Martinha versus Lucrécia

Assim, a consagração atual de Machado de Assis é sustentada por expli­cações opostas. Para uns, a sua arte soube recolher e desprovincianizar uma experiência histórica mais ou menos recalcada, até então ausente do mapa do espírito. A experimentação literária no caso arquitetaria soluções para as paralisias de uma ex-colônia em processo de formação nacional. A qualidade do resultado se deveria ao teor substantivo das dificuldades transpostas, que não são apenas artísticas e que lhe infundem algo de sua tensão. Para outros, a singularidade e a força inovadora não se alimentam da vida extraliterária, muito menos de uma história nacional remota e atípica. Observam que não foi necessário conhecer ou lembrar o Brasil para reconhecer a qualidade supe­rior de Machado, nem para apontar a sua afinidade com figuras centrais da literatura antiga e moderna, ou com as teorias em evidência no momento ou, sobretudo, com o próprio espírito do tempo. A ideia aqui, salvo engano, é de diferenciação intraliterária, ou seja, endógena, no âmbito das obras-primas: Machado é um Sterne que não é um Sterne, um moralista francês que não é um moralista francês, uma variante de Shakespeare, um modernizador tar­do-oitocentista e engenhoso do romance clássico, anterior ao Realismo, além de ser um prato para as teorias do ponto de vista, embora diferente do con­temporâneo Henry James. Em suma, um escritor plantado na tradição do Oci­dente, e não em seu país. A figura não é impossível – embora a exclusiva seja tosca – e cabe à crítica decidir. Não custa notar, entretanto, a semelhança com o clássico anódino de que falávamos páginas atrás, cujas superioridades cos­mopolitas, ou dessoradas, a crítica com referência nacional tentou contestar.

A oposição se presta à querela de escolas e convida a tomar partido. Mas ela encarna também o movimento do mundo contemporâneo, uma guerra por espaço, movida por processos rivais, que não se esgota em disputas de método. As relações entre os adversários, cada qual desqualificando o outro, embora apresentando também algo que lhe faz falta, não são simples. Para dar uma ideia, note-se que dificilmente um adepto do Machado “brasileiro” reclamará da nova reputação internacional do romancista, por mais que discorde de seus termos. Com efeito, que machadiano não se sente enaltecido com o reconhe­cimento enfim alcançado pelo compatriota genial? A nota algo ridícula da per­gunta faz eco ao amor-próprio insatisfeito dos brasileiros, que em princípio não teria cabimento num debate literário que se preze, para o qual essa ordem de melindres é letra vencida. Mas o ridículo no caso é o de menos, pois nada mais legítimo que a vaidade de ver refletidos os expoentes nacionais naquelas teorias novas em folha, que afinal de contas são as depositárias da conversa­ção crítica internacional e, mal ou bem, do presente do mundo – de que é pre­ciso participar, mesmo que ao preço de algum autoesquecimento. Adotando a pergunta do campo oposto, por que diabo enterrar um autor sabidamente universal no particularismo de uma história nacional que não interessa a nin­guém e não tem interlocutores?

Nessa linha, o sucesso internacional viria de mãos dadas com o desaparecimento da particularidade histórica, e a ênfase na particularidade histórica seria um desserviço prestado à universalidade do autor. O artista entra para o cânon, mas não o seu país, que continua no limbo, e a insis­tência no país não contribui para alçar o artista ao cânon. Pareceria que a supressão da história abre as portas da atua­lidade, ou da universalidade, ou da consagração, que per­manecem fechadas aos esforços da consciência histórica, enfurnada numa rua sem saída para a latitude do presente. Veremos que a disjuntiva está mal posta e que não há por que lhe dar a última palavra. Mas é certo que no estado atual do debate ela carrega alguma verdade, pois a falta de articulação interna, de trânsito intelectual entre análise de formas, história nacional e história contemporânea é um fato, com consequências políticas tanto quanto estéticas.

Quanto aos trabalhos artísticos de primeira linha pro­duzidos em ex-colônias, a tese da inutilidade crítica das circunstâncias e da particularidade nacional talvez não saiba o bastante de si. Falta-lhe a consciência de seus efei­tos, que são de marginalização cultural-política em âmbito mundial. Ou ainda, desconhece a construção em muitas frentes, coletiva e cumulativa, artística e extra-artística, em parte inconsciente, sem a qual a integridade estética e a relevância histórica, as quais pretende saudar, não se cristalizam. Seja como for, a neouniversalidade das teorias literárias poderia também ser bem-vinda a seu adversário, que ao criticá-la sairia do cercadinho pátrio e colocaria um pé no tempo presente, ou melhor, num simulacro dele. O reconhecimento internacional de um escritor muda a situação da crítica nacional, que nem sempre se dá conta do ocorrido.

