Martinha versus Lucrécia

Nas etapas seguintes da virada, que ainda está em curso, a composição do romance machadiano foi vista como for­malização artística precisamente desse conjunto singular, no qual se traía a ex-colônia. A galeria das personagens, a natureza dos conflitos, a cadência da narrativa e a tex­tura da prosa – elementos de forma – agora manifesta­vam, como transposições, uma diferença pertencente ao mundo real. Para mais, os traços distintivos eram surpre­endidos onde menos em falta e mais civilizada ou adian­tada a jovem nação se supunha. Explorados pela inventiva do romancista, os aspectos de demora civilizatória ganha­vam conectividade e expunham a teia de suas implicações, algumas das quais muito modernas, além de incômodas. As peculiaridades prendiam-se: a) ao padrão patriarcal; b) a nosso mix de liberalismo, escravidão e clientelismo, com os seus paradoxos estridentes; c) à engrenagem tam­bém sui generis das classes sociais, inseparável do destino brasileiro dos africanos; d) às etapas da evolução desse todo; e) à sua inserção no presente do mundo, que foi e é um problema (ou uma saída) para o país, e aliás para o mundo. De tal sorte que as questões estéticas ditas abs­tratas, de congruência formal e dinâmica interna, bem como de originalidade, se estavam tornando inseparáveis do seu lastro histórico específico, obrigando à reflexão sobre o viés próprio da formação social ela mesma. Assim, embora notória por desacatar os preceitos elementares da verossimilhança realista, a arte machadiana fazia de orde­namentos nacionais a disciplina estrutural de sua ficção.12 Sem prejuízo da diferença entre os críticos, a natureza complementar dos trabalhos que levaram a essa mudança de leitura se impõe, sugerindo uma gravitação de con­junto. Passo a passo, o romancista foi transformado de fenômeno solitário e inexplicável em continuador crítico e coroamento da tradição literária local; em anotador e anatomista exímio de feições singulares de seu mundo, ao qual se dizia que não prestava atenção; e em idealizador de formas sob medida, capazes de dar figura inteligente aos descompassos históricos da sociedade brasileira. Em suma, há um nexo a explorar entre a originalidade artís­tica da obra e a diferença histórica da nação.

Há alguns anos, por ocasião de novas traduções das Memó­rias póstumas e do Dom Casmurro, a New York Review of Books publicou uma resenha abrangente e consagradora do romance machadiano, assinada por Michael Wood.13 Note-se que o autor não é especialista em Machado nem brasilianista, mas um crítico e comparatista às voltas com a latitude do presente. O lugar da publicação e o rol dos autores sobre os quais o crítico tem escrito – Beckett, Conrad, Stendhal, Cal­vino, Barthes, García Márquez – parecem indicar que depois de 100 anos o romancista brasileiro entrou para o cânon da literatura viva. Aliás, Machado, nos Estados Unidos, começa a ser ensinado também fora dos departamentos de literatura brasileira, na área de literatura comparada, em cursos sobre os clássicos do romance moderno.

A certa altura de seu ensaio, que leva em conta a crítica brasileira, Wood propõe uma dissociação sutil. As relações com a vida local podem existir, tais como apontadas, sem entretanto esclarecer a “mestria e modernidade” do escri­tor. Ou, noutro passo: seria preciso interessar-se pela reali­dade brasileira para apreciar a qualidade da ficção macha-diana? Ou ainda, a peculiaridade de uma relação de classe, mesmo que fascinante para o historiador, não será “um tópico demasiado monótono para dar conta de uma obra­-prima?” E, finalmente, faltaria saber “por que os romances são mais do que documentos históricos”. Não há resposta fácil para essas questões, que não recusam as ligações entre literatura e contexto, mas situam a qualidade num plano à parte. As perguntas têm a realidade a seu favor, pois é fato que a reputação internacional de Machado se formou sem apoio na reflexão histórica. Tomando recuo, digamos que elas, as perguntas, resumem a seu modo a situação atual do debate, em que se perfilaram uma leitura nacional e outra interna­cional (ou várias não nacionais), muito diversas entre si.

A divergência tem base em linhas de força da cena inte­lectual contemporânea e não há por que esquivá-la. Para prevenir o primarismo, que sempre ronda essas diferen­ças, não custa lembrar que várias contribuições para a linha nacional vieram de estrangeiros, e que boa parte da crítica brasileira acompanhou a pauta dos centros internacionais. Contudo, se a cor do passaporte e o local de residência dos críticos não são determinantes, é certo que as matrizes de reflexão a que a divergência se prende têm realidade no mapa e na dimensão política, além de competirem entre si, como partes do sistema literário mundial.14

