Holden aos sessenta

Deve ter sentido que uma aspirante a redatora de revista na Nova York de 1953, quando Salinger estava no auge, veria naturalmente a vida de um jeito salingeriano. Quando Esther diz, por exemplo, “Sou estúpida com relação a execuções” (1953 é o ano em que os Rosenberg foram executados), está ado­tando uma atitude de Caulfield. A vaga aversão de Esther ao sexo é uma aver­são parcialmente aprendida com O apanhador; sua obsessão pela loucura e o suicídio é em parte a obsessão de uma admiradora de “Teddy” e de “Um dia perfeito para peixes-banana”. Em outros aspectos, porém, A redoma de vidro e O apanhador no campo de centeio são livros muito diferentes, e a diferença pode ser sintetizada no fato de que nenhum leitor jamais quis ser Esther Greenwood. Holden (a despeito da confusão do executivo da Harcourt Brace) não é louco; ele relata sua história instalado num sanatório (onde se inter­nou por causa do temor de estar com tuberculose), não num hospício. A bru­talidade do mundo o deixa doente. A mesma brutalidade enlouquece Esther.

A redoma de vidro também se tornou parte do currículo de inglês do colé­gio, um texto oficialmente aprovado para adolescentes, um livro sobre a cultura dos jovens. As versões posteriores de O apanhador as de Thompson, McInerney e Eggers –— ainda não são canônicas nesse sentido. As pessoas não as leem por terem sido recomendadas pelos pais. Leem pela mesma razão que as leva a escutar rock alternativo ou ver Pulp Fiction seis vezes – porque são coisas que ensinam uma atitude. São manuais de sensibilidade, mos­tram que tipo de infelicidade está na moda na década em curso.

As novas versões de O apanhador no campo de centeio são todas construí­das, grosso modo, sobre o mesmo molde: o trauma desencadeado por uma morte (no livro de Thompson, é a morte dos anos 1960), seguido por um episódio de regressão emocional e uma espécie de guerra obscura, predo­minantemente mental, com o restante do mundo. Elas compartilham com O apanhador e A redoma uma temática vagamente cristã referente a salvação, redenção e renascimento, e se servem fartamente do catálogo de Salinger e Plath: múmias, fetos, comas, manchetes sensacionalistas, perversões, sexo desastrado, tentativas de suicídio, suicídios, fantasias de morte, mortes. Os narradores têm um desprezo mordaz por tudo e todos, incluindo eles pró­prios. Os livros são divertidos, mas são sobre perda, frustração e derrota. E cada um deles parece ter atingido um nervo geracional, como se ninguém tivesse contado antes aquela história, ou tocado aquelas notas. O que torna tão irresistível a sua melancolia?

Pensamos na nostalgia como uma emoção que cresce com a idade, mas, como a maioria das emoções, ela é mais aguda quando somos jovens. Há alguma nostalgia mais poderosa que os sentimentos de um aluno do quarto ano revisitando sua classe da pré-escola? Aquelas cadeiras minúsculas, os velhos tubos de massinha, os cantinhos onde empilhávamos nossos agasa­lhos sobressalentes – queremos entrar de novo naquele mundo, mas agora estamos no quarto ano, somos grandes demais. Caímos fora do carrossel. Embora “juventude” supostamente signifique entusiasmo pela mudança, gente jovem não tem mais vontade de mudar do que qualquer outra pessoa, e é até provável que tenha menos. O que eles secretamente querem é o que quer Holden: querem que o mundo seja como o Museu de História Natu­ral, com cada coisa congelada exatamente do jeito como era na primeira vez que a encontraram.

Uma boa parte da “cultura jovem” – isto é, as coisas que as pessoas mais jovens consomem, em oposição às coisas que as pessoas mais velhas con­somem (como O senhor das moscas) com o intuito de aprender sobre “a juventude” –— apela para esse sentimento de perda. Você vai a uma festa em que está tocando uma nova canção pop, e pelo resto da sua vida ouvir aquela canção desencadeia a mesma emoção. Ela toca no rádio e você pensa: naquele tempo é que as coisas eram boas de verdade. Você quer ouvir de novo e de novo. Ficou viciado. A cultura da juventude adquire sua pungên­cia com o tempo, e de modo tão completo que você mal consegue ver o que ela é em si. É simplesmente, e de modo permanente, a “sua canção”, a sua história. Quando pessoas que cresceram nos anos 1950 dão O apanhador no campo de centeio a seus filhos, é como se mostrassem um velho álbum de fotografias: este sou eu.

Não é, claro. Talvez, na verdade, a nostalgia da cultura jovem seja com­pletamente espúria. Talvez ela convide a nos entregarmos a lembranças agridoces de uma infância que nunca tivemos, a um idílio de canções dos Beach Boys e cheeseburgers e conversíveis e amores adolescentes que foi construído por canções pop, programas de televisão e filmes, e tem muito pouca relação com qualquer experiência que tenhamos mesmo vivido. Mas, seja espúria ou não a emoção, as pessoas a sentem. É a certeza romântica, com a qual todos esses livros nos seduzem, de que de algum modo, em algum lugar, alguma coisa foi tirada de nós, e não podemos consegui-la de volta. Um dia, no passado, giramos de fato num carrossel. Dava a impressão de que ele duraria para sempre.

1. Em alemão no original. Literalmente, “dor do mundo”. Termo supostamente cunhado pelo escritor alemão Jean Paul. [N. do T.]

2. Os três trechos foram transcritos de acordo com a tradução brasileira de O apanhador no campo de centeio feita por Álvaro Alencar, Antonio Rocha e Jorio Dauster para a Editora do Autor. [N. do r.]

 

Do cinema à filosofia, o ensaísta LouiS MENAND (1952) cultiva variados interesses que têm na vida intelectual e cultural americana seu ponto de convergência. The Metaphysical Club, que narra os princípios da filosofia pragmática a partir de seus nomes fundadores, rendeu-lhe um Pulitzer em 2001. Colaborador da The New Yorker e da The New York Review of Books, trabalha hoje numa história cultural da Guerra Fria. O ensaio sobre Salinger foi publicado originalmente nos 50 anos de O apanhador no campo de centeio e integra If You Really Want to Hear about It, coletânea em que críticos e escritores como Alfred Kazin e John Updike discutem a obra-prima de Salinger.

TRADUÇÃO DE JOSÉ GERALDO COUTO

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