Coney Island e o divertimento irresponsável

serrote #4,março 2010

Coney Island e o divertimento irresponsável

GUILHERME WISNIK E HELOISA LUPINACCI

 

Se Paris é a França, Coney Island, entre junho e setembro, é o mundo. GEORGE TILYOU (1862-1914) [Criador do Steeplechase Park, o primeiro da ilha]

 

Mais do que uma viagem longa, o percurso de 20 e poucos quilômetros que separa o Midtown, em Manhattan, da dis­tante Coney Island, no sul da cidade de Nova York, repre­senta um abrupto mergulho no tempo. Nada mais alheio ao clima de opulência, sofisticação e pragmatismo, que caracteriza Manhattan, do que o ambiente rarefeito de ter­renos vazios, sobras de demolições, amplos estacionamen­tos e restos de parques de diversão e freak shows decaden­tes. Espiritualmente desconectados um do outro, Coney Island e Manhattan são dois mundos avessos, separados, no entanto, por apenas uma hora de metrô e situados na mesma cidade.

À medida que o trem avança pelo Brooklyn profundo – já tendo aflorado na superfície do chão desde a ponte Man­hattan –, atravessando terrenos baldios e estações subur­banas, voltamos a sentir o quanto a ilha-coração de Nova York é uma isolada bolha de prosperidade. Mas não é a oposição binária entre riqueza e pobreza, ou entre centro e periferia, o que mais choca e fascina quando finalmente aterrissamos na estação Stillwell, na esquina da avenida de mesmo nome com a Surf Avenue. Coney Island é, ela mesma, um autêntico mundo em formol, assim como os anões, bebês siameses, fetos de duas cabeças, de três per­nas, de um olho só, ou as mulheres sem cabeça, que ainda estão lá (real ou supostamente) à espera de visitantes. Um formol que, entretanto, não os conservou muito bem, pois se a vida em Coney Island parece emergir diretamente de um túnel do tempo, ela está, há muito, em avançado pro­cesso de decomposição.

Altos, monótonos e opressivos conjuntos de edifícios habi­tacionais de tijolo escuro, vastas áreas de pátios ferroviários e terrenos baldios são todos elementos comuns a paisagens suburbanas. Mas Coney Island tem muito mais do que isso. Naquele lugar pulsa uma enorme energia represada, que atingiu o seu ápice há aproximadamente 100 anos e que de lá para cá vem agonizando e carregando consigo as marcas dos maus tratos sofridos ao longo de todo o século 20 sem, no entanto, perder a sua essência estranha. Tão estranha e longínqua que hoje se perde na poeira dos tempos e da areia em constante suspensão pelos fortes ventos do lito­ral, na boca de entrada da baía de Gravesend, na foz do rio Hudson. Ambiente rarefeito e densidade histórica, eis aí uma curiosa combinação que tem atraído para lá a aten­ção de inúmeros e importantes artistas norte-americanos ao longo das décadas, em busca menos de um patrimônio histórico real do que de um certo estado de espírito, uma Coney Island da mente – título do mais importante livro de poemas de Lawrence Ferlinghetti. Um lugar pararreal que paira acima do chão, como um eterno “circo da alma”.1

Para o turista estrangeiro, Coney Island aparece como destino discretamente sugerido nos guias e mapas da cidade apenas por abrigar o Aquário Municipal, de modesto inte­resse. Mas já num grau menos standard e mais heterodoxo de informação turística, o lugar pode atrair visitantes por motivos variados: sejam os interessados em assistir aos jogos de beisebol do Brooklyn Cyclones no KeySpan Park, sejam os que desejam participar das festas da Parada da Sereia, em junho, dos torneios de devoradores de cachorro-quente, no dia 4 de julho, no histórico Nathan’s Famous, ou ainda das travessias a nado em águas geladas do Coney Island Polar Bear Club, na noite do Réveillon. Todas, atrações ligadas ao universo da diversão, do entretenimento, da curiosidade ou da bizarrice, que marcam a essência do lugar desde as últi­mas décadas do século 19, quando Coney Island se tornou um dos maiores destinos turísticos de massa do mundo em razão de sua praia e de seus delirantes e reluzentes parques de diversão: o Steeplechase (1897), o Luna Park (1903) e o Dreamland (1904).

Antiga estância balneária para a classe alta nova-ior­quina, a ilha situada ao sul de Long Island passou a ser invadida pelas multidões populares depois da construção das primeiras obras de infraestrutura que a conectaram à cidade: a ferrovia (1865), a linha de balsas (1881), as pon­tes do Brooklyn e de Williamsburg (1883 e 1903) e o metrô (1915). Assim, Coney Island desponta na história – junto com a modernidade – associada ao fenômeno das grandes concentrações metropolitanas, à efemeridade do dia de lazer fora (mas próximo) da cidade e à ascensão do universo mental da fantasia em grande escala, num arco amplo de possibilidades que vai do conto de fadas ao burlesco. Como escreveu Máximo Górki, que lá esteve em 1906:

As pessoas amontoadas nessa cidade realmente chegam a cen­tenas de milhares. Entram nas cabines como enxames de mos­cas negras. As crianças perambulam, quietas, com a boca aberta e os olhos deslumbrados. Olham em volta com tal intensidade, com tal seriedade, que vê-las alimentando suas pequenas almas com esse horror, que tomam erroneamente por beleza, inspira um doloroso sentimento de piedade.2

De acordo com a descrição feita pelo arquiteto holandês Rem Koolhaas no célebre Nova York delirante: um manifesto retroativo para Manhattan, nos domingos de verão do final do século 19, “a praia de Coney Island se torna o lugar de maior densidade demográfica do mundo”, sepultando defi­nitivamente sua antiga vocação de balneário natural. A par­tir daí, em vez de suspender a pressão urbana, ela passa jus­tamente a propor a sua intensificação nervosa, contrapondo à artificialidade da metrópole não o antídoto da natureza, mas a duplicação do “sobrenatural”: a lua, o onírico… Na mesma linha, o “banho elétrico” – com a iluminação da praia em torno de 1890 – não só permitiu dispersar melhor a multidão em dois turnos de banho de “sol” e mar, como reforçou a vocação do lugar pela artificialidade extrema.

Ainda segundo Koolhaas, o skyline do Luna Park era for­mado por uma miríade de torres, espirais e minaretes em estilos livres, que iam do renascentista ao oriental, criando um espetáculo de agulhas extravagantes que se somavam a uma teia de cabos e lâmpadas pendurados, figurando a paisagem lunar do parque como uma poderosa “cidade elétrica”. Mas o aspecto irreal dessa fantasia era apenas a face encantatória de uma infraestrutura solidamente con­sistente. Em 1907, o Luna Park tinha 1.700 empregados na temporada de verão, além de um sistema com estação de telégrafo e carbograma próprios, rádio e serviços telefôni­cos, 1,3 milhão de lâmpadas, uma população de 500 animais e 1.326 torres e minaretes construindo um skyline nunca visto. Nada fora de propósito, no entanto, uma vez que na alta estação, os três parques de Coney Island recebiam a “investida furiosa de mais de um milhão de visitantes por dia”, como diz Koolhaas.

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