serrote #1, março 2009
Rugas – Sobre Nelson Cavaquinho
NUNO RAMOS
Uma característica curiosa do samba brasileiro é a dificuldade de se saber quem é o autor da canção – os próprios sambas são quase sempre mais conhecidos que seus compositores, como se houvesse uma espécie de obra coletiva pairando sobre eles. Assis Valente? Ou foi Ataulfo Alves? Herivelto Martins? Não seria Wilson Batista? Monsueto? Ou Manacéa? Se isso é resultado do predomínio, até a bossa nova, dos cantores (bastante conhecidos) sobre os compositores (bem menos), da própria precariedade biográfica de tantos desses compositores (que incluía, constantemente, a venda de composições, muitas vezes para os próprios cantores) e ainda da ausência de pesquisas detalhadas sobre o assunto, aponta também para uma questão esteticamente importante, que merece atenção. Alguns de nossos maiores compositores parecem fazer parte, mesmo em seus momentos máximos, de um estilo, o samba, que não requer a individualização imediata de cada obra. Daí que o pot-pourri, essa forma algo detestável de achatamento das diferenças entre cada canção, tenha uma recorrência no samba que não poderia ter em outro gênero. Com temas, rimas, soluções melódicas e harmônicas até certo ponto imunes à crise, com situações de vivência tendendo ao coletivo (rodas, terreiros), embora tenha tantos e extraordinários autores, o samba parece recalcar sem muito trauma o espaço da autoria.1 Claro que há, desde sempre, exceções, autores cuja singularidade salta aos olhos, quer a gente queira, quer não: Noel, por exemplo, talvez pela engenhosidade espantosa da letra; Caymmi, pela simplicidade arquetípica de cada achado. Esta lista poderia continuar, mas não me parece equivocado pressupor, nas décadas que assistem à formação de nosso samba, e de grande parte de nossa canção em geral, uma predominância do gênero sobre as conquistas individuais.
De modo geral, épocas com grandes achados linguísticos são propícias a isso: a qualidade extrema das madonas, na pré-renascença, faz com que diversas delas se pareçam entre si e, muitas vezes, com as obras-primas de um Bellini; no barroco, a influência de Caravaggio sobre seu tempo foi tão acachapante que, embora sua própria identidade salte aos olhos, é muito difícil distinguir um discípulo do outro (e são inúmeros); a semelhança entre Picasso e Braque é assombrosa, e também entre eles e seus seguidores, durante os anos de desenvolvimento dos cubismos analítico e sintético. Para bem e para mal, parece que, quando as conquistas estilísticas são muito bem-sucedidas (quer tenham sido produzidas por um autor identificável ou por uma soma deles), a digital de cada artista nem sempre ocupa o primeiro plano. Algo semelhante ocorreu, entre nós, durante o barroco mineiro, onde Aleijadinho se destaca num quadro de excelência que quase se equipara a ele. Em outra área, daria para pensar no cinema hollywoodiano, muito mais refratário à noção de autoria que o cinema europeu – afinal, foi preciso esperar pelo pessoal do Cahiers du Cinéma francês para que a identidade de cada diretor fosse mais bem especificada. Depois dos anos de nascimento, essa estabilização de recursos estilísticos degenera muitas vezes para o tédio e a mumificação (os “caravaggescos” são exemplo disso), mas, enquanto a coisa está viva, formando-se, testando-se, a boa notícia é que muitas vezes o trabalho de um autor desconhecido ganha o estatuto e a força de uma verdadeira obra-prima. Entre nós, os discos de João Gilberto estão repletos de achados assim – autores de quem nunca ninguém ouviu falar produzindo canções à altura dos compositores maiores. O estilo, quando nasce com força, oferece à média dos criadores, como um berçário anônimo, matéria-prima acessível e rica.
Como em tantas outras coisas, a bossa nova há de ser um divisor de águas também neste ponto – a partir dela, a constelação dos autores/compositores define-se com maior nitidez. Não há anonimato propriamente e o aproveitamento das composições passa a ser muito maior. O desenvolvimento de uma indústria cultural de segunda geração (a da televisão/indústria fonográfica, que sucedeu, nos anos 1960, a “Era do Rádio”, que vinha desde os anos 1930), ao alcance dos que vieram em seguida à bossa nova, vai atribuir a cada um o que lhe é próprio. O misto de anonimato e exposição, de (total) amadorismo e (mínimo) profissionalismo, característico da nossa canção até os anos 1950, encerra-se aqui. É difícil especificar quanto da sua grandeza veio dessa mistura rara (própria de seus anos de formação) entre o mundo privado, familiar quase, dos artistas-compositores e um grau razoável de exposição pública por meio do rádio e de momentos como carnaval, campanhas políticas e festas em geral (estádios de futebol, por exemplo), além de uma incipiente indústria fonográfica. Embora bastante amadora, a canção brasileira alcançou assim, desde as origens, um significado social que nenhuma outra forma de arte teve entre nós. Vivia, desde sempre, na boca das pessoas – os anos se contavam pelas marchinhas de carnaval e para cada situação um samba logo se formava. Uma enorme solicitação parecia pairar no ar, ainda que não se cumprisse muitas vezes. As canções retornavam então para o circuito íntimo sem atingir o público, e permaneciam nele, como tesouro desperdiçado e lenda, ou eram esquecidas de vez – mas isto não seria possível se efetivamente, em especial através do rádio e da indústria fonográfica que nascia, diversas canções não tivessem cumprido o seu destino e atingido o público, solicitando, ainda que vicariamente, uma produção incessante. Com a bossa nova e o salto subsequente da indústria cultural, em especial com o advento da televisão, alcançando o que não alcançara, atingindo quem não atingira, essa proporção de amadorismo/profissionalismo, de solidão e compartilhamento, se altera. É possível falar que a época clássica da nossa canção se encerra aqui, e que a geração dos anos 1960 e 70 será a expressão explosiva dessa crise.
