Antes de trabalhar no que viria a ser O jornalista e o assassino, nossa autora passara pela mesma situação de Joe McGinniss, quando também se viu processada pelo protagonista bastante real de um livro seu, In The Freud Archives, de 1983. Essa investigação trata da mirabolante e algo humorística luta pelo acesso e controle dos arquivos pessoais de Sigmund Freud, o criador da psicanálise, preservados por sua filha Anna num grande armário na casa em que seu pai morrera, em Londres.
Os documentos estavam sob a guarda de uma sumidade na ortodoxia psicanalítica, K.R. Eissler. Espécie de rei Lear, o idoso Eissler sentia que o encargo lhe pesava e procurava um sucessor confiável. Deixou-se seduzir por um jovem e talentoso scholar, Jeffrey Moussaieff Masson, especialista em sânscrito na Universidade de Toronto, no Canadá, que abandonara a disciplina para se dedicar com paixão à história da psicanálise. Eissler transferiu então a Masson o posto de secretário dos arquivos de Freud.
Quando dava os primeiros passos na elaboração da teoria psicanalítica, nos últimos anos do século 19, Freud se correspondia com um médico berlinense, Wilhelm Fliess, a quem relatava o andamento de suas pesquisas. Mais tarde, o pai da psicanálise destruiu as cartas de Fliess, mas este conservou as do amigo eminente. Depois de um rocambolesco percurso em que foram dadas como perdidas na Segunda Guerra Mundial, as cartas reapareceram. Foram parcialmente editadas em 1950. Masson estava autorizado a publicá-las na íntegra.
A correspondência Freud-Fliess cobre o delicado período em que o psicólogo visionário abandonou a chamada teoria da sedução. Com base no depoimento dos primeiros pacientes, Freud concluíra que a origem de suas neuroses remontava a algum episódio de abuso sexual de que haviam sido alvo quando crianças. Subitamente, porém, ele mudou de ideia, passando a acreditar que tais episódios não haviam acontecido na realidade, mas eram projeções fantásticas de desejos incestuosos reprimidos na infância. Tal mudança é essencial no cânone psicanalítico por ter dado ensejo à formulação do complexo de Édipo, que estruturou todo o desenvolvimento posterior da teoria.
Enquanto preparava a edição das cartas, Masson chegou à alarmante certeza de que Freud não alterara o rumo de seu pensamento por convicção, mas por oportunismo, depois de a teoria da sedução ter sido repelida pela comunidade médica de Viena. As notórias evidências de que sua nova hipótese suscitara repulsa ainda mais veemente que a anterior não abalaram a opinião que Masson passou a advogar com o entusiasmo e a eloquência que lhe eram característicos.
Eissler rompe relações com o pupilo traidor e o destitui do cargo de gestor dos arquivos. Nesse ponto, entra em cena outro aventureiro, Peter Swales, ex–assistente da banda Rolling Stones e autodidata erudito em psicanálise, que tenta envolver o iludível Eissler exatamente como Masson fizera pouco antes. Os especialistas em Freud parecem agora arqueólogos que rivalizam pelo achado do tesouro, como numa história de Indiana Jones. (Em seu livro sobre a luta em torno da “história” de Sylvia Plath, Malcolm diz, com efeito, que “cartas são fósseis dos sentimentos”, sempre muito cobiçadas por biógrafos.)
No ano seguinte ao lançamento do livro de Janet Malcolm sobre todo esse imbróglio, Masson entrou na Justiça contra a autora, acusada de atribuir a ele, por má-fé, declarações errôneas. Num passo embaraçoso, a jornalista não conseguiu apresentar em juízo anotações de três das declarações contestadas (posteriormente, disse ter encontrado o caderno em que constavam tempos depois de encerrado o caso, no sótão de sua casa). Mesmo assim, após dez anos de processo, no qual Masson pedia 2 milhões de dólares como reparação, Malcolm foi absolvida. Quando saiu O jornalista e o assassino, especulou-se que escrevera o livro como uma estranha forma de expiação do processo que Masson lhe impingira.
Esse é um ângulo interessante não somente porque o repertório cultural de Janet Malcolm é lastreado na psicanálise – o generoso estoque de ferramentas a que ela recorre quando confrontada com qualquer obstáculo intelectual –, mas porque são numerosas em seus escritos as analogias entre a relação psicoterapêutica e a narração não ficcional.
