Holden aos sessenta

“Zooey” e “Seymour” são exibicionistas porque a corrente emocional que move os personagens se tornou livre de qualquer coisa que de fato lhes tenha acontecido. Eles não são lançados num estado de intensidade mais elevada pelo trauma ou pela dor. Em “Franny”, a crise espiritual de Franny Glass é uma espécie de biombo que encobre a circunstância bastante mundana de que ela foi engravidada por um homem que ela percebe que continuará sendo, a vida toda, um major inglês pomposo. Mas em “Zooey”, publicado dois anos depois, a crise espiritual de Franny é legítima, porque, ao que parece, ter crises espi­rituais é o preço que se paga por ser um Glass neste mundo sórdido. Não há sinal nenhum de gravidez. Temos, em vez disso, a Senhora Gorda de Seymour. Depois de 1955, Salinger parou de escrever histórias, no sentido convencional. Parecia ter perdido o interesse pela ficção como forma de arte – talvez achasse que havia algo de manipulador ou inautêntico no dispositivo literário e no controle autoral. Sua presença começou a se dissolver no mundo da sua cria­ção. Ele deixou que os títeres assumissem a direção do teatro.

A The New Yorker não viu problema em publicar “Zooey” (que é até hoje o mais extenso texto de ficção que ela já publicou) e “Seymour”. A revista parece ter deixado para trás sua preocupação com a credibilidade e a transpa­rência. Salinger modificou a estética da The New Yorker, numa época em que a estética da The New Yorker era o padrão-ouro da ficção curta, e isso é um indí­cio do impacto que ele teve na escrita americana. Há muitos outros. Os pri­meiros contos de Philip Roth, reunidos em Adeus, Columbus, têm algo da voz de Salinger e de seu timing cômico, e é difícil ler os monologuistas posteriores de Roth, divertidos, pesarosos, resmungões, sem imaginar Holden Caulfield e Zooey Glass como presenças ancestrais.

Ainda assim, Roth não estava tentando reescrever O apanhador no campo de centeio; a completa ausência de ironia de Salinger dificilmente poderia exer­cer um apelo sobre ele. Mas outros autores tentaram, pelo menos um em cada década desde que o livro surgiu. Sylvia Plath fez uma versão dele para garotas em A redoma de vidro (1963); Hunter Thompson produziu uma para gente que não conseguia acreditar que Nixon era presidente e que Jim Morrison tinha morrido, em Medo e delírio em Las Vegas (1971). Brilho da noite, cidade grande (1984), de Jay McInerney, era a versão metropolitana; Uma comovente obra de espantoso talento (2000), de Dave Eggers, é a da era MTV. Muitos livros protagonizados por jovens sedutoramente infelizes foram publicados depois de O apanhador no campo de centeio, é claro, e alguns deles foram escritos por gente que sem dúvida via Salinger como um modelo e uma influência. Mas isso não faz desses livros repetições nem reelaborações de O apanhador no campo de centeio. A barreira a ser saltada foi colocada bem mais alto que isso, e a razão tem a ver com a mística de Salinger.

A razão por que Salinger optou por sumir de vista e deixar de publicar é problema dele, e em princípio não deveria ter nada a ver com o modo como as pessoas leem a obra que ele publicou. Mas tem. Os leitores não con­seguem evitar. O recolhimento de Salinger é uma das coisas por trás, por exemplo, da transformação de Holden Caulfield de personagem ficcional em herói cultural: ele ajuda a confirmar a crença de que a infelicidade de Holden era menos pessoal do que parece – de que ela é na verdade algum tipo de protesto contra a vida moderna. Ajudou também a confirmar a per­cepção, incentivada pela própria conduta posterior de Salinger, de que não havia distinção entre Salinger e seus personagens – de que se você topasse com Salinger na agência do correio de Cornish, New Hampshire (que ao que parece é onde seus espreitadores geralmente o flagravam), seria exatamente como topar com Holden Caulfield ou Seymour Glass. Ao se isolar, Salinger glamourizou seus desajustados, pois ser um desajustado que também é capaz de escrever como J.D. Salinger – um Holden Caulfield que publica na The New Yorker – deve ser de fato muito glamouroso.

É por isso que o narrador, nas obras que são novas versões de O apanha­dor no campo de centeio, é sempre um redator de revista. O mesmo, eviden­temente, vale para o autor de cada nova versão de O apanhador no campo de centeio, e o autor e o narrador estão separados quando muito por uma linha muito tênue. O modelo para o narrador não é mais Holden Caulfield. E não é J.D. Salinger imaginado como Holden Caulfield. É o autor imagi­nado como J.D. Salinger imaginado como Holden Caulfield. Não se pode, em outras palavras, reescrever O apanhador no campo de centeio simples­mente contando a história de um adolescente infeliz e atualizando as refe­rências culturais, ou transpondo os eventos para uma cidade diferente, ou mudando o sexo do protagonista. É preciso reproduzir a mística de Salinger, porque a mística se tornou parte do que O apanhador é. O produto final da reescrita ideal de Salinger não é uma história de Salinger. É Salinger. Para reescrever a história de Holden Caulfield você tem que se tornar um gênio melancólico também. Tem que ser o seu próprio rei desditoso.

O livro que parece, em alguns aspectos, mais próximo do de Salinger é o de Plath. Plath pertencia à primeira geração de leitores de O apanhador. Ela o leu em algum momento antes de 1953, quando, aos 20 anos, passou parte de um verão em Nova York como estagiária na Mademoiselle. (Quando chegou à revista, pediu que a mandassem entrevistar Salinger, cujas Nove histórias tinham acabado de ser publicadas. Em vez disso, deram-lhe Eliza­beth Bowen.) Esse estágio e o subsequente colapso e hospitalização de Syl­via Plath seriam a base, dez anos depois, para A redoma de vidro.

Resenhistas notaram imediatamente a semelhança com O apanhador, e há ecos da voz e da história de Holden na voz e na história da heroína de Plath, Esther Greenwood. Mas Plath não estava meramente se apropriando.

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