívio. Desenvolvendo os contrastes, o cronista concede que a gazeta baiana não pode competir com o historiador insigne; que Martinha ao que tudo indica não é um modelo de virtude conjugal romana, antes pelo contrário; e que João Limeira não tem sangue régio nas veias. As comparações, todas desabonadoras, são feitas do ângulo do literato ultra-afetado do Rio de Janeiro, que diverte os leitores à custa de uma cidade modesta, que a ninguém ocorreria comparar ao padrão da Antiguidade. Dito isso, Machado inverte a ironia – sem o que não seria quem é – e observa que a cachoeirense não fica a dever à romana em bravura: Martinha vinga-se com as próprias mãos onde a outra confia a vingança ao marido e ao pai, sem contar que pune a mera intenção, e não o ultraje consumado. A nota cafajeste dessa segunda distinção, destinada a botar defeito na honestidade de Lucrécia, não deixa de ser um achado memorável, especialmente vindo de um consertador de injustiças… Seja como for, por um momento é Lucrécia quem se deve mirar no exemplo de Martinha, e não vice-versa, uma viravolta de alcance quase inconcebível.
É claro que essas superioridades, tanto quanto as inferioridades, não são para levar a sério. Elas resultam do cotejo abstrato de vícios e virtudes, termo a termo, perfil contra perfil, que prefere o exercício retórico ao tino para a história – uma opção que o tempo havia tornado obsoleta e burlesca. Assim, a comparação leva a rir da Cachoeira, porque ela não se compara a Roma, e a rir de Roma, que talvez não passe de uma Cachoeira revestida de belas palavras. Refletidas uma na outra, a localíssima Cachoeira e a universalíssima Roma funcionam como uma dobradinha de comédia. Os clichês derrubam-se mutuamente, para gozo dos finos, e não deixam resto. Artificioso e sumário, o dualismo tem certa esterilidade enjoativa, que não vai a lugar nenhum.