Virando o jogo

O crítico americano McKenzie Wark não só entendeu isso, mas tentou levar a ideia às últimas consequências em seu provocador livro Gamer Theory.16 Wark cunha o termo “alegoritmo” para designar, no contexto dos games, o algo­ritmo computacional imbuído de poder alegórico. A relação intuitiva que temos com o conjunto finito de regras e resul­tados que rege um jogo pode ser projetada no conjunto infinito de regras e resultados da vida real, gerando uma parábola narrativa. Os jogos podem parecer modelos toscos do mundo, mas seus padrões restritos podem remeter aos padrões mais esfíngicos e entrópicos da vida real, e nesse sentido podemos vê-los também como representações digi­tais depuradas de uma realidade “suja”. Segundo Wark:

“Do ponto de vista da representação, o jogo é sempre inade­quado à vida cotidiana. Um Sim no jogo The Sims é um per­sonagem animado simples, com poucos traços e expressões faciais. Em The Sims 2 eles parecem um pouco mais realis­tas, mas a melhoria na representação, em alguns aspectos particulares, apenas eleva os padrões que fazem que deixe a desejar em outros aspectos. Do ponto de vista do alegoritmo, parece que o inverso é mais válido. A vida cotidiana, como espaço de jogo, parece uma ver­são imperfeita do jogo eletrônico. O espaço de jogo da vida cotidiana pode ser mais complexo e diversificado, mas parece ser muito menos consistente, coe­rente e justo.”

A conversão das experiências do mundo real em narrativas procedi­mentais esquematizadas que podem ser interpretadas e executadas até que se atinja objetivos claros e definidos é um atributo que distingue o jogo eletrônico de todas as outras formas de narrativa. É disso, e não apenas do prazer estético proporcionado pelo conteúdo do jogo em si – imagem, música, texto, diálogos dublados, animação e demais elementos reciclados de outros meios – que surge o prazer do jogo. Ao afirmar que a vida, com suas altas doses de caos, informação inacessível e anarquia de resultados, é uma cópia malfeita do jogo eletrônico, e não o contrário, Wark está fazendo uma provocação aparentemente absurda, mas que contém alguma verdade. O jogo eletrônico oferece objetos tangíveis ao nosso desejo de interpretar o mundo e de intervir nele. No jogo, toda experiência é quantificável, e o processo participativo pelo qual o enredo será desvelado pesa mais que o próprio enredo para gerar significado.

Eis, portanto, a chave para compreender a força de Passage: o jogo é ale­goritmo em estado puro. Nele, o processo de descobrir as regras do jogo e tentar executá-las é a própria mensagem: só aprendemos a viver vivendo; temos de tomar decisões como a de casar ou não com uma mulher antes de ter a experiência e a perspectiva necessárias para isso; optar por uma coisa implica sempre abdicar de outras; não se pode voltar atrás; cada instante é resultado de todas as ações anteriores; o passado se apaga; o amor conforta; o fim é solitário e inevitável. O que torna o jogo comovente não é a atuação tocante do casal de protagonistas, belas imagens ou palavras formando um fluxo de consciência virtuosístico, mas o ato de tentar descobrir o que está acontecendo, agir para dar um rumo à história e, num instante de epifa­nia – quando você entende que seu avatar está envelhecendo e que nada se pode fazer a respeito – perceber que o algoritmo fugaz é uma alegoria da sua própria mortalidade. O ato de jogar contém o significado.

 

http://www.youtube.com/watch?v=Vj-8C2misj0&feature=related

 

Quando joguei Passage pela primeira vez (no caso desse jogo, a única vez que conta), passei reto pela garota. Simplesmente não percebi que ela estava ali parada, esperando que eu a tomasse pela mão ou decidisse viver minha vida sozinho. Na segunda partida, descobri sua existência e por alguns instantes senti de maneira muito profunda e nítida que tinha deixado o amor da minha vida passar despercebido. Eu estava repetindo a experiência e tinha uma nova chance, coisa que a vida real não permite, mas a constatação me deu a sensação de uma perda irreversível. Projetei a maneira de jogar na minha própria experiência subjetiva e obtive uma história particular e uma emoção específica. Isso é narrativa procedimental. Estamos apenas começando a descobrir do que ela é capaz.

O que já está claro, a essa altura, é que o amor e a morte vão se impondo como os dois grandes temas presentes nos jogos que estão explorando novos territórios nas narrativas procedimentais e, com isso, abrindo caminho para uma linguagem própria que explore todo o potencial expressivo do meio. Os exemplos vão de diminutos jogos independentes como Passage até block­busters como Call of Duty 4: Modern Warfare, que contém duas sequências potentes em que o jogador morre de um ponto de vista em primeira pessoa. Uma delas, na qual somos forçados a assumir o papel de um soldado que se arrasta para a morte após a detonação de uma bomba atômica, já é um instante clássico da história dos games. Aos poucos, a morte no contexto dos videogames deixa de ser simplesmente um elemento da mecânica de jogo – a punição simbólica ao jogador que fracassa em cumprir um objetivo – e se torna um tema profundamente entranhado nos enredos e algoritmos para afetar emocionalmente o jogador.

 

http://www.youtube.com/watch?v=LhuIjNSg7Gg

 

Nesse sentido, Prince of Persia foi pioneiro ao excluir totalmente a morte do avatar de seu sistema de jogo. Como já mencionado, o ladrão/você nunca morre. Elika o salvará todas as vezes, usando seus dotes mágicos para cata­pultá-lo de volta a um ponto seguro do cenário, em geral logo antes do último desafio que você estava tentando superar. Boa parte da comuni­dade gamer crucificou esse aspecto do jogo, acusando Prince of Persia de ser fácil demais. Na verdade, ele só consolidou uma tendência que vinha se desenhando há muito tempo, desde a instituição dos save games nas gerações de consoles 8-bits, passando pelo advento mais recente dos checkpoints, ou marcos da narrativa nos quais você “ressuscita” depois de “morrer” para poder continuar jogando sem voltar ao início. Em vez de deixar você morrer e informar isso com uma mensagem ou tela preta, Prince of Persia pune sua falta de habilidade com um pequeno recuo que está elegantemente incorporado ao fluxo dinâmico do jogo e ao enredo. O fato de Elika sempre salvar você tem imenso significado para os rumos que a história acaba tomando e apenas reforça uma dependência mútua dos personagens sobre a qual o jogador não é informado, mas que expe­rimenta na prática toda vez que faz o ladrão errar um salto ou apanhar demais numa luta.

4 respostas para Virando o jogo

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