1.
“A arte de perder não é nenhum mistério”, escreveu Elizabeth Bishop em Uma arte. “Tantas coisas contêm em si o acidente/ De perdê-las, que perder não é nada sério”, ensina, antes ambíguo que conformado, o sujeito de um de seus poemas mais conhecidos. E prossegue:
Perdi duas cidades lindas. E um império que era meu, dois rios, e mais um continente. Tenho saudades deles. Mas não é nada sério.
–— Mesmo perder você (a voz, o ar etéreo que eu amo) não muda nada. Pois é evidente que a arte de perder não chega a ser mistério por muito que pareça (Escreve!) muito sério.1
Escrever aparece no poema como parte importante desse duro aprendizado das perdas – aceitá-las e compreendê-las é de alguma forma aceitar e compreender a morte a cada dia. Um caminho já bastante trilhado no domínio desta “arte” tem início na mais incontornável das dores, a extinção física e irrevogável de quem se ama, na quebra, “natural” ou não, das descendências e filiações, ou no desaparecimento daqueles que elegemos pelo afeto.
Há toda uma linhagem do luto na história das artes que em nada se confunde com a exposição pura e simples do sofrimento de quem cria. A perda, para o artista, é o ponto de partida para uma obra exigente: caminha-se no fio do próprio umbigo e daquele ponto, tão almejado e pouco alcançado, em que o mais particular e o mais geral esticam a corda que divide a autoexpressão pura e simples da criação artística, o depoimento bruto da escrita meditada.
As altas exigências da dor balizam três obras recentes que, cada qual a seu modo, reafirmam os laços profundos entre perda e criação. As fotografias de Annie Leibovitz narrando a morte de Susan Sontag, a publicação póstuma do Diário do luto, de Roland Barthes e o longo poema “H.”, de Carlito Azevedo, poderiam ter como epígrafe a reflexão de Sigmund Freud em Considerações atuais sobre a guerra e a morte, de 1915: “Se queres aguentar a vida, prepara-te para a morte”.
2.
O ensaio clássico de Freud sobre o luto, que ele considerava “um grande enigma” para o psicólogo, data dessa época. Escrito em 1915 e publicado pela primeira vez em 1917, Luto e melancolia2 descreve o que decorre “da reação à perda de uma pessoa amada ou de uma abstração que ocupa seu lugar, como pátria, liberdade, um ideal”. Em sua extensão patológica, que Freud identificava na melancolia, essa reação é, dentro do homem, um de seus inimigos ferozes, força que draga sua capacidade de desejar, amar e se relacionar com o mundo para investi-la, obstinadamente, num objeto perdido.
O trabalho do luto demanda o tempo do que Freud chama “detalhada execução do mandamento do exame de realidade”, ou seja, um check list da perda em todas as dimensões da vida e da experiência. De decepção em decepção, aquele que sofre vai tomando ciência de que “a realidade traz o veredicto de que o objeto não mais existe”. O mistério está justamente aí: depois de período de intensos sofrimentos, perda de apetite ou sono, tudo volta a um estado próximo do que se considera “normal”, no mais das vezes sem deixar arestas que impeçam o encontro, gradual ou não, com a própria morte.
3.
“Eu não tenho duas vidas”, escreve Annie Leibovitz no prefácio de A Photographer’s Life 1990-2005, explicando por que os momentos de intimidade com Susan Sontag estão no centro do livro que é um balanço de seu trabalho mais recente. Lançado em 2006, A Photographer’s Life daria início a uma revisão de carreira, complementada naquele mesmo ano por Annie Leibovitz – A vida através das lentes, documentário indulgentemente dirigido por sua irmã, Barbara, e, em 2008, pelo livro At Work,3 que narra os bastidores de algumas de suas fotos mais conhecidas não sem um toque de autoglamurização.
A Photographer’s Life é pontuado por duas perdas: a morte de Susan, em dezembro de 2004, depois de 15 anos de uma relação que ambas evitavam nomear (mas que na prática resultava, publicamente até, em uma convivência conjugal), e a do pai de Leibovitz, menos de três meses depois. O que justifica o livro e o diferencia daqueles organizados por grandes fotógrafos em retrospectivas de carreira é o apagamento voluntário das fronteiras entre público e privado, obra e vida. Que, neste caso, é a distancia abissal entre as páginas superproduzidas da Vanity Fair e as austeras imagens do pai no leito de morte, gesto que atualiza o de Richard Avedon, que também documentou os últimos momentos do próprio pai na série Jacob Israel Avedon.
Têm portanto um mesmo peso a célebre pose de Demi Moore linda e grávida e Susan nua, na banheira, mal escondendo a mastectomia que pontuou seu extenso sofrimento com o câncer. Estão lado a lado o portrait assustador de George W. Bush e seu staff, as ruínas, fumegantes, do World Trade Center, a família Leibovitz reunida, Sontag dormindo na casa de campo. De forma sutil, narra-se a cerimônia do adeus: aqui e ali documentos das quimioterapias, as internações, a raspagem do cabelo e, finalmente, os momentos finais, de cara para a morte.