Helen Caldwell começa The Brazilian Othello of Machado de Assis – A Study of Dom Casmurro – o primeiro livro nor­te-americano sobre o romancista – com uma afirmação “sonora”. O escritor seria um diamante supremo, um Koh­-í-noor 17 brasileiro que cabe ao mundo invejar. Logo adiante, Dom Casmurro é considerado “talvez o melhor romance das Américas”. Não é pouca coisa, sobretudo se lembrarmos que eram os anos da revalorização de Hawthorne e Melville, e sobretudo da imensa voga crítica de Henry James. Dito isso, prossegue Caldwell, é possível que “só nós de língua inglesa” estejamos em condições de apreciar devidamente o grande brasileiro, “que constantemente usava o nosso Shakespeare como modelo”. Assim, ao reconhecimento e à cortesia segue-se a surpreendente reivindicação de competência exclusiva, ainda que envolta em humorismo (“com perdão da megalomania”).18

Mas é fato que a intimidade com Shakespeare permitiu a Caldwell virar do avesso a leitura corrente de Dom Cas­murro, tributária até então dos pressupostos masculinos da sociedade patriarcal brasileira. Mais imersa nos clássicos da tragédia que na idealização de si de nossas famílias abas­tadas, a crítica norte-americana – professora de literatura grega e latina – estava em boa posição para notar algumas das segundas intenções de Machado. A uma shakespea­riana não podiam passar despercebidas a confusão mental e a prepotência de Bento Santiago, o amável e melancó­lico marido-narrador do romance. A lição barbaramente equivocada que ele, o Casmurro, tira do desastre de Otelo era a indicação segura, entre muitas outras, de que seria preciso desconfiar de suas suposições sobre a infidelidade da mulher. Veja-se a respeito o capítulo decisivo em que Bento, agoniado pelo ciúme, vai espairecer no teatro, onde por coincidência assiste à tragédia do mouro. Em vez de lhe ensinar que os ciúmes são maus conselheiros, esta o con­firma na sua fúria e lhe dá a justificação do precedente ilus­tre: se por um lenço Otelo estrangulou Desdêmona, que era inocente, o que não deveria ter feito o narrador à sua ado­rada Capitu, que com certeza tinha culpa?19 O curto-circuito mental, quase uma gag, não deixa dúvida quanto à intenção maliciosa de Machado, que escolhia a dedo os lapsos e con­trassensos obscurantistas que derrubariam – se não fossem passados por alto – o crédito de seu narrador suspeitoso, transformando-o em figura ficcional propriamente dita, que contracena com as demais e é tão questionável quanto elas. À maneira do estranhamento brechtiano, são pistas para que o leitor se emancipe da tutela narrativa, reforçada pela teia dos costumes e dos preconceitos sancionados. Se a campainha artística for ouvida, ele passa a ler com indepen­dência, quer dizer, por conta própria e a contrapelo, mobi­lizando todo o espírito crítico de que possa dispor, como cabe a um indivíduo moderno. A confiança singela e aliás injustificável que até segunda ordem os narradores costu­mam merecer fica desautorizada. A inversão de perspecti­vas não podia ser mais completa: o problema não estava na infidelidade feminina, como queria o protagonista-narra­dor, mas na prerrogativa patriarcal, que tem o comando da narração e está com a palavra, que não é fiável nem neutra. Graças a esse dispositivo formal, que desqualifica o pacto narrativo, a disposição questionante engolfa tudo, da prece­dência dita normal dos maridos sobre as mulheres – o foco da polêmica de Caldwell – ao crédito devido a um narrador bem-falante, à virtude patriótica do encantamento roma­nesco, à respeitabilidade das elites ilustradas brasileiras. De padrão nacional de memorialismo elegante e passadista, o livro passa a experimento de ponta e obra-prima implacável.

A descoberta crítica no caso eleva muito a voltagem inte­lectual do romance. Já notamos o que ela deveu à familia­ridade com os clássicos, ou melhor, à estranheza causada por um desvio clamoroso na compreensão de um deles, independentemente de considerações de contexto. Ou por outra, o seu contexto efetivo foi a própria tradição canônica, cujas luzes serviram de revelador das hipocrisias e ceguei­ras entranhadas na ordem social. Aliás, a intimidade com esta podia até mesmo atrapalhar, como de fato atrapalhou, a crítica brasileira durante 60 anos, entre a publicação do romance em 1899 e o estudo de Caldwell em 1960. Foi com justa satisfação que este saiu a campo para corrigir “três gerações de críticos”, a quem as insinuações do ex-marido, hoje um viúvo amalucado no papel de pseudoautor, conven­ceram da culpa de Eva/Capitu.20 É claro que muitos brasilei­ros haviam lido Otelo e é provável que tivessem notado que o Casmurro tira uma conclusão aberrante da morte de Des­dêmona. Contudo, filiados ao universo ideológico do narra­dor, não lhes pareceu que o “deslize” obrigasse a questionar o viés de poder da situação narrativa. Inclinados a acatar o ponto de vista patriarcal e a veracidade dos memorialistas, ou, também, despreparados para duvidar da boa-fé de um narrador de boa sociedade, dono de uma prosa sem igual na literatura brasileira, bem como de apólices, escravos e casas de aluguel, não acharam que fosse o caso de suspeitar de uma personagem tão bem recomendada. Ficavam aquém da vertigem inscrita no dispositivo literário machadiano, que atrás dos traços de um memorialista fino e poético, cidadão acima de quaisquer suspeitas, fazia ver, primeiro, o marido discretamente empenhado na destruição e na difamação de sua mulher, e, em seguida, o senhor patriarcal na plenitude de suas prerrogativas incivis.

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