No entanto, é na contramão desse novo momento, próprio dos anos 1960, com maior acesso ao mundo lá fora e próximo de uma promessa mais efetiva de público, que duas vozes extraordinárias aparecem, no Rio de Janeiro: Cartola e Nelson Cavaquinho. Gravados em LP no início dos anos 1970, têm em comum, além da amizade e da escola (Mangueira), uma larga trajetória. Fizeram razoável sucesso lá atrás (Cartola foi gravado por Carmen Miranda, Chico Alves, Mario Reis, Silvio Caldas e Aracy de Almeida, nas décadas de 1930 e 40; Nelson foi gravado por Alcides Gerardi e, mais de uma vez, por Ciro Monteiro, na década de 1940, e ainda por Roberto Silva e Dalva de Oliveira, na de 1950), desapareceram por um tempo e voltaram, na esteira da descoberta do morro pela classe média carioca, no início dos anos 1960,2 com um conjunto de canções espantosamente forte e maduro, um ponto de vista absolutamente original e uma diferenciação estilística nítida. Aquele “patrimônio comum” do samba parece interromper-se aqui e uma imparidade poética em relação ao que foi feito antes salta aos olhos. Apesar de testemunharem quase a origem do samba (Cartola, fundador da Mangueira, nasceu em 1908; Nelson Cavaquinho em 1911), suas melhores canções formam já uma expressão tardia do gênero, desconectada do estar no mundo do período, digamos, clássico da canção popular brasileira (décadas de 1930 a 50). Cartola e Nelson atravessam essa época áurea do samba literalmente em fuga – Cartola desaparecido, com fama de morto; Nelson vagando por aí, dando e tomando esmolas, patrulhando as ruas, embebedando cavalos, trazendo galinhas para casa. Se Zé Kéti é a face de alguma forma dialogável desse mundo ressurgido – em suas parcerias com Nelson Pereira dos Santos e com Nara Leão, na poética de esquerda de composições como “Opinião”, “Acender as velas” ou “Malvadeza durão”, ou ainda no próprio show Opinião, que fez com Nara Leão e João do Vale –, Nelson e Cartola representam, em estado puro, o amadorismo que morria – afinal, quase morreram, mesmo –, com sua cota de solidão e esquecimento, tornado forma e canção, em plena era nascente do profissionalismo e da indústria cultural televisiva. É em nome dessa face dissipada da nossa canção que compõem, numa espécie de contato permanente com a derrisão e o esquecimento que, no entanto, iam diminuindo inelutavelmente. Nascem, assim, já na contramão do tempo, reagindo à urgência quase fóbica dos anos 1960 com uma espécie de extemporaneidade inabalável. Paulinho da Viola, que vem inteiro dessa matriz, acrescenta a ela a consciência, própria dos trabalhos tardios.
A primeira marca desses dois compositores é a abstração. Já não servem, não respondem propriamente a nada, ou melhor – nascem muitas vezes de uma situação concreta para logo se moverem até um ponto de vista distanciado, moral ou cósmico. O samba parece querer libertar-se da anedota, e mesmo de qualquer identidade com uma função, um papel, uma persona. Para colocar de outra forma, ele é o movimento mesmo de ascensão do concreto ao abstrato – este é o caminho que percorre (diferentemente de Paulinho da Viola, que já nasce abstrato):3 num samba de Cartola, uma traição a um amigo (“fui trair meu grande amigo”) leva, no início da segunda parte, a uma máxima como “faço tudo para evitar o mal/ sou pelo mal perseguido”. O morro, de onde olha o sujeito lírico, passa a ser, antes de tudo, e literalmente, um lugar alto, distante, isolado. Instalado ali, o compositor, sozinho, é soberano. Aquela canção que se estabilizou com Noel Rosa, multimórfica, penetrante, grudada ao rés do chão, fundida à vida da cidade, dissipada nos bolsos, nas vielas, nas horas da madrugada, espalhada na gíria e no contexto imediato, na dança, no ganha e perde das disputas entre os compositores e do querer-ser mais imediato, essa canção, em suas inúmeras metamorfoses, pode descansar agora, feita de uma matéria mais calma e constante. Assim, uma outra característica de ambos aparece inevitavelmente: a sobriedade, espécie de nitidez formal, singela ou solene, que cria distância ao mesmo tempo que compensa o indefinido do assunto. O compositor não ginga, não desvia, não malicia – nada tem do malandro, e a canção vagabunda, oferecendo-se a toda hora às necessidades do mundo, parece quase absurda aqui. “Ali onde a sobriedade te abandona, ali se encontra o limite do teu pensamento”, dizia Hölderlin.4 Há, de fato, um limite, ou contorno, nas composições de Cartola e Nelson Cavaquinho, um pertencimento, uma espécie de pudor que multiplica a gravidade das canções. Talvez por isso seu ponto de vista seja sempre tardio – parece que a vida, de certa forma, já foi vivida. A velhice é, portanto, a terceira característica comum a Nelson e Cartola, o ponto de vista de quem já viveu. Há uma experiência acumulada aqui, que obriga a uma contenção e sobriedade, e a um cansaço de fundo que vem dela.