“Desde quando as câmeras foram inventadas, em 1839, a fotografia flertou com a morte”, escreveu Susan Sontag no que ficaria sendo seu último livro, Diante da dor dos outros,4 curto ensaio sobre a fotografia das vítimas de guerra escrito explicitamente no calor do 11 de setembro. Em dado momento, refletindo sobre este universo particular de imagens, ela observa que, no extremo oposto das mortes públicas, “o sofrimento decorrente de causas naturais, como enfermidades ou parto, é escassamente representado na história da arte”.
Aí está, a meu ver, a melhor explicação para a estranheza provocada por estas imagens – previsivelmente, Leibovitz foi hipocritamente acusada pela sociedade de “expor” Sontag, assim como Simone de Beauvoir o fora em 1981 pela crônica dos últimos dias de Jean-Paul Sartre em A cerimônia do adeus.5 O corpo macerado pela doença, ligado a aparelhos, é explorado sem pudor. Uma série de flagrantes, que nada têm a ver com fotos “de fotógrafo”, documenta em detalhes o cadáver: as mãos inchadas, os pés aprisionados em sapatos que parecem absurdos, o rosto desfigurado que não deixa lembrar a imponência da escritora, invariavelmente altiva posando ou falando em público.
Na sequência, Sontag em câmara ardente se transforma num retrato que lembra a solenidade do Proust morto de Man Ray. Mais adiante, a imagem, desoladora, do apartamento de Sontag visto do terraço do apartamento de Leibovitz, numa Nova York soterrada pela neve no inverno de 2004-2005. Entre essas imagens, no início e no final de A Photographer’s Life, panoramas do deserto e anotações de Sontag para O amante do vulcão, romance que ela publicou em 1992.
4.
“Se a fotografia se torna então horrível é porque ela certifica, se assim podemos dizer, que o cadáver está vivo, enquanto cadáver: é a imagem viva de uma coisa morta”, escreve Roland Barthes em A câmara clara ,6 publicado menos de dois meses antes de sua morte, em março de 1980. Escrito por encomenda para as edições do Cahiers du Cinema, esse ensaio é e não é sobre fotografia. Sua ambição principal não é teórica, mas literária: trata-se de uma meditação, personalíssima, sobre a morte da mãe, o evento sob vários aspectos definidor de seus últimos dois anos de vida.
A publicação do Diário do luto,7 em janeiro de 2009, dá conta desse período e é importante para entender como o que chamava de “intratável realidade” da orfandade determinou importantes mudanças na escrita – e, portanto, na vida – de um homem de 62 anos, intelectual consagrado e influente. “Primeira noite de núpcias. Mas primeira noite de luto?”, escreve ele em 26 de outubro de 1977, um dia depois da morte de Henriette Barthes, na primeira das 330 fichas (ele amava as fichas) que formam o “diário”, coleção de fragmentos que não se organizam como narrativa ou sucessão, mínima que seja, de episódios.
Naquele ano que terminaria com a morte da mãe, Barthes alcançou uma dupla e rara consagração para uma mesma vida: o reconhecimento do grande público, que transformou em best-seller Fragmentos de um discursoamoroso, e a entrada no Collège de France, o posto máximo que um intelectual e professor francês poderia almejar. Seus cursos atraíam pequenas multidões, suas ideias espalhavam-se na academia e fora dela, e o Colóquio de Cerisy dedicava a edição de 1977 a discutir sua obra.
Barthes mergulha em profunda melancolia. O Diário registra o que Freud chamou de “sério afastamento da conduta normal da vida”. Um afastamento que não acontece na superfície – continua a viajar, publicar livros, escrever artigos –, mas no mais íntimo de sua criação. Mais precisamente na escrita. “Escrever para lembrar? Não para lembrar, mas para combater o dilaceramento do esquecimento na medida em que ele se anuncia, absoluto. Em breve o ‘nem sombra de’, em nenhum lugar, em ninguém.”
Engolfado pela dor – “Não dizer ‘luto’. É psicanalítico demais. Não estou de luto. Estou triste” –, Barthes decide fazer da literatura, da escrita literária, seu horizonte de sobrevivência e, implicitamente, de renascimento. Em A câmara clara, escrito em 48 dias, ele explica essa lógica da escrita: “Minha particularidade não poderá nunca mais universalizar-se (a não ser, utopicamente, pela escritura, cujo projeto, a partir de então, devia tornar-se o único objetivo de minha vida). Eu só podia esperar minha morte total, indialética.”
Nesse projeto, do qual se conhece apenas um planejamento do que seria um romance expressivamente batizado Vita nova, o prólogo é definido por uma palavra: “luto”. Dele restaram oito páginas manuscritas, lacunares, versões alteradas de um mesmo sumário que, até onde se sabe, não tiveram nenhuma continuidade. No primeiro esboço, há a indicação de uma “decisão de 15 de abril de 1978” e a pista: “A literatura como substituta do amor”.8
No dia 25 de fevereiro de 1980, ao deixar o Collège de France depois de mais uma aula do seminário A preparação do romance,9 Barthes é atropelado num acidente que, especula-se inconclusivamente, teria resultado mais de sua vontade que da fatalidade.1 0 Internado, morre em 26 de março. Naquela altura, já havia abandonado o diário – a última ficha datada registra simplesmente “Há manhãs que são tão tristes…” –— e seu projeto de literatura não havia chegado a termo. A escrita, no entanto, de certa forma o redimiu por contraste ao vazio deixado pela fotografia, “esse signo impiedoso de minha morte futura”.
