Tal excitação moderna – que combina uma certa inocência da cultura de massas nascente com um kitsch suburbano –é o que subjaz aos retratos de figuras anônimas nos parques de diversão feitos por Walker Evans nos anos 1920 e 1930, assim como à gigantesca aglomeração de pessoas na praia, celebrizada por Weegee (Crowd, 1940). Anterior aos “paraísos artificiais” de Las Vegas e da Disney – seus filhos bastardos e dissidentes –, Coney Island é então o lugar de uma fricção tangível entre a experiência cotidiana alienante de trabalhadores urbanos e suas famílias e o alumbramento da fantasia efêmera. Já no final dos anos 1950, quando Robert Frank fotografa cenas noturnas de bêbados caídos na praia nas fes‑
tas do Dia da Independência norte-americana (Coney Island4th of July 1958), é o lado escuro e já desromantizado daquela experiência que aparece. Momento em que a solidão e a alienação retornam como a verdade recalcada de vidas cujos horizontes estão sendo progressivamente estreitados.
Também pela música popular a ilha tem presença marcante no imaginário norte-americano, num espectro de canções que vai do doce sucesso em jogral dos barbershop quartets (“Goodbye, my Coney Island Baby”), dos anos 1940, e da doo-wop song dos The Excellents nos 1960 (“Coney Island Baby”, 1961), cantando a saudade de um amor de verão perdido, até as releituras homônimas e mais recentes de Lou Reed e Tom Waits (“Coney Island Baby”, 1976 e 2002), em que ambiências soturnas ou agressivas revertem a imagem de idílio nostálgico que emanava da ilha, ao mesmo tempo que reforçam a sua caracterização como paraíso dos desajustados: um lugar “como um circo ou um esgoto” onde “pessoas diferentes” com “gostos peculiares” encontram o seu refúgio.3
Mas se o juízo negativo de Górki representava Coney como um lugar no qual a consciência ressecava sob o brilho intenso, talvez a impressão de outro eminente visitante tenha sido outra. Convidado a dar uma conferência na Clark University, Freud visitou a ilha em 1909. E, em que pese tanto a sua conhecida rejeição pelos Estados Unidos quanto a falta de uma documentação mais precisa sobre essa viagem, espalhou-se o boato de que Coney Island teria sido o único lugar a agradá-lo. Tal é o subtexto de uma exposição exibida até março de 2010 no Museu de Coney Island, em comemoração aos 100 anos desse mito, e sobre a qual o repórter do The New York Times diz o seguinte: “Independentemente do que ele tenha pensado sobre Coney Island, a exposição parece sugerir que Coney Island gosta de Freud” .4 E, de fato, a associação entre inconsciente, teatralidade e irrealismo dá subsídios para muita especulação, como fez o pesquisador Norman M. Klein em sua novela Freud in Coney Island and Other Tales.5 Nessa narrativa, que embaralha o documental e o ficcional, Freud se deixa em parte encantar pelas fantasias bíblicas erotizadas de Coney, em que se combinavam grandes estátuas com sexo à mostra, meninos reais vestidos de Mefistófeles vendendo amendoim e pipoca e fazendo brincadeiras nonsense e atrações com encenações de grandes catástrofes naturais e humanas, como incêndios em edifícios altos e em barcos no Mississippi, ou a destruição de Pompeia pela erupção do Vesúvio. O Freud de Klein, no entanto, não deixa de ver no excitante exagero cafona do lugar o sintoma de um problema tipicamente norte-americano, que qualifica como a obsessão por uma “estranheza e divertimento irresponsável”. Tão “irresponsável”, que fabricava casais novos nos chamados “Tonéis do amor”, onde homens e mulheres desconhecidos se desequilibravam no interior de um cilindro, sendo atirados uns aos outros –— donde seguiam, depois, em barquinhos para dois em túneis escuros. O que pensar disso em tempos tão paranóicos por ameaças de assédio sexual e atentado ao pudor?
