Virando o jogo

Afinal, como descobriremos pouco mais adiante na histó­ria, Elika morreu e foi ressuscitada pelo pai momentos antes de o jogo começar. Isso é insinuado numa vinheta animada com cortes rápidos e em clima de pesadelo logo antes da tempestade de areia que inicia o jogo. Nela, vemos o rei conversando com Ahriman. “Você sabe o que peço!”, ele diz, e o deus da escuridão responde: “Se quer o seu pedido atendido… atenda o meu!” E então vemos um close de Elika despertando de olhos arregalados, assustada, ofegante. Amargurado, o rei negociou a libertação de Ahriman em troca da vida da filha. A Elika que conhecemos no deserto acaba de ser trazida de volta à vida ao custo da destruição total do reino. Ela não pode viver com essa culpa e deseja que seu povo, que partiu movido por uma espécie de diás­pora autoinduzida que não fica bem explicada, possa vol­tar a sua terra e começar de novo.

 

http://www.youtube.com/watch?v=y7tA-6mlbNY

 

O início de Prince of Persias foi descrito aqui em detalhes por uma razão: quero chamar a atenção para o fato de que ele estabelece não apenas as bases do enredo e as motiva­ções dos personagens principais, mas sobretudo a relação entre os dois protagonistas, numa dimensão que ultrapassa o conceito clássico de narrativa que está presente no jogo na forma de diálogos automáticos e sequências cinemáticas. Você sabe que Elika precisa de você, porque teve de carre­gá-la desfalecida nos braços depois de ela ter voado nos ares para te salvar; não é algo que te disseram, é algo que você fez controlando diretamente o personagem. Por outro lado, você sabe que precisa de Elika porque ela usa sua magia para te salvar toda vez que você despenca em uma queda mor­tal ou está prestes a ser derrotado por um inimigo. Outro exemplo: no início, você precisa perseguir Elika para que o jogo avance; então, ela passa a seguir todos os seus movi­mentos. Pode parecer místico ou ingênuo para quem nunca experimentou jogar um game com alguma complexidade narrativa, mas o fato é que o jogador sente essa diferença de uma forma bem mais envolvente e íntima do que numa recepção que não depende de sua interferência ativa, como num livro ou num filme. O envolvimento não é apenas abs­trato. A evolução narrativa se dá num nebuloso limiar entre a abstração e a experiência real. Ela passou a me seguir. Ela confia em mim. Vou pular nesse buraco pra ver ela me salvar.

As sequências iniciais do jogo foram programadas com destreza para que o jogador vivencie o vínculo que nasce entre os protagonistas e compreenda desde já quais são as regras da relação que manterão ao longo da história. Essa relação não é apenas um dado do enredo: ela determina o que Janet H. Murray6 chama de “primitivas de participação”, ou as formas mais básicas pelas quais é permitido ao joga­dor participar ativamente da condução da história em uma narrativa interativa. Isso é um componente essencial do que acabei de chamar um tanto vagamente de “dimensão que ultrapassa o conceito clássico de narrativa”. Em cerca de 15 minutos de jogo, Prince of Persia deixa bem claro, por meio de suas primitivas de participação, que, sem ter um ao outro, você e Elika não são ninguém.

IMERSÃO, AGÊNCIA E ADOLESCÊNCIA

Quando me vejo na posição de defender a força narrativa dos videogames, gosto de citar uma experiência real que tive na infância envolvendo o jogo Metroid. Nessa aventura de ficção científica, controlamos um caçador de recompensas chamado Samus Aran pelas plataformas 21) do labiríntico e hostil planeta Zebes para aniquilar uma turma de piratas espaciais. Não é o caso de entrar em detalhes da trama. O que importa é que Samus veste uma armadura de corpo inteiro enquanto o controlamos em combates e explorações durante horas e horas, até que, no fim, depois de encontrar e destruir o cérebro-mãe, Samus – ou seja, você mesmo, pois a distinção já está de certa forma apagada a essa altura – tira o capacete e revela ser uma mulher. Ainda levaria anos para que Lara Croft sedimentasse a era das grandes heroínas dos jogos de ação. No final da década de 1980, um caçador de recompensas era, por definição, um homem, e as moças eram tipicamente como Peach, de Super Mario Bros: prince­sas a ser resgatadas.

A surpresa arrebatou muitos pirralhos gamers como eu. Não era só que Samus era mulher: eu tinha controlado uma mulher o tempo todo, sem saber. O personagem de um game é, afinal, a fusão dos dados fornecidos pelo programa com a participação ativa do jogador que o controla. Você não está apenas imaginando ou vendo o personagem. Em certo sentido, você o representa fisicamente, não como um ator, mas como se ocupasse um boneco com um conjunto de habilidades predefinido e um destino a cumprir.

Muitos anos depois, quando li Grande sertão: veredas, lembrei imediatamente de Samus quando cheguei na parte em que é revelado o sexo de Diadorim. A surpresa do romance de Guimarães Rosa me tinha sido negada pela série da Tv Globo, que meio que a arruinou para todo o povo brasileiro, para todo o sempre, mas o que pensei foi: “Pra quem chegou até aqui e não sabia, deve ter sido como chegar ao final de Metroid sem saber. Uau!”7

A anedota aponta para um fato: a sublimidade da narra­tiva é possível no meio dos jogos eletrônicos, mas ela não se encontra só no nível do enredo. A história de Metroid é, em si, dramaticamente insípida, ainda que a concepção inspirada de seu universo fantasioso tenha rendido muitos jogos e tone­ladas de fan-fiction. Onde se encontra, então, esse pontencial para o sublime? Se não foram 600 páginas de prosa refinada que me conduziram a tal impacto emocional, o que foi?

4 respostas para Virando o jogo

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