Literatura de esquerda
por DAMIÁN TABAROVSKY
Certa vez perguntaram a Alejandra Pizarnik por que nunca havia escrito um romance, ao que ela respondeu: “Porque em todo romance sempre há um diálogo como este: – Oi, como vai? Quer uma xícara de café com leite?”
É curioso, pois, afinal, Pizarnik acabou escrevendo narrativa, e além disso, segundo soube depois, a frase é apócrifa. Dá no mesmo. Retomo a ideia do café com leite: por que seria verossímil que Pizarnik tivesse dito essa frase? Seria porque encarnava a típica poeta que desconfia da prosa? Seria somente uma boutade? Expressava, por denegação, sua própria incapacidade para o romance? Seria porque simplesmente não lhe agradava o café com leite? Todas as hipóteses são consistentes e deviam ser levadas em conta na hora de decifrar o enigma. Gostaria, entretanto, de adiantar outra possibilidade: quem sabe essa frase – supostamente pronunciada por uma poeta que enfim se lançou à prosa – revele algo sobre certo estado do romance contemporâneo: época em que a prosa começa a abrir concessões à linguagem, tempo em que o romance faz da concessão sua norma.
Ao mesmo tempo contemporânea tardia do nouveau roman e do descobrimento na Europa ocidental de Gombrowicz, Pizarnik é sobretudo testemunha do surrealismo pós-guerra – de sua conversão em múmia –, do realismo mágico e do êxito de Cortázar. Isto é, do momento em que a vanguarda se cristaliza, se converte em literatura banal, do momento de sua divulgação linguística, da perda de sua potência expressiva. Momento em que a literatura deixa de se expressar como dúvida e se escreve como certeza (é paradoxal, mas a vanguarda, que à primeira vista surge afirmativa, programática e prescritiva, como uma cadeia de certezas, é, na verdade, um tatear no escuro, um zigue-zague, um perambular sempre precário, uma verdade sempre em processo de abandono, enquanto a poesia de Pizarnik, que se apresenta como uma proeza da dúvida, da indecisão e da precariedade, como a extrema unção do dogma, expressa na realidade o último coquetismo de Sur e La Nación mesclado às verdades kitsch do preceito romântico em sua versão “menina dos anos 1960”).
Volto ao tema, se é que ele existe. Esse estado de mediocridade expressiva da narrativa, que nos anos 1960 supostamente aterrorizava Pizarnik, hoje adquire um caráter não apenas literário como também cultural. O que apavorava Pizarnik poderia definir-se sob um rótulo de política literária: o café com leite como verdade última da narrativa. Mas, fora da literatura, em outra parte, havia um estado da cultura que dissimulava esse fracasso literário. Não penso em cair eu também na mitificação sem fim que se abate sobre os anos 1960, muito menos no desejo homogeneizador que suprime as tensões e antagonismos desses anos (que supõe que o Guevarismo, o Di Tella e Tato Bores pertencem à mesma episteme), mas sem dúvida algo aconteceu nesse ínterim. O que acontecia talvez tenha a ver com isto: a primazia da cultura sobre a literatura. Se lermos hoje qualquer um desses livros, digamos O jogo da amarelinha, para citar o coração desse tempo, se o lermos hoje desprovidos da couraça cultural que então o protegia, o que sobra? Tão só o vazio e a nostalgia dessa couraça. O que salvava o texto não acontecia na literatura, mas no bar La Paz, e a frase de Pizarnik, em sua infelicidade, parece dar conta desse estado de coisas. E, no entanto, o fracasso, a derrota ou a extinção dessa couraça cultural, a desaparição dos anos 1960, não implicou nenhuma revisão literária, nenhuma mudança profunda nos rumos centrais da narrativa. Testemunhamos, hoje, a mesma política literária do café com leite, agravada pela ausência do clima cultural de então. Se nos anos 1960 a cultura dominava a literatura com tanta facilidade, não era devido à sua riqueza, mas ao sabor pasteurizado que havia atingido a narrativa. Se hoje cultura e literatura se equilibram em sua insignificância, é porque a pasteurização engloba as duas.
