serrote #6, novembro 2010
A arte de perder
PAULO ROBERTO PIRES
1.
“A arte de perder não é nenhum mistério”, escreveu Elizabeth Bishop em Uma arte. “Tantas coisas contêm em si o acidente/ De perdê-las, que perder não é nada sério”, ensina, antes ambíguo que conformado, o sujeito de um de seus poemas mais conhecidos. E prossegue:
Perdi duas cidades lindas. E um império que era meu, dois rios, e mais um continente. Tenho saudades deles. Mas não é nada sério.
–— Mesmo perder você (a voz, o ar etéreo que eu amo) não muda nada. Pois é evidente que a arte de perder não chega a ser mistério por muito que pareça (Escreve!) muito sério.1
Escrever aparece no poema como parte importante desse duro aprendizado das perdas – aceitá-las e compreendê-las é de alguma forma aceitar e compreender a morte a cada dia. Um caminho já bastante trilhado no domínio desta “arte” tem início na mais incontornável das dores, a extinção física e irrevogável de quem se ama, na quebra, “natural” ou não, das descendências e filiações, ou no desaparecimento daqueles que elegemos pelo afeto.
Há toda uma linhagem do luto na história das artes que em nada se confunde com a exposição pura e simples do sofrimento de quem cria. A perda, para o artista, é o ponto de partida para uma obra exigente: caminha-se no fio do próprio umbigo e daquele ponto, tão almejado e pouco alcançado, em que o mais particular e o mais geral esticam a corda que divide a autoexpressão pura e simples da criação artística, o depoimento bruto da escrita meditada.
As altas exigências da dor balizam três obras recentes que, cada qual a seu modo, reafirmam os laços profundos entre perda e criação. As fotografias de Annie Leibovitz narrando a morte de Susan Sontag, a publicação póstuma do Diário do luto, de Roland Barthes e o longo poema “H.”, de Carlito Azevedo, poderiam ter como epígrafe a reflexão de Sigmund Freud em Considerações atuais sobre a guerra e a morte, de 1915: “Se queres aguentar a vida, prepara-te para a morte”.
2.
O ensaio clássico de Freud sobre o luto, que ele considerava “um grande enigma” para o psicólogo, data dessa época. Escrito em 1915 e publicado pela primeira vez em 1917, Luto e melancolia2 descreve o que decorre “da reação à perda de uma pessoa amada ou de uma abstração que ocupa seu lugar, como pátria, liberdade, um ideal”. Em sua extensão patológica, que Freud identificava na melancolia, essa reação é, dentro do homem, um de seus inimigos ferozes, força que draga sua capacidade de desejar, amar e se relacionar com o mundo para investi-la, obstinadamente, num objeto perdido.
O trabalho do luto demanda o tempo do que Freud chama “detalhada execução do mandamento do exame de realidade”, ou seja, um check list da perda em todas as dimensões da vida e da experiência. De decepção em decepção, aquele que sofre vai tomando ciência de que “a realidade traz o veredicto de que o objeto não mais existe”. O mistério está justamente aí: depois de período de intensos sofrimentos, perda de apetite ou sono, tudo volta a um estado próximo do que se considera “normal”, no mais das vezes sem deixar arestas que impeçam o encontro, gradual ou não, com a própria morte.