Holden aos sessenta

A moral do livro pode parecer a de que Holden por fim amadurecerá e supe­rará sua atitude, e essa é provavelmente a lição que a maioria dos professores de colégio que mandam ler O apanhador no campo de centeio espera transmitir aos alunos – a de que o desajuste é apenas uma fase. Mas as pessoas não supe­ram a atitude de Holden, ou não superam por completo, nem querem superar, porque é uma atitude bem proveitosa. Uma das metas da educação é ensinar as pessoas a desejar as recompensas que a vida tem a oferecer, mas outra meta é ensinar também a ter um moderado desprezo por essas recompensas. Na vida americana, em que – especialmente se você é um membro sensível e inteli­gente da classe média –— as recompensas são constantemente anunciadas como algo ao alcance das mãos, o sentimento de frustração é muito mais frequente que o sentimento de sucesso, e, se não aprendêssemos a não nos importar, os fracassos nos destruiriam. Dar O apanhador no campo de centeio a seus filhos é como fornecer uma camada de isolamento psíquico.

Que o livro pudesse ir parar no currículo de inglês do colégio era prova­velmente uma das últimas coisas que Salinger tinha em mente quando o escreveu. Ele não estava tentando expor a pobreza espiritual de uma cultura conformista; escreveu uma história sobre um garoto cujo irmãozinho tinha morrido. Holden, afinal de contas, não está infeliz porque vê que as pessoas são falsas; ele vê que as pessoas são falsas porque está infeliz. O que torna tão mordaz sua visão das outras pessoas e tão implacável sua decepção é a mesma coisa que torna os sentimentos de Hamlet tão mordazes e implacá­veis: a dor. É verdade que Holden foi concebido como uma espécie de gênio moral intuitivo. (Hamlet, presumivelmente, também.) Mas sua percepção de que nada tem valor é simplesmente o sentimento normal que as pes­soas têm quando morre alguém que elas amam. A vida começa a parecer um intento pateticamente transparente de tapeá-las para que se esqueçam da morte; elas perdem o gosto por ela.

O que atraiu Salinger a esse enredo? Holden Caulfield aparece pela pri­meira vez na obra de Salinger em 1941, num conto intitulado “Ligeira rebe­lião nas redondezas da rua Madison”, que apresenta um personagem cha­mado Holden (que não é o narrador) e sua namorada Sally Hayes. (O conto foi comprado pela The New Yorker, mas só seria publicado em 1946.) E há per­sonagens de nome Holden Caulfield em outros contos que Salinger produziu em meados dos anos 1940. Mas a maior parte de O apanhador no campo de centeio foi escrita depois da guerra, e embora pareça estranho chamar Salin­ger de escritor de guerra, ambos os seus biógrafos, Ian Hamilton e Paul Ale­xander, acham que a guerra foi o que transformou Salinger em Salinger, foi a experiência que tornou sombria sua sátira e instilou tristeza no seu humor.

Salinger passou a maior parte da guerra numa unidade de contrainteli­gência da 4a Divisão de Infantaria. Desembarcou em Utah Beach na quinta hora da invasão do Dia d e foi parar no meio de alguns dos confrontos mais sangrentos da libertação – na floresta Hürtgen e depois na Batalha do Bulge, no inverno de 1944. A 4a Divisão sofreu terríveis baixas nesses combates, e Salinger, segundo seu próprio relato em cartas, ficou traumatizado. Com­bateu por 11 meses durante o avanço sobre Berlim, e, no verão de 1945, depois da rendição alemã, tinha sofrido, ao que parece, um colapso nervoso. Internou-se num hospital militar em Nuremberg. Pouco depois de ter alta, e quando ainda estava na Europa, escreveu o primeiro conto narrado pelo próprio Holden Caulfield, o verdadeiro início de O apanhador no campo de centeio. Chamava-se “Estou louco”. (Foi publicado na revista Colliers em dezembro de 1945.)

“Um dia perfeito para peixes-banana”, publicado pouco mais de dois anos depois, é, evidentemente, a história que apresentou Seymour Glass, o mais velho e mais inverossimilmente dotado dos inverossimilmente dota­dos meninos Glass, e também aquela que o liquidou, uma vez que Salinger faz Seymour se matar na última página. Se avaliarmos Seymour com base apenas nas narrativas posteriores da saga dos Glass, nas quais ele aparece como uma espécie de santo – “Franny” e “Pra cima com a viga, moçada” (ambos publicados na The New Yorker, em 1955), “Zooey” (1957), “Seymour: uma introdução” (1959) e “Hapworth 16, 1924” (1965), última obra publi­cada de Salinger –, provavelmente concluiremos que ele se matou porque a estupidez do mundo o enlouquecera. Mas em “Um dia perfeito para pei­xes-banana” fica claro que Seymour se mata porque a guerra o enlouque­ceu. Ele acabou de receber alta do hospital militar, e seu comportamento no conto não é o de um santo, o de um visionário ou o de um excêntrico cativante; é maluco e, no fim das contas, psicótico. Seymour é uma vítima da guerra. Como também o é, de modo muito mais óbvio, o protagonista não nomeado de “Para Esme – com amor e sordidez”, um soldado americano que faz amizade com uma menina inglesa de 13 anos pouco antes de partir para participar da invasão do Dia D. O apanhador no campo de centeio se tor­nou um best-seller quando foi publicado, em 1951, mas sua recepção como manifesto cultural importante só aconteceria em meados daquela década, quando as pessoas começavam a falar sobre “desajuste”, “conformismo” e “cultura jovem” – a época de Uivo, de Juventude transviada, dos primeiros discos de Elvis Presley. Foi como herói daquela cultura que Holden Caul­field sobreviveu. Mas O apanhador no campo de centeio não é um romance dos anos 1950; é um romance dos anos 1940. E não é uma celebração da juventude. É um livro sobre a perda e sobre um mundo que deu errado.

Em meados dos anos 1950, Salinger tinha desaparecido na sua toca em New Hampshire. A rejeição de O apanhador no campo de centeio pela The New Yorker evidentemente não teve efeito nenhum sobre ele como escritor. Criticado por criar uma família com quatro crianças precoces e por escrever num estilo que atraía atenção para si próprio, ele foi em frente e criou uma família com sete crianças precoces, e produziu, em “Zooey” e “Seymour”, obras de supremo exibicionismo literário.

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