Faço um salto no percurso que vai dos anos 1960 à atualidade – ainda que seja um percurso bastante conhecido e até óbvio, não pretendo descrever passo a passo como se chegou a essa situação. Interessa-me, ao contrário, assinalar alguns aspectos da situação da literatura nestes tempos (sempre me agradaram os livros com títulos como Literatura alemã de hoje, ou Atualidade da literatura, pois essa atualidade rapidamente envelhecia e o título tornava-se anacrônico. Mas o interessante é quando, ainda que o título tenha envelhecido, o livro mantém sua potência: o momento em que o autor acertou na descrição de seu tempo. Quero dizer: quando um escritor escreve uma frase como a que escrevi mais acima – “Interessa-me, ao contrário, assinalar alguns aspectos da situação da literatura nestes tempos” –, está ciente de que corre o risco do ridículo, do envelhecimento prematuro; de que se coloca em uma dessas situações sobre as quais dirá mais tarde “quem mandou eu escrever isso?”; de que se situa no limiar da fragilidade – se expondo a bofetadas –, na mais absoluta solidão. Mas a veleidade do escritor reside no desatino do presente, e não no mito da posteridade). Pulo o desenvolvimento, portanto. Não haverá aqui uma descrição da passagem dos anos 1960 para a atualidade, mas sim alguns indícios de como as coisas funcionam hoje. Isto que a sociologia denominou campo cultural, ou campo literário, está rachado, partido, atravessado por dois polos de atração: a academia e o mercado. É claro que esses dois polos não são necessariamente antagônicos (são conhecidos os homens e as mulheres que circulam com êxito por ambos os mundos: catedráticos de manhã; assíduos articulistas de tarde; vencedores de concursos de espejitos1 à noite; como uma espécie de evocação cruel da utopia marxista de “pela manhã, carpinteiro, à tarde, pescador”), mas dois lugares que se identificam, cada um com suas marcas, com seus públicos, seus códigos e valores; dois lugares geralmente em estado de tensão, desatenção e fascinação mútua. Por isso, antes de avançar devem-se reconhecer duas questões: nem o mercado nem a academia são âmbitos homogêneos; cada um deles está constituído por desacordos internos, estilos divergentes, targets específicos e paradigmas contraditórios. Em segundo lugar: no estado atual do capitalismo, de uma maneira ou de outra, todos temos, tivemos ou teremos algum tipo de relação com o mercado (e também com a academia, uma vez que a circulação entre os dois espaços é tão intensa). Do ponto de vista pragmático, do que realmente existe, no momento em que um escritor publica (ainda que uma plaquete de dez exemplares, ou a tradução de um poema para compartilhar entre amigos), ele está operando no mercado. Dito e reconhecido. Contudo, me interessa outra coisa, algo além do realmente existente, uma abordagem que torne visível o invisível. Então, como defini-los? O mercado e a academia: dois lugares garantidos.
Para além de sua importância quantitativa (decrescente) e qualitativa (inexistente), o mercado e a academia funcionaram como a marca cultural da Argentina dos anos 1980 e 1990. Não importa se o mercado literário argentino é pequeno, em comparação com o de outras sociedades, e se a academia vernácula é apenas uma ilusão. O importante é que a maior parte da literatura e da crítica que se tem publicado há 25 anos foi escrita a partir desses dois lugares.