5.
“Depois de quase duas horas de caminhada cega ao deixar o cemitério, caminhada durante a qual não sei o que me terá impedido de morrer atropelado como afinal coube a Roland Barthes, a fome trata de apurar meus sentidos”, escreve Carlito Azevedo em “Ritual”, quarta e última seção do longo poema em prosa “H.”, parte de Monodrama, primeiro livro em oito anos do poeta que estreou, aos 30, com o elogiado Collapsus Linguae.
Carlito não é poeta de arroubos ou da emoção bruta. Sua dicção é sóbria na melhor acepção da palavra. Incorpora referências e coloquialismo na mesma medida e, sobretudo em Monodrama, título que já apresenta essa tensão, arruma umas e outro em fragmentos narrativos, muitas vezes vizinhos da prosa. Viagens, países, tristezas, mulheres, notícias, vida – mas, no centro de tudo, está a morte. Não a morte qualquer, a morte da mãe, Hilda, com agá como a Henriette de Barthes.
A meio do livro, “Limpeza do aparelho” é um corpo estranho, em prosa, que avalia o que se leu até o momento e, levando o leitor para os bastidores, sinaliza o caminho para “H.”:
Você acha que seu livro precisa de um pouco de humor, você adoraria escrever alguns poemas bem-humorados, mas reconhece que agora, com mãe morta, amor no exílio e melhor amiga dizendo que não pode mais lhe ver e chorando porque acha que não presta para você, vai ser meio difícil encontrar alguma graça. Sua tríade pifou.
É da perda, portanto, da tríade pifada, que nascem os quatro movimentos de “H.”, cautelosa aproximação da morte. Da notícia, tão objetiva quanto possível, com direito a nota de pé de página (“O telefone tocou às 11h30.”), à plena assimilação do fim, a carapaça da linguagem vai sendo arranhada, trincada, escavada: “A ideia apavorante da morte de minha mãe, pelo que vejo, ultrapassou a superfície gelada, deixando-a intacta, e está fazendo sutis estragos em regiões que desconheço, não alcanço”.
O acesso a essas regiões, dura viagem de autoconhecimento, se dá precisamente através da escrita, que é a atividade incessante do poeta diante da própria dor, buscando apreender o desregramento que o surpreende. Como se respondesse à ambígua objetividade de Bishop – “A arte de perder não chega a ser mistério/ por muito que pareça (Escreve!) muito sério” –, o poeta afirma: “Sinto que se conseguir escrever agora o que se passa comigo estarei salvo, repito isso a mim mesmo algumas vezes, como repito mentalmente o refrão de que onde há obra não há loucura e onde há loucura não há obra e venho escrever”.
No segundo movimento, o poeta relê o que escreveu até então e aproxima-se mais, fisicamente até, da mãe, “imenso inseto preso no âmbar” do Alzheimer. O texto lhe traz “algo cinético e fluido”, combina a irritação provocada pelas primeiras manifestações da doença com o beijo diário de boa noite, filho transformado em mãe que vai repetir o gesto no velório, “o rosto molhado de lágrimas mas sem desespero”. Vacinado do sentimentalismo e talvez por isso exposto mais diretamente à dor, constata: “O composto harmonioso que fazia de H. minha mãe ficou destruído para sempre”.
“Motores” inicia o trabalho do luto. O poeta executa o “mandamento do exame da realidade” sobre o qual Freud escreveu inventariando, no cotidiano, os ruídos que dão ritmo à escrita. Durante a doença, no quarto ao lado, os espasmos da máquina de hemodiálise. Depois da morte, o “sistema de rumores” da casa altera-se fundamentalmente na vida solitária – “Às vezes, num ônibus antigo, rumo ao centro, me volta o motor que te adiava esse buraco na terra”.
“Ritual”, que encerra o poema, é precisamente o reajuste, sempre violento, da vida que segue com o estado de exceção da morte. Sentado na lanchonete popular, comendo, o poeta dirige-se à mãe pela primeira vez como Hilda e dela “ouve” o recado do fim irrevogável. Quando tudo cessa, diz a voz que tem origem na “larga eternidade de nada sentir, nada provar, nada tocar, ver e ouvir”, não há diferença entre a morte “tranquila”, durante o sono, de Chaplin e o corpo supliciado de Pasolini. Tanto faz, diz a mãe, “nesse louco planeta que agora, para você, gira também sem mim”.
P. S.: Consultada pela serrote sobre a possibilidade de licenciar as fotos de Susan Sontag aqui citadas, Annie Leibovitz responde através de sua assistente que essas imagens não podem ser publicadas separadamente das demais de A Photographer’s Life. A recusa é o melhor pós-escrito ao paradoxo que move a criação no luto, a dor mais íntima que talvez só se proteja com sua exposição pública.