Sua capacidade de observação, descrição e síntese é prodigiosa. Críticos que resenharam seus livros mencionam o temor imaginário de um dia recebê-la em casa, já que Janet Malcolm parece capaz de deduzir todo o caráter de uma pessoa a partir de um relance de olhos por sua sala de estar. Seu texto é rápido, vigoroso, rico em referências cultas, observações argutas e metáforas inspiradas. Embora a narrativa às vezes se perca em meio à massa de detalhes que esmiúça, ela tem a facilidade aparente do bom romancista para prender a atenção do leitor.
Malcolm compara seu método à “observação participante” dos antropólogos. Na realidade, ela explora um gênero de fecunda tradição no jornalismo americano desde meados do século passado. Foi na própria The New Yorker (e mais tarde na revista Esquire) que esse gênero se desenvolveu na forma de reportagens extensas e minuciosas, depois convertidas em livro, escritas por autores hoje considerados clássicos como John Hersey (Hiroshima), Lillian Ross (Filme), Truman Capote (A sangue frio) e Joseph Mitchell (O segredo de Joe Gould) – este último citado por Janet Malcolm, numa das raras entrevistas que concedeu, como “influência e inspiração”. Aos precursores do que se passou a chamar de “jornalismo literário” viriam juntar-se, nos anos 1960-1970, autores como Norman Mailer, Tom Wolfe e Gay Talese.
Como o termo indica, esses escritores-jornalistas incorporaram recursos da literatura ao jornalismo que faziam. Ao contrário do jornalismo tradicional, em que são banidas, as impressões que os fatos provocam na sensibilidade do narrador são descritas com fidelidade igual à empregada no manejo dos próprios fatos. Diálogos são transcritos em profusão. Cenas específicas e pormenores singulares, dada sua expressividade, ganham relevo desproporcional ao conjunto. Não existe um resumo noticioso no início do texto, que é urdido passo a passo, compondo um tecido complexo que esgota o assunto por saturação.
Ao contrário do que parece, é um tipo de jornalismo difícil de realizar. Não basta reproduzir as reações subjetivas do jornalista durante a apuração. Cada reportagem dessas demanda tempo (meses, às vezes anos de intenso trabalho) para ser bem feita. Requer exatidão e distanciamento por parte do jornalista, sem os quais ele produzirá um mero panfleto, e a misteriosa habilidade de conservar vivo o interesse da narrativa durante uma leitura demorada, exigente.
Com Janet Malcolm, esse gênero submete-se a um brutal autoexame em seus objetivos, métodos e valores. As reflexões da autora são imbuídas de certo fatalismo ao convergir para um problema que seria estrutural: a “falsidade que está embutida no relacionamento entre escritor e personagem e sobre a qual nada pode ser feito”.
A fonte – seja ela objeto de entrevista, biografia ou perfil – reitera a sua versão dos fatos de modo prolixo e obsessivo, convencida de que aquele relato corresponde exatamente à verdade. Procura por todos os meios influenciar, iludir e manipular o jornalista, para ela uma valiosa peça no contra-ataque ao imenso maquinismo posto em funcionamento para esmagar a sua história, a única legítima.
Ocorre que são raras, diz Malcolm, as personagens pertencentes “àquela maravilhosa raça de autoficcionistas, como o Joe Gould de Mitchell ou o Perry Smith de Truman Capote […] que fazem grande parte do trabalho pelo escritor, mediante sua própria autoinvenção”. Joe Gould (mendigo escritor), Perry Smith (assassino confesso) e seus similares na vida real tendem a ser “chatos prolixos e malucos patéticos” que apenas por meio da condensação literária realizam a ambição para a qual “na realidade eles apenas acenam grotescamente”.
De acordo com Janet Malcolm, somente o escritor de ficção é fiel à verdade, pois os “fatos” que relata no texto existem em sua imaginação tal como ele os descreve (será?). Já o escritor não ficcional, quando resume, seleciona e edita a loquacidade da fonte, acaba traindo a confiança que lhe foi emprestada ao substituir a versão dela pela sua, porque esta é mais interessante e serve melhor aos propósitos da história vertida em texto. Estamos sempre no reino das versões, já que a verdade é postulada como inalcançável.
Ninguém que tenha escrito sobre Janet Malcolm deixa de citar a famosa frase de abertura deste livro: “Qualquer jornalista que não seja demasiado obtuso ou cheio de si para perceber o que está acontecendo sabe que o que ele faz é moralmente indefensável”. Numa escritora tão sensível a nuances e tão precisa no uso das palavras, esse é um juízo drástico, com um timbre algo sensacionalista, como se o objetivo fosse provocar a agitada reação, que de fato sobreveio, de polêmica e também de hostilidade em relação à autora entre seus colegas.
Perguntou-se, com toda lógica, se acaso seria defensável que ela declarasse imoral um gênero que não obstante seguia praticando. Por mais que seu intento fosse problematizar os fundamentos de uma linhagem prestigiosa, considerada a forma mais elevada de jornalismo, a própria Malcolm, ao utilizar os procedimentos e recursos que condenava, incidia na mesma atitude “moralmente indefensável”. Tampouco se poderia ressalvar que o caso abordado em sua investigação fosse excepcional ou aberrante, pois ela deixa expressa, no final deste livro, sua opinião de que McGinniss fizera às claras o que “a maior parte dos jornalistas faz com mais sutileza e discrição”.
Sua crítica, embora se concentre no jornalismo, é radical a ponto de alcançar todas as formas de narrativa, igualmente inconfiáveis, com a exceção, como vimos, das estritamente ficcionais. Em seu livro sobre Tchekhov, por exemplo, publicado em 2001, Janet Malcolm reconstitui a cena da morte do grande escritor russo na noite de 2 de julho de 1904, num exercício fascinante de crítica comparada.
Tchekhov morreu num quarto de hotel na Alemanha, vítima de longa tuberculose, na presença de sua mulher, Olga Knipper, de um médico alemão e de um estudante russo conhecido da família. Segundo o relato da mulher, publicado poucos anos depois, Tchekhov disse ao doutor: “Ich sterbe” [Estou morrendo]. O médico ministrou-lhe uma injeção de cânfora e pediu champanhe. Serviu um copo ao doente, que se ergueu na cama para bebê-lo inteiro, dizendo à mulher que fazia tempo desde que tomara champanhe. Em seguida, recostou a cabeça e expirou.
Num segundo relato, posterior ao primeiro, Olga acrescentou dois detalhes que têm voltagem literária. Uma “grande mariposa irrompeu no quarto como um redemoinho” e logo depois, quando o doutor deixou o aposento, “no calor da noite a rolha recolocada na garrafa de champanhe saltou com um terrível estampido”. Outros pormenores foram divulgados pelo médico e publicados na imprensa nos dias seguintes à morte, e pelo estudante russo quando este, décadas após o episódio, resolveu fixar suas lembranças por escrito.
Depois de apresentar esse material primário, Malcolm reproduz a cena da morte tal como figura em nada menos do que oito biografias de Tchekhov. Em algumas, os tons melodramáticos são enfatizados e os lances de mais rendimento se encompridam; em outras, detalhes propícios são supridos pela fantasia do biógrafo. Certos itens – champanhe, “Ich sterbe” –voltam em meio às variações narrativas como motivos musicais.
O leitor sai da experiência persuadido de que Tchekhov morreu de forma não muito diversa da narrada (não há discrepâncias relevantes entre os relatos), mas também de que sua morte, tal como realmente ocorreu, jamais será conhecida. Malcolm deduz dessa cena a trivialidade de toda biografia, e filosofa que o âmago morre conosco, o que perdura é a casca.
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