Houve nessas décadas uma vontade cultural tão forte para que realmente se instituísse um mercado literário, e para que se consolidasse um meio acadêmico, que o mais significativo não é se isso chegou a se concretizar (hoje, a academia funciona a todo vapor e o mercado quebrou, mas amanhã ninguém sabe como será), mas sim que o principal foi essa política, a própria existência dessa vontade capitalista de ter um mercado funcionando e uma academia pesquisando. Ao seguir de perto o discurso dos atores pertencentes a cada um desses polos, nota-se um alto grau de desconfiança e zombaria entre eles (os autores da academia que passam ao mercado mantêm um clássico discurso antimercantil, desmentido pela falsa inocência de suas próprias obras; e, ao mesmo tempo, nossos best-sellers mantêm um constante choramingo sobre a indiferença da crítica que não reconhece seu talento). Mas quando se pensa a cena a partir de outra perspectiva (isto é: quando simplesmente se pensa), torna-se muito simples perceber como ambos os polos estão ligados, não só pela correspondência de figuras (dado engraçado, embora menor), mas sobretudo pela relação que seus lugares mantêm com a literatura, pela ideia trivial que cada polo tem da escrita. Não seria muito difícil confeccionar uma tipologia, ou melhor, uma topologia, um mapa de diferentes estilos e estratégias que caracterizam cada polo (a autoridade do editing, a primazia da trama, os personagens, a novela histórica, o conto convencional, a desenvoltura estilística, a linguagem plana, justa, a ausência de excessos, a fábula moral, o romance com conteúdo humanista, a piscadela à época histórica e certo anacronismo light, de um lado; e de outro, o formalismo batido, o efeito kitsch da citação culta, o laboratório de ideias, a busca do controle absoluto, a convicção de que o humor é algo sério, a noção de autoridade, as benesses, o desprezo através da ironia, a construção de genealogias que funcionem como credenciais, o medo). Seria tão simples realizar esse mapa que o deixo de lado (menciono, sim, uma diferença importante entre os dois polos: mesmo que de um modo brutal – ontem Benjamin e Foucault, amanhã outros – e, portanto, de maneira duvidosa, na academia ainda se lê; mesmo que de forma precária e cheia de preconceitos, circulam por ali certos textos, certa impressão de que se está diante de um texto completamente ausente no mercado; enquanto a academia os trata como textos, o mercado não concebe que o produto seja mais do que o livro).
Volto ao que quero dizer: tanto um polo quanto o outro escrevem a favor. Li outro dia de esguelha no metrô o livro que o passageiro ao meu lado estava lendo: um livro de Jaime Barylko. Não me lembro do título, nem a frase exata, mas dizia algo assim: “Mandamos nossos filhos à escola porque sabemos que nela se reproduzem os valores e as normas nos quais nós, pais, acreditamos”. Pois bem: do mesmo modo pode-se dizer que o mercado e a academia escrevem a favor da reprodução da ordem, de sua sobrevivência, a favor de suas convenções – escrevem positivamente. Está claro que – isso já é do conhecimento de todos – no capitalismo tanto o mercado como a academia necessitam da novidade para se reciclar (o caráter outrora radical do novo se converteu em mero valor de troca – no mercado –, ou em simples valor de uso, na academia). Portanto, escrever a favor da manutenção da ordem, do consenso, não exclui o gosto pelo novo, entendendo o novo sempre e apenas como o último, o mais recente, o recém-chegado, “a nova literatura argentina” (“traduzido em vários idiomas, Respiração artificial foi virtualmente reconhecido como um clássico da nova literatura argentina. Numa enquete realizada recentemente entre 50 escritores, foi eleito como um dos dez melhores romances da história literária de nosso país”. Contracapa da reedição de 1988 de Respiração artificial), mas é o novo desprovido de seu próprio desejo: o desejo de novidade compreendido como inassimilável, como desestabilização de nossos sistemas de crenças. Depois de quase 150 anos de existência de tradição do novo, o mercado saldou o assunto – saldou em sentido literal –, entendendo o novo apenas como último, como a mercadoria mais recente, esvaziando de densidade e perspectiva essa tradição; e a academia, consciente de que a mudança e o novo não formam mais que uma tradição, resolveu a questão historicizando o problema, incorporando-o a uma galeria de relativismos teóricos e culturais sem dúvida pertinentes, mas que exclui o que ainda subsiste – como problema que incomoda – na tradição do novo: o desejo louco de mudança. É como se a crítica e a narrativa acadêmicas viessem nos dizer: “Como sei que a mudança e a ruptura são, a essa altura, somente uma tradição entre outras, então não busco seu efeito de novidade, pois sei que ele não existe e, portanto, me conformo com o que já existe, com o realmente existente”. Com efeito, a mudança, a ruptura e a novidade hoje parecem não mais existir realmente. Mas sobrevivem como desejo, como pulsão. A sobrevivência do desejo louco pelo novo produz efeitos de escrita – romances e poemas reais – que nem a academia nem o mercado chegam a assimilar.
