Talvez o apogeu e o início do ocaso desse movimento estejam no segundo caso emblemático escolhido aqui. A experiência da produção independente foi a base material e de público para o desenvolvimento, em fins dos 1970, de um grupo que ficou conhecido como Lira Paulistana. Já a referência a Mário de Andrade no nome mostra que o grupo reunido em torno do porão mal ventilado que era o Teatro Lira Paulistana não estava para brincadeira. Muitos dos que são considerados membros desse grupo recusam a denominação, seja porque nunca se apresentaram naquele teatro, seja porque não se consideram integrantes de movimento nenhum. De qualquer forma, ao Lira estão associados nomes como Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, grupo Rumo, Língua de Trapo e Premeditando o Breque, Eliete Negreiros, Vânia Bastos, Tetê Espíndola. Nesse núcleo, duas das três táticas de guerrilha que vinham dos anos 1960 foram tentadas ao mesmo tempo.
Ainda que não tenha sido levada adiante por ninguém do grupo, a guerrilha na periferia da indústria cultural teve grande influência na produção feita ali. Basta pensar no vínculo entre Macalé e Itamar Assumpção, por exemplo, que é biográfica e musicalmente saliente. Ainda que Itamar não se colocasse mais na periferia, mas à margem da indústria, dentro do movimento dos independentes. Aliás, parece difícil encontrar um caso como o de Macalé a partir da década de 1980. A impressão que fica é que, das três táticas de guerrilha, sobraram mesmo apenas duas: o combate a partir de dentro e o combate à margem. Seja como for, o interessante da experiência do Lira foi que muitos tentaram ao mesmo tempo seguir tanto a experiência do movimento dos independentes como o padrão fixado na década de 1960 de disputar o terreno da própria indústria.
A vertente independente foi lentamente sufocada. Não pelo avanço técnico em sentido estrito. Pelo contrário, a montagem dos estúdios tinha ficado mais acessível, assim como o aluguel. A mudança se deu em duas outras dimensões. Em primeiro lugar, um processo de oligopolização da divulgação e da distribuição pelas grandes gravadoras, criando barreiras à venda e gerando custos de produção pouco acessíveis aos independentes. Em segundo lugar, a verdadeira revolução na percepção que foi o videoclipe, cujo eclipse só viria em fins dos anos 1990.
Gravar um videoclipe para lançar um novo álbum passou a ser obrigatório para alcançar o público, tanto em termos de divulgação como de fruição. A grande era da MTV transformou o clipe em uma nova etapa necessária da produção musical. E os clipes, por sua vez, passaram a se sofisticar de tal maneira que se tornaram peças cinematográficas e publicitárias de alto custo. Com isso, ao longo da década de 1980, “independente” passou progressivamente a ser sinônimo de má qualidade. A chegada do CD foi a pá de cal nesse processo. Uma situação que só viria a se alterar significativamente com os novos saltos tecnológicos dos anos 1990, com o MP3 e de maneira mais ampla com a internet, processo que massificou novamente a produção musical. E que indica, por sua vez, que as condições de fruição do público se alteraram substancialmente e, sobretudo, diversificaram-se.
Parece ter sido a percepção dessa mudança dos padrões de produção e de consumo musical na década de 1980 que fez muitos integrantes do Lira Paulistana buscarem também retomar o outro padrão de guerrilha da década de 1960, o de disputar a partir de dentro do terreno da própria indústria. Mas, nesse momento, eram as brechas e aberturas que já não existiam da mesma maneira.
Coisa que os Titãs, por exemplo, perceberam desde o início. Nunca tiveram outro modelo que não o de disputar o mercado. A exigência performática da estética do videoclipe era o elemento do grupo. Nisso reatavam com a estética do tropicalismo e de Lennie Dale. Mas já com um diagnóstico diferente. Não mais uma indústria cultural que está se tornando sistema e, por isso, está cheia de brechas. Mas uma indústria cultural já consolidada como sistema, e que, no entanto, por sua alta complexidade, produz brechas de novo tipo. Não mais aquelas próprias a um movimento, mas agora afeitas aos grupos. Só episodicamente os grupos estabelecem redes que se projetam como quase movimentos. Como, aliás, já era o caso dos Estados Unidos e da Inglaterra desde a década de 1960.
O padrão de intervenção a partir de grupos durou bem umas duas décadas. Rótulos como “o rock brasileiro dos 19 8 0” valem apenas como isso mesmo, como rótulos, não como movimento. Além disso, a partir dos 1990, o padrão dos grupos passa a contar também com a novidade dos “coletivos” – provavelmente pensados nos moldes dos coletivos de artistas plásticos da década de 1980. Os anos 1990 são também marcados por um novo retorno ao samba, que submerge e ressurge periodicamente – aspecto, aliás, já ressaltado por José Ramos Tinhorão em sua entrevista à revista Civilização Brasileira de julho de 1965, importante referência para o debate do ano seguinte na mesma revista.
O padrão de intervenção dos grupos entrou em crise com a crise da própria indústria – que hoje raspa o tacho dos catálogos e garante sobrevida a grupos como os Rolling Stones, mas que sabe bem que sua hora chegou. É uma crise que atinge a própria lógica sistêmica da indústria cultural, que vai ter de se reconfigurar de maneira radical. E é exatamente aqui que os debates de meados da década de 1960 deixam de fazer parte do passado para falar ao presente. Só que, para voltar ao início, a primeira impressão pode ser a de que não há ninguém para ouvir.
Uma resposta para A vida após a morte da canção