Coney Island talvez seja o desdobramento moderno, e o ponto de mutação (norte-americano), daquilo que foi a relação simbiótica entre pompa, divertimento, exotismo e aberração na sociedade vitoriana, e que tão profundamente marcou as Feiras Mundiais do século 19. Não por acaso, boa parte do imaginário e do maquinário de Coney veio das Feiras, tais como rodas-gigantes, montanhas-russas, torres, obeliscos e o Parachute Jump, estrutura metálica que suspendia pequenos paraquedas em suaves descidas. Assim como, também, pigmeus africanos, índios sul ou norte-americanos, clowns e deficientes físicos de vários tipos, que eram exibidos lá em jaulas ou em shows circenses. Na virada do século, Coney Island tornava-se a pátria final desses objetos e seres, abrigando, por exemplo, uma cidade de anões – chamada Lilliputia – no interior de Dreamland, que ali formaram uma “comunidade experimental permanente”, onde a promiscuidade, a homossexualidade, a ninfomania e outras perversões morais eram exibidas, encorajadas e premiadas com títulos de nobreza, “ressaltando a distância entre o comportamento real e o implícito”.6
Portanto, nada parece mais discrepante em relação à moral casta e politicamente correta da sociedade multicultural contemporânea do que os horrores irresponsáveis de Coney Island – que em meio a ela, não por acaso, se tornou um espectro. Tendo em vista isso, é muito interessante levar em conta a ideia central de Rem Koolhaas em seu manifesto retroativo para Manhattan, no qual Coney Island é protagonista, figurando como uma “Manhattan embrionária”: a “incubadora dos temas incipientes e da mitologia infante” da ilha maior. Os temas são a obsessão pela artificialidade e pela fantasia e o uso da tecnologia para a construção de um aparato físico e simbólico fantástico e desinibido. Pois, para Koolhaas, os arranha-céus de Nova York não são a expressão de uma racionalidade burocrática, e sim a materialização de um delírio hedonista, que se deslocou do mundo do divertimento (Coney Island) para o mundo dos negócios (Manhattan), eliminando sua carga de irracionalidade, mas mantendo, no entanto, o mesmo espírito de fantasia. É o que ele chama de “vida dupla da utopia”, um processo de transformação da “parafernália da ilusão” (eletricidade, ar–condicionado, tubulações, telégrafos, trilhos e elevadores) em “parafernália da eficiência”. Assim, curiosamente chegamos ao ponto nevrálgico onde o texto começa. Se Coney Island é a gênese de Manhattan, como elas podem ter se afastado tanto a ponto de representar hoje universos tão avessos e inconciliáveis?
Voltando à narrativa histórica, em maio de 1911, a fiação elétrica dos demônios que decoravam a fachada do “Fim do mundo” de Dreamland entrou em curto-circuito, desencadeando um incêndio que se espalhou rapidamente com o forte vento marítimo. O duro golpe do real iria cobrar o saldo daquela inflação de delírios escatológicos fantásticos, reduzindo o parque a cinzas em apenas três horas. Seu imenso terreno viraria em seguida um campo baldio para estacionamento de veículos e amplas áreas livres. Também o Luna Park se incendiou em 1914, mesmo ano em que morreu George Tilyou, e o Steeplechase muda de mãos, restando até os anos 1960 como um mero coadjuvante da praia, que permanece, segundo Koolhaas, a “arena superpovoada da ditadura do proletariado, ‘monstruosa válvula de escape da metrópole mais sobrecarregada do mundo’”.
O saldo do trauma é a decisão de aplacar os excessos anteriores com o remédio higienista, tal como o conquistador que salga o chão da terra inimiga. Quando, nos anos 1930, o chefe do Departamento de Parques de Nova York, Robert Moses, incorpora Coney em sua jurisdição, empreende uma cruzada para transformá-la em um grande parque público. “Absorto em sonhos de avenidas arborizadas e ladeadas de gramados e boas quadras de tênis, ele considera a estreita faixa litorânea sob seu controle a base para deslanchar uma ofensiva que, gradualmente, substituirá a retícula das ruas de Coney por uma vegetação inócua”, ocupada apenas por edifícios grandes e espalhados, como o anódino Aquário Municipal, que ele constrói em 1957, em parte do terreno onde antes ficava o Dreamland. Segundo o diagnóstico mordaz de Koolhaas, “o Aquário é uma revanche modernista do consciente contra o inconsciente: seus peixes – ‘habitantes das profundezas’ – são obrigados a passar o resto da vida num sanatório”.