Ela diz, por exemplo, que o encontro jornalístico tem sobre o indivíduo “o mesmo efeito regressivo que a psicanálise”: ele é filho do escritor, considerado como mãe permissiva, mas o livro será escrito pelo pai severo. Em outra passagem, Malcolm compara novamente as fontes ao paciente psicanalítico: repetem a mesma história não importa para qual repórter, para qual analista. E acrescenta que no discurso desconexo do entrevistado as mensagens se transmitem de modo elíptico, assim como nos sonhos.
Malcolm considera que existe algo de literário na neurose, e que o trabalho da psicanálise é solapar essa estrutura dramática ou decompor seu enredo, “de um romance gótico, digamos, para uma comédia doméstica”, devolvendo à pessoa “a liberdade de ser desinteressante”. Nesse sentido, jornalista e analista atuariam em direções exatamente opostas.
“As personagens não ficcionais”, escreveu, “não menos que as ficcionais, derivam dos desejos mais idiossincráticos e das ansiedades mais profundas do escritor”. Em autora tão impregnada pela mentalidade psicanalítica, não é surpresa que sua própria obra revele, aqui e ali, resíduos do que terá sido seu romance familiar. Na maior parte de seus trabalhos é possível discernir certas personagens-chave que voltam à cena sob diferentes disfarces. Podemos chamá-las de o aventureiro sedutor (McGinniss, Masson, Peter Swales, Ted Hughes no livro sobre Sylvia Plath, Bernard Faÿ no livro sobre Gertrude Stein), a vítima incauta (MacDonald, Eissler, o “espírito” de Sylvia Plath) e o guardião do tesouro (Eissler e MacDonald de novo, a irmã de Ted Hughes). No cerne de suas turbulentas relações está a confiança outorgada e traída. Prosseguir nessas especulações seria usurpar as funções do psicanalista e adentrar numa seara ao abrigo de todo leitor.
Depois de redigir a maldição bíblica contida na primeira frase deste livro, Janet Malcolm ironiza os jornalistas que se absolvem da invectiva recorrendo a princípios pomposos como “liberdade de expressão” ou “direito do público de saber”. Sem prejuízo de sua crítica devastadora, é nesse ponto que o jornalismo noticioso – vulgar, superficial, feito às pressas – recobra seus direitos.
Pois toda discussão sobre jornalismo cedo ou tarde se depara com o velho conflito entre dois valores, o direito de livre acesso às informações de interesse público e o direito das personagens do noticiário à sua própria versão dos fatos. Sempre haverá uma solução empírica e acomodatícia para as manifestações desse dilema. É duvidoso que o primeiro dos dois valores deva predominar quando se trata de saber da intimidade sexual de Sylvia Plath ou das batalhas de vaidade travadas entre psicanalistas. Mas essa dúvida se dissipa em grande parte quando se trata da notícia clássica, aquela que concerne e preocupa todo mundo.
Quanto ao jornalismo literário, poucos o terão levado a uma consecução tão requintada como Janet Malcolm – e decerto ninguém o sujeitou a escrutínio tão exaustivo. Para discorrer sobre as ambições frustradas de todo narrador, ela evoca a conclusão de “O aleph”, conto de Jorge Luis Borges em que o protagonista vai a um porão de onde pode ver nada menos do que tudo sob todos os ângulos. “Mas como ver todas as formigas do planeta”, ela se pergunta, “quando se usam os antolhos da narrativa?”. A resposta, precária, é que sabemos com razoável certeza como foi que Tchekhov morreu. E sabemos muito sobre sua morte, quase mais do que precisaríamos, depois de ler Janet Malcolm.
OTAVIO FRIAS FILHO, jornalista e escritor, é diretor de redação do jornal Folha de S. Paulo. Publicou os livros De ponta-cabeça (Editora 34, 1999), Queda livre (Companhia das Letras, 2003) e Seleção natural (Publifolha, 2009). Este ensaio será publicado como posfácio de uma nova edição de O jornalista e o assassino, da coleção Jornalismo Literário da Companhia das Letras.
1. Em homenagem aos bons hábitos do jornalismo, convém informar o leitor de que Joe McGinniss respondeu a Janet Malcolm no epílogo de uma reedição de seu livro Fatal Vision. Afirma ali que O jornalista e o assassino contém “numerosas omissões, distorções e rematadas falsidades”. Justifica sua atitude perante Jeffrey MacDonald afirmando que acreditava no início em sua inocência, mas que a preparação do livro fora também um longo percurso, segundo ele penoso, que o conduziu à conclusão contrária. E sugere, com malícia e sem elegância, que Malcolm, “como muitas mulheres”, seria fascinada por homens condenados por crimes violentos, “especialmente contra mulheres”. Como evidência, cita a passagem do livro em que a autora, a propósito das cartas que trocou com o condenado, compara toda correspondência a um “caso de amor”.
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