De Mário para Otto

serrote #1, março 2009

De Mário para Otto

São Paulo, 24.09.44

Otto,

Faz uma semana que cheguei d’aí e talvez já seja tempo de principiar escrevendo a vocês. Fiz questão de não escrever antes, não só voluntária, mas voluntariosamente, na espera que a quotidianidade do trabalho depurasse a lembrança, e tempo e distância abrandassem o sentimento. Não por mim, que bem pouco estou me incomodando com resguardar do mundo o espetáculo dos meus arroubos, mas por causa de vocês, que merecem mais respeito. E justiça. Ainda nestas palavras sou verdadeiro, coerente comigo, pois escrevi desde sempre e em público que só temia e respeitava os mais novos. Não são palavras pra agradar. Mas, francamente: daqui em diante, eu, por mais que me esforce por ser clarividente a res­peito de vocês, ser “inteligente” e fazer justiça, eu temo ver errado – errado não, mas demais – de tal forma o coração se derrama pelos meus pensamentos. Eu sei e proclamo: Viva o amor! que será sempre o mais clarividente dos juízos. Não é o bem-querer que eu temo, porém os seus desvios, a condes­cendência, e em principal a boba esperança.

Lhe escrevo. Por que lhe escrevo primeiro? “Eu sou tre­zentos”, e não consigo saber firme qual dos trezentos me move. Não sei. Talvez eu esteja mais próximo do Hélio,1 mas talvez você esteja mais próximo de mim… (Não imaginei procurado, esta sutileza: saiu sem eu querer e não a entendo bem! Apenas sei que é verdadeira.) Talvez porque seja a carta mais fácil. O Hélio me preocupa demais… O Paulo é o que mais me inquieta… Você nem me inquieta, nem me preocupa exatamente. A modos que você me “ocupa”; a sua presença é menos insistente, mas é mais constante, me envolve com aquele silêncio quente das conivências. Nós já nos conhecemos desde o princípio do mundo.

Deve ser isto que me leva a escrever primeiro a você: aquele seu dramático poema daquela noite… noite dramá­tica, estranhíssima, insolúvel e inqualificável (sem sentido pejorativo) no Cassino de Pampulha. Ah, Otto, pra que você foi perceber a minha tristeza lá dentro da minha… boa educação! Isso me fez um benefício doloroso, um mal admirável. Meu Deus! Nem é bem isso, eu não sei! A tristeza nem estava lá dentro, nem estava só em mim… Nem se disfarçava na boa educação de ninguém… Que noite estra­nha… Havia alegria também, havia principalmente prazer. Mas depois do desejo de estar ali que nos levou lá, no prazer de estar lá, é certo que quase todos nós, do nosso grupo, não queríamos estar ali. Estávamos angustiados. E será sempre impossível limitar toda a complexidade do motivo.

Mas é bem mais fácil, é claro, determinar o meu desejo. Eu desejava estar no bar, conversando com vocês. Aí sim, a minha tristeza podia se exercer no prazer e na alegria, sem falsificação. Na verdade, Otto, vocês formam um grupo extraordinário dentre os grupos de moços que conheço no Bra­sil. Falo exatamente do que me pareceu ser o grupo, você, o Hélio, o Paulo, o Fernando,não sei até que ponto do Figueiró, e com a presença perfeita, a antepresença do Emílio. Os outros são muito moços, sensivelmente “outra geração”, menos na idade que pelo deslumbramento em que ainda vivem no aprendizado da vida, o Sábato, o Frederico, Geraldo, Renato etc. E há também os outros, como um Alphonsus, por exemplo, que são, em relação ao grupo, distantes. E há o Murilo, pra enriquecer o grupo com um “caso”. O Murilo é o caso do grupo. O mais assentado do grupo, mas sem ter o “assen­tamento” mais firme de você; o mais grato da gente sentir, o mais cômodo, figura admirável de discrição, que disfarça o seu drama interior no drama mais acessível da sua dificuldade de criação, inteligentíssimo, perseguido pela própria inteligência. Não quero saber se vocês têm do nosso grupo esta mesma compreensão, mas imagino que será bom