Enquanto o mercado e a academia escrevem a favor de suas convenções, a literatura que me interessa – a literatura de esquerda – suspeita de toda convenção, inclusive as próprias. Não busca inaugurar um novo paradigma, mas pôr em xeque a própria ideia de paradigma, a própria ideia de ordem literária, qualquer que seja essa ordem. Trata-se de uma literatura que escreve sempre pensando no lado de fora, mas num lado de fora que não é real; esse fora não é público, a crítica, a circulação, a posteridade, a tese de doutorado, a sociologia a recepção, a contracapa, o tapinha no ombro. Esse fora nem sequer é a tradição, a angústia das influências, outros livros. Não. Tal fora convencional está vetado para a literatura de esquerda, porque a literatura de esquerda é escrita pelo escritor sem público, pelo escritor que escreve para ninguém, em nome de ninguém, sem outra rede além do desejo louco de novidade. Essa literatura não se dirige ao público: se dirige à linguagem. Não se trata da oposição romance e trama versus romance de linguagem – que é o mesmo que dizer: mercado versus academia –, mas de algo muito mais ambicioso: escolhe a própria trama para narrar sua decomposição, para pôr o sentido em suspenso; escolhe a própria linguagem para perfurá-la, para buscar esse lado de fora – o fora da linguagem – que nunca chega, que sempre se posterga, se desagrega (a literatura como forma de digressão) esse fora, ou talvez esse dentro inalcançável: a metáfora do mergulho (a invenção de uma língua dentro da língua); não mais o mergulho como busca da palavra justa, bela, precisa (o coral ilumina do submerso), mas como o momento em que a caça submarina se extravia e se converte em lataria, ácido, vidro moído, coral de vidro moído (a exploração de um navio afundado).
Se a literatura não se acerta com a linguagem, então não há dúvida: não lhe cabe outro lugar senão a academia ou o mercado.
Há décadas Barthes expôs o problema. Cito este longo parágrafo:
Na língua, portanto, servidão e poder se confundem inelutavelmente. Se chamamos de liberdade não só a potência de subtrair-se ao poder, mas também e sobretudo a de não submeter ninguém, não pode então haver liberdade senão fora da linguagem. Infelizmente, a linguagem humana é sem exterior: é um lugar fechado. Só se pode sair dela pelo preço do impossível: pela singularidade mística […]; ou então pelo amem nietzschiano, que é como uma sacudida jubilatória dada ao servilismo da língua […]. Mas a nós, que não somos nem cavaleiros de fé nem super-homens, só resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura.2
A definição de Barthes é impecável. Mas insuficiente, ou talvez incompleta. Incompleta na Argentina da década de 2000. Pois esse lugar no qual, segundo Barthes, se escreve e se inscreve a literatura, é o “esplendor de uma revolução permanente”, esplendor que no gauchisme dos anos 1970 (a Aula inaugural é de 1977) radicaliza a herança de 1968. Mas aqui, agora, entre nós, a que remete esse esplendor? Informa-nos sobre o porvir? Localiza a literatura no plano do futuro? Estaria Barthes nos sugerindo que toda literatura é literatura do futuro?
Barthes expõe corretamente o problema geral: quando a literatura não se subtrai à hegemonia da linguagem, quando não a enfrenta, não a trapaceia, ela é apenas mera reprodução linguística do poder. Assim se escreve no mercado e na academia. Porém, para ir mais longe, é necessário fazer um forte exercício de interpretação, uma tradução profunda do enunciado de Barthes ao nosso aqui e agora.
Esse lugar no qual se escreve e se inscreve a literatura de esquerda, esse outro lugar que não é nem a academia nem o mercado, não existe. Ou melhor: existe, mas não é visível, e nunca será. Instalado na pura negatividade, a visibilidade é seu atributo ausente. Fora do mercado, longe da academia, em outro mundo, no mundo do mergulho da linguagem, em seu balbucio, se institui uma comunidade imaginária, uma comunidade negativa, a comunidade inoperante da literatura.
Há, sob essa ideia, a leitura de vários ensaios de diversas tradições, divergentes e até antagônicas (A comunidade inoperante, de Jean-Luc Nancy, A instituição imaginária da sociedade, de Castoriadis, A comunidade inconfessável, de Blanchot, A angústia da influência, de Harold Bloom). Trata-se de uma leitura livre, arriscada e até forçada (as leituras não falam, não dizem, eu é que as faço dizer). Certamente não se trata de edificar uma nova tradição erudita, mas de realizar uma tradução potente do nosso aqui e agora, na vertigem do presente (de fato, o livro argentino que chegou mais longe na descrição da comunidade inconfessável, La operación Masotta, de Carlos Correas, em vez de ser lido nessa vertente, foi lido apenas como um capítulo de história dos intelectuais).
Um desvio, então: pensar o tema da comunidade, do estar em comum da literatura, aqui e agora, é uma ideia desaconselhável: esse pensamento está ameaçado por tradições terríveis, como o cristianismo (a comunhão), o socialismo real (o comunismo) e inclusive o nazismo (a volksgemeinschaft, a comunidade do povo). Para não falar do cocoliche3 autóctone dessas tradições: o peronismo (a comunidade organizada). Um passo em falso e zás!, o pensamento cai como uma mosca em qualquer um desses abismos. Portanto, como é de se supor, poucos autores trilham por esse caminho. De vez em quando a sociologia o retoma – sob o modesto título de “laço social” –, e também certos estudos culturais, nada muito além disso. A filosofia abandonou o assunto. Contudo, a literatura de esquerda não pode ser pensada de outro lugar que não seja o dessa comunidade negativa.
Eu não disse, porém, apenas comunidade. Evoquei a comunidade inoperante. Uma comunidade, certamente, só que inoperante: uma comunidade na qual o inacabamento é o seu princípio, mas tomado como termo ativo, designando não a insuficiência ou a falta, e sim o trânsito ininterrupto das rupturas singulares. Nessa linha, cada escritor inaugura uma comunidade. Mas este gesto inaugural não funda nada, não implica nenhum estabelecimento, não administra nenhum intercâmbio; nenhuma história da comunidade se engendra aí. Inaugura-se como interrupção. E ao mesmo tempo a interrupção empenha-se em não anular seu gesto, a recomeçá-lo outra vez.
A comunidade invisível onde se escreve e se inscreve a literatura de esquerda, comunidade literária que se institui de modo imaginário, pertence à tradição do dom. Não ao dom suposto como intercâmbio de interesses, como na economia política da doação. Tampouco à tradição vanguardista do dom como potlatch,4 como liberador de energias reprimidas. A comunidade inoperante, tal como quis traduzi-la aqui e agora, ultrapassa a lógica da vanguarda histórica: supõe o dom da literatura como uma interrupção, a interrupção de seu próprio mito, como o questionamento recursivo de seu próprio desejo. O que a literatura doa é sua própria inoperância, sua incapacidade de converter-se em mercadoria (como produz mercado) e sua resistência a transformar-se em obra (como supõe a academia). Escapa ao plano da eficiência e da plenitude (o campo do mercado), mas também se subtrai ao da codificação (a academia). A comunidade inoperante supõe a instituição literária do porvir entendido como demora, como suspensão, como passo adiante; sua existência não necessita de provas (como delas necessitam o mercado e a academia: números, citações, colóquios, exemplos); nessa comunidade negativa a leitura não é imposta sob o modo de distribuição (como no mercado), nem pela circulação (como na academia); mas como generalidade imaginária de uma particularidade. Expressa-se como indeterminação. Quem pertence à literatura da comunidade inoperante integra a comunidade dos que não têm comunidade.
A comunidade inoperante, a comunidade da literatura de esquerda, se institui sob dois preceitos opostos, sob o combate sempre real entre duas ordens contraditórias: a fratria e o polemos.5 Combate sem resolução, é claro, mas de forças que se imbricam uma à outra, se emaranham. A fratria é indissociável do polemos. É certo que no mercado e na academia há polêmicas, entabulam-se discussões entre pares. Mas elas acontecem sob o modo da comunicação, se estabelecem no espaço público. De uma maneira ou de outra, o público instaura a transparência como normatividade ou até como utopia (ver: o devir do pensamento progressista local), designa a argumentação como seu modus operandi. Nesse ato instaura também sua dupla necessária, o privado e os pontos de contato entre ambos os mundos, os modelos de fricção (a justiça e a moral). Assim, no mercado e na academia, quando se estabelece, o polemos acontece de modo que uma fratria responda à outra, e esta, por sua vez, apresente seus argumentos em resposta à primeira. Quando os argumentos não bastam (os argumentos nunca bastam), geralmente a discussão passa para outra cena. Mas, em vez de se tornar mais interessante (todo deslocamento deveria implicar também um desvelamento), reduz-se a suspeitar das razões da discussão (compreendida agora como ataque). A fratria em questão desvela – agora sim – seu caráter de associação ilícita, seu comportamento se torna faccioso (luta pela sobrevida de suas conquistas e regalias), e até a fraca noção de argumento é abandonada por ser arriscada demais. A comunicação sempre impõe o triunfo de uns sobre outros.
A comunidade inoperante se subtrai de ambos os polos: rechaça o público e abomina o privado; funciona na linha de fuga do porvir; suspende a argumentação, rejeita a comunicação, já que fratria e polemos seguem juntos: seu pertencimento à fratria é imaginário. Ela é composta por seres que pertencem à comunidade dos que não têm comunidade; nenhuma fala universal representa sua voz, mas, ao contrário, ela expressa a fala da multiplicidade de solitudes. Estabelece o polemos como sua forma de ser no mundo, por isso não lhe interessa ganhar discussões (nega a noção de vitória), mas somente apresentar o dom do indeterminado, o dom da literatura; o polemos como luta de interpretações errôneas (imaginar é mal interpretar) entre membros de uma comunidade imaginária. A literatura de esquerda não busca ser reconhecida, mas questionada: se dirige, para existir, até um outro que a ponha em xeque, e inclusive a negue. Essa situação de polemos e fratria a torna consciente de sua própria impossibilidade, de sua inoperância, de seu pertencimento a uma comunidade imaginária.
Em nosso presente, nesta cidade, esses fatos já ocorreram. A literatura de esquerda se expressa numa comunidade inoperante – esse espaço invisível existe. Do contrário, o que está acontecendo, o que é visível, é a crise dos espaços hegemônicos: a academia e, especialmente, o mercado. Existe já algo de anacrônico em vários parágrafos deste ensaio, algo que cheira a envelhecimento precoce, a um fora de contexto. Qual sentido de questionar o mercado enquanto ele se desintegra bem diante de nosso nariz? No entanto, escrevi crise, palavra usada habitualmente pela fala ordinária para definir situações assim. Na doxa, a crise é descrita como um fenômeno que vem de fora, como um acidente climático, um designo da natureza (“o país em chamas”). Seja como for, a crise econômica, social e política questiona seriamente a existência de um mercado literário. As editoras se vendem a mega holdings que aplicam uma política literária baseada no êxito imediato, os prêmios literários desapareceram ou desinflaram (pagam menos), as livrarias estão cheias de liquidações, os escritores tentam a sorte na Espanha ou onde podem. É desanimador ver os mesmos escritores que apostaram no mercado agora maldizendo sua sorte ao serem rejeitados pelas mesmas editoras que antes os publicavam (seguem escrevendo literatura de mercado para uma sociedade que destruiu o mercado). O mesmo, só que em menor medida, acontece com a academia. Se alguma tensão atravessou a academia na última década foi a de pensar-se como o último baluarte do público, como a matriz da excelência intelectual e, por que não, moral. Agora, pauperização e temor parecem ser os termos do novo contrato. Que literatura emergirá dessas ruínas? Como fará a academia para reconstruir a triste autoridade de sua voz? Como fará o mercado para satisfazer as novas demandas? Uma coisa é certa: a literatura de esquerda não deveria reconfortar-se com essa situação. A crítica ao mercado e à academia não pressupõe a implosão de ambos os espaços, mas a busca de outras zonas discursivas, de efeitos políticos impensados, de escritas imprevisíveis. Pressupõe algo além do realmente existente.
De Kuhn a Foucault, da noção de paradigma à de episteme, sabemos que não há progresso na história, mas uma série de cortes, de descontinuidades sociais que impedem uma avaliação moral dos fatos: não há épocas melhores que outras, não há crenças mais avançadas que outras. Nesse contexto, é fácil então dar este passo equivocado: não existem estilos melhores que outros. O café com leite não é pior que qualquer outro estilo. No entanto, sabemos também que existem sociedades mais tolerantes que outras, épocas mais abertas e mais fechadas (apesar de seu descontinuísmo, a modernidade aborrecia Foucault, e a Antiguidade grega lhe interessava), crenças democráticas e outras fundamentalistas. Portanto: nem todas as decisões de escrita têm o mesmo valor. A volta ao café com leite não é um retrocesso, pois a literatura, como a história, não retrocede. Ao contrário: é um avanço. Um avanço do discurso conservador, dos valores mais convencionais, das ideias mais gastas, das estratégias mais calculadas, dos riscos menos tomados.
Existem outras literaturas que estão deixando para trás a angústia das influências. Que superam a dificuldade de encontrar uma narração que escape ao peso do grande cânone – à sua pesada herança –, à potência literária de seus herdeiros e propagadores; uma narração que não se converta em mera reprodução ou pura e simplesmente em epígono. E que, por isso, não sucumba à política do café com leite, à reposição da literatura argentina em seu estado banal, ao humanismo sensato dos dias que seguem.
Não cair no retorno à sobriedade, no realismo oco e na rigorosidade falsa não é tão difícil. Mas, que fazer com o novo cânone? É necessário percorrê-lo pela esquerda. Não se trata de ignorar o novo cânone, de fazer como se nada tivesse acontecido. Ao contrário, é necessário anotar, anotar devidamente o ocorrido, e depois investir contra ele, atravessá-lo, quebrar seus textos como se quebra a banca do cassino: o que acontece com quem quebra a banca? É expulso. Obviamente expulso da literatura do café com leite (mais do que expulso: nunca foi aceito), e, por sua vez, expulso do novo cânone; não por ignorá-lo, por fazer de conta que o novo cânone não existe; mas por tornar-se anômalo também para ele, tornar-se inadmissível, pouco confiável, um desviado.
Esse sem lugar é o local da literatura de esquerda, nele a comunidade inoperante imagina. É a partir desse sem lugar que fala o escritor sem público.
Escritor, editor e tradutor, Damián Tabarovsky (1967) nasceu e vive na Argentina. É autor de 11 livros de ficção e ensaio, entre os quais se destacam Autobiografia médica (2007) e o recente El amo bueno (2016). Foi colaborador da Folha de S. Paulo, mas sua obra ainda é inédita no Brasil. Este ensaio, de 2004, é publicado aqui numa versão editada com a autorização do autor. Tradução de Ciro Lubliner e Tiago Cfer
1. Gíria derivada do escambo enganoso que os espanhóis praticavam com os índios americanos, oferecendo-lhes espelhos em troca de ouro. A expressão remete a uma troca fraudulenta, a um embuste. [N. dos T.]
2. Roland Barthes, Aula. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1988, pp. 15-16.
3. O cocoliche foi uma linguagem desenvolvida e falada na Argentina, desde meados do século 19, por imigrantes italianos. Consiste, basicamente, em uma mistura da língua espanhola com diversos dialetos italianos. [Ν. dos T.]
4. Cerimônia religiosa praticada por tribos indígenas da América do Norte na qual, entre outras coisas, se pratica o desapego e a oferta de presentes. [Ν. dos T.]
5. Palavras gregas que deram origem a “fraternidade” e “polêmica”. [N. dos T.]
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