Uma das matrizes é a luta inconclusa da ex-colônia pela formação de uma nacionalidade moderna, por assim dizer normal, sob o signo do trabalho livre e dos direitos civis. Do ângulo da história, seria a dialética entre a jovem nação e o seu fundo herdado de segregações e coações, em disso­nância explícita (ou em harmonia secreta, diriam os anti–imperialistas) com o tempo. Como ponto de partida há o enigma estético-social representado pelo surgimento de uma obra de primeira linha em meio ao despreparo, à falta de meios, ao anacronismo e ao desconjuntamento gerais. Como é possível que nessas condições de inferioridade se tenha produzido algo de equiparável às grandes obras dos países do centro? Trata-se de um acontecimento que sugere, por analogia, que a passagem da irrelevância à relevância, da sociedade anômala à sociedade conforme, da condição de periferia à condição de centro não só é possível, como por momentos de fato ocorre. Assim, a obra bem-sucedida vai ser interrogada sob o signo da luta contra o subdesen­volvimento. A reflexão busca identificar nela os pontos de liga entre a invenção artística, as tendências internacionais dominantes e as constelações sociais e culturais do atraso com as sinergias correspondentes. Estas últimas, inseparáveis tanto do ingrediente nacional como do extranacional, são a prova viva de possibilidades reais, devidas a conjunções úni­cas – algo de agudo interesse, cuja análise promete conheci­mentos novos, autoconsciência intensificada, além de graus de liberdade imprevistos em relação aos determinismos cor­rentes. Entretecidas com o desejo coletivo de alavancar um salto histórico, as observações estéticas adquirem conotação peculiar. Combinadas a observações e categorias econômicas e políticas, bem como a aspirações práticas, elas fazem figura de recomendação oblíqua ao país. Tomam a contramão da teoria da arte nos países centrais, a qual vê nos aspectos refe­renciais ou nacionais da literatura uma velharia e um erro.

Dito isso, é claro que a integridade própria à grande obra é sempre um enigma que cabe à crítica elucidar, seja onde for. No quadro de uma sociedade inferiorizada, entretanto, a explicação adquire relevância nacional como parte de um discurso crítico sui generis. Trata-se de um programa tácito, cujo significado esclarecido, ou meramente veleitário, ou desdiferenciador, está em aberto. Assim, por exemplo, luga­res-comuns da história da arte incorporam novos significa­dos. A dialética entre acumulações artísticas localizadas e viravolta com potência estrutural, entre empréstimo estran­geiro e eclosão da originalidade nativa, entre vanguardismo artístico e incorporação de realidades sociais relegadas, entre acentuação de tendências, explosão das coordenadas e ele­vação do patamar, assim como a criação genial de nexos e saídas nos quais só parecia existir descontinuidade cultural e descalabro na relação de classes, tudo isso compõe um dese­nho imprevisto, que foge aos esquemas do evolucionismo e do progresso lineares.15 Com risco evidente de regressão, o anseio retardatário de integração nacional ajudaria o país a se revolucionar, ou a se reformar, ou a vencer a distância que o separa dos países-modelo, ou a se refundar cultural­mente (e, em todo caso, se tudo falhasse, permitiria refletir a respeito). Sejam quais forem os resultados para o futuro, a discussão dessas defasagens históricas e dessas soluções artísticas, próprias a nossa integração social precária, res­ponde à ordem presente do mundo, de cujo “desenvolvi­mento desigual e combinado” fixa aspectos substantivos.

Na outra matriz, com sede nos países do centro, uma guarda avançada de leitores – os intermediários poliglotas e peritos a que se refere Casanova – empenha-se na identifi­cação de obras-primas remotas e avulsas, em seguida incor­poradas ao repertório dos clássicos internacionais.16 É nesse espírito cosmopolita que Susan Sontag conclui a sua apre­sentação das Memórias póstumas, desejando aos leitores que o livro de um longínquo romancista latino-americano os torne menos provincianos.

Como parte dessa segunda matriz, o trabalho acadêmico dos países do centro coloca-se ele também as tarefas de reco­nhecimento e apropriação. As teorias literárias com vigência nas principais universidades do mundo, hoje sobredetermi­nadas pelas norte-americanas, buscam estender o seu campo de aplicação, como se fossem firmas. O interesse intelectual não desaparece, mas combina-se ao estabelecimento de fran­quias. Nessa perspectiva, uma obra de terras distantes, como a de Machado de Assis, na qual se possam estudar com pro­veito – suponhamos – os procedimentos retóricos do narra­dor, as ambiguidades em que se especializam os desconstru­cionistas, a salada estilística do pós-modernismo etc., estará consagrada como universal e moderna. A natureza sumária desse selo de qualidade, que corta o afluxo das conotações históricas, ou seja, das energias do contexto, salta aos olhos. É claro que não se trata de desconhecer o bom trabalho feito no interior de cada uma dessas linhas críticas, que só pode ser discutido caso a caso, mas de assinalar o efeito automá­tico e conformista das assimetrias internacionais de poder. Por outro lado, a cesta de teorias literárias em voga nas pós­-graduações dos Estados Unidos é heterogênea por sua vez, originária em boa parte de lugares tão pouco americanos quanto a União Soviética, Paris ou Nova Déli, e nesse sen­tido não parece uniformizadora. Contudo, o caldeamento no mercado acadêmico “local”, uma instância do American way of life e uma novidade histórica incontornável, distancia as teorias de suas motivações de origem. O mecanismo lhes sobreimprime uma involuntária feição comum, mediante a qual passam a exercer as suas funções de hegemonia, se possível em escala planetária, e dentro de muito desconjun­tamento. Os lados incongruentes dessa neouniversalidade talvez sejam mais visíveis para críticos periféricos, ao menos enquanto não tratam de adotá-la.

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