Na rede com Montaigne
Ele é francês, nobre, intelectual, mora numa região que produz vinhos maravilhosos e diz que não faz nada sem alegria. De um tempo para cá, vive isolado numa torre incrível, que ele mesmo decorou, estampando no teto de sua sala de trabalho frases tiradas de seus livros preferidos. É chiquérrimo, se veste sempre de preto, e vem hoje aqui falar do livro que está escrevendo há muito, muito tempo, contando suas histórias e aconselhando seus leitores. Estou conversando com Michel Eyquem de Montaigne. Posso te chamar de Micheau?
Não é difícil imaginar um talk show, de Monty Python ou Marília Gabriela, em que o filósofo francês fosse assim apresentado. Talvez porque, numa viagem pop, ele esteja mesmo próximo de nossos dias, numa leitura superficial ou profunda. A tese não é minha, é de Sarah Bakewell em How to live – A life of Montaigne in one question and twenty atempts at an answer. O livro, que me agrada muito, horrorizou um intelectual francês de almanaque, Pierre Assouline. E depois disso passou a me agradar muito mais.
Exagero, claro. Adoro Assouline e seu blog, République des Lettres. Mas muito me incomoda a idéia de que determinados autores sejam intocáveis, necessitem sempre de uma abordagem reverente. Desde o título, Como viver, Sarah Bakewell, que de boba não tem nada, flerta com a idéia de que Montaigne tem muito a nos dizer – o que é a condição de existência dos autores que atravessam os séculos, claro. E o que ele tem a dizer, demonstra ela ao longo de suas “vinte tentativas de resposta”, um artifício para abordar alguns tópicos decisivos dos Ensaios, ele pode nos dizer a despeito dos estudos que se façam sobre sua escrita, método ou importância na história da filosofia.
Montaigne, é claro, é um mundo de várias entradas e no qual se pode viver indefinidamente. Eu mesmo, se fosse disciplinado e morasse numa torre, queria passar um ano lendo só os Ensaios. Talvez mais pela forma com que eles se constroem do que pelas grandes questões filosóficas que suscitam. Pois muito me interessa o que aconteceu, através dos tempos, com a definição de “ensaio”, num eterno vai-vem entre filosofia, crítica literária, jornalismo e, mais recentemente e sobretudo no mundo anglo-saxão, nos chamados ensaios pessoais. Estes, que já mereceram mais de uma antologia, me intrigam pelo fio da navalha que propõem em fazer da experiência pessoal sua principal matéria-prima. Alguém aí falou em Montaigne?
Pois o grande desafio dos personal essays é ter o próprio umbigo como ponto de partida mas ir além dele. Se a célebre reflexão de Montaigne sobre o encontro único que faz a amizade – “porque era ele, porque era eu” – vai muito além do doloroso acerto de contas com a morte de Etienne La Boétie, não pode ser entendida em sua plenitude sem levar em consideração o episódio que lhe deu origem.
A Montaigne se retorna por diversos e tortos caminhos. Philippe Lopate, que escreve muito bem, o escalou como santo padroeiro em The art of personal essay ao lado de Sêneca e Putarco, frequentes em sua lista de referências, mas também como farol para Virginia Woolf, Walter Benjamin, M.F. K. Fisher e Joan Didion. Há na antologia muitos romancistas e poetas, mas não se deve esquecer que o ensaio pertence ao vasto continente da não-ficção, no qual a imaginação cumpre papel importante mas não lhe basta.
O fato é que, quando elegemos temas ou autores, estamos sempre falando de nós mesmos, de nossa identificação ou diferença radical em relação a uns e outros. O ensaio pessoal que merece esse nome não abole a referência, apenas torna claro o que leva à sua eleição. O que descarta logo a bobagem de considerar Montaigne um “blogueiro avant la lettre”(eu já li isso, juro) e chama a atenção para um fato indiscutível: a primeira pessoa é conquista e construção, trabalho duro que dá a ilusão da facilidade.
É com a liberdade da primeira pessoa e a eleição livre de temas que começo hoje minha terceira encarnação de blogueiro – as duas anteriores em NoMínimo e na versão on line Bravo! Micheau, essa gracinha de pessoa, como diria Hebe Camargo, estará presente. Mas obsessão e recorrências é que não faltam para estar por aqui duas vezes por semana – ou em edições extraordinárias pautadas pelo capricho das vontades.