Ao me reduzir a tal razão, porém, já não tenho nenhuma propriedade que me individualize, que me diferencie de qualquer outra pessoa. O que me individualizava, o que me diferenciava das outras pessoas era exatamente o que eu tinha de positivo e determinado, que é tudo o que pertencia ao meu corpo, à minha psicologia, à minha biografia, à minha situação no mundo. Ora, ante a razão, tudo isso é contingente, condicionado, relativo: pode ser ou não ser. Mas, se não sou necessariamente nada do que pensava ser; se sou antes o seu – o meu – nada, então eu poderia ter sido outro; poderia ser outro; poderia vir a ser outro; outro poderia ser eu. Como anota o heterônimo Bernardo Soares, “posso imaginar-me tudo, porque não sou nada. Se fosse alguma cousa, não poderia imaginar”.15 É a razão crítica que, a um só tempo, instaura a modernidade e estabelece a cisão do sujeito entre, de um lado, o sujeito indeterminado e negativo (portanto destituído do que normalmente chamamos de “subjetividade”, isto é, de psicologia), e, de outro, o sujeito positivo e determinado.16
Na vida prática, de um modo ou de outro, todos sentimos, independentemente de conhecer o cogito, o efeito da cisão que ele produz. “A crítica”, diz um famoso enunciado de Marx, que tinha em mente a crítica moderna à religião, “arrancou as flores imaginárias das correntes, não para que os homens portassem as correntes sem fantasias nem consolo, mas para que jogassem fora as correntes e colhessem as flores vivas”.17 Há no mundo moderno, é claro, aqueles que debalde ainda tentam crer e fazer crer nas flores imaginárias e nas fantasias; há aqueles que portam as correntes sem fantasia nem consolo e, nostálgicos das irrecuperáveis flores imaginárias e das fantasias, lamentam o desencanto do mundo moderno; e há aqueles que jogam ou tentam jogar fora as correntes e colher as flores vivas.
Alguns, por outro lado, além de sentir, como todo mundo, os efeitos da modernidade, estudam a filosofia moderna, seja para afirmá-la em teoria e/ou na vida, seja para desenvolvê-la, seja para negá-la. Fernando Pessoa experimentou cada uma dessas possibilidades. Os trechos dos fragmentos filosóficos de Fernando Pessoa que tenho citado mostram o interesse e a profundidade com que ele pensava filosoficamente sobre esses assuntos. O que o distingue é que ele não só viveu as possibilidades, mas viveu-as através da própria obra poética, até as últimas consequências, e com uma intensidade incomparável. Creio, por isso, que ele estava certo ao se descrever como “um poeta impulsionado pela filosofia, não um filósofo dotado de faculdades poéticas”.18
“O meu pior mal”, diz Pessoa, “é que nunca consigo esquecer a minha presença metafísica na vida. De aí a timidez transcendental que me atemoriza todos os gestos, que tira a todas as minhas frases o sangue da simplicidade, da emoção direta.”19 Assim, a cisão do sujeito moderno entre positivo e determinado, de um lado, e indeterminado e negativo, de outro, manifesta-se –— no mais das vezes de modo doloroso e dramático – em inúmeros e belíssimos poemas de Pessoa. Ela aparece, por exemplo, como inveja do animal não cindido:
Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.
Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.
És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.20
O gato brinca na rua como se estivesse no lugar mais íntimo da casa, na cama. Por oposição, infere-se que o poeta que aqui fala não se sente em casa nem sequer quando se encontra na própria cama. Não há distância entre o gato e o mundo, a cujas leis fatais ele obedece como as pedras à lei da gravidade ou as “gentes” aos instintos ou costumes. O poeta, livre até de si próprio, não segue leis fatais nem instintos, mas os considera a partir de fora. O gato sente o que sente; o poeta, ao interrogar o que sente, já se distancia do próprio sentimento. O gato é feliz, pois, mesmo não sendo praticamente nada, tem tudo o que lhe pertence. O poeta que o vê é o oposto. Vê a si próprio como se fosse outro: não se possui, não é ele mesmo, está sem si. O que quer que ele veja – ou melhor, o que quer que seja objeto do seu pensamento, o que quer que conheça, inclusive a si próprio – vira objeto, do qual se distancia justamente enquanto vê, pensa, conhece.
Muitos outros poemas e fragmentos de poemas do Pessoa ortônimo poderiam ser citados no mesmo sentido. Como o poema do gato, eles são tão claros que dispensam qualquer explicação, uma vez que tenhamos em mente a cisão do sujeito moderno. Posso mencionar, por exemplo:
Tudo quanto penso,
Tudo quanto sou
É um deserto imenso
Onde nem eu estou.
[…]21
Ou:
[…]
Vou no caminho
Que é meu vizinho
Porque não sou
Quem aqui estou.22
Ou:
Minhas mesmas emoções
São coisas que me acontecem.23
Ou:
Longe de mim em mim existo
À parte de quem sou,
A sombra e o movimento em que consisto.24
Ou:
[…]
Entre o que vivo e a vida,
Entre quem estou e sou,
Durmo numa descida,
Descida em que não vou.
[…]25
Ou:
Entre o sono e o sonho,
Entre mim e o que em mim
É o quem eu me suponho,
Corre um rio sem fim.
[…]26
As citações, claro, poderiam multiplicar-se. Passemos porém a outro ponto. Se sou necessariamente incondicionado e absoluto, a pura razão crítica, a pura negação negante, e se sou apenas de modo contingente, condicionado e relativo esta pessoa dotada de tais e tais traços físicos, de tal personalidade, de tal caráter, de tal biografia e de tais e tais sentimentos, isto é, se, enquanto sujeito indeterminado e negativo, só por acaso sou Fernando Pessoa, então também por acaso eu poderia ser, ou ter sido, ou vir a ser Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Bernardo Soares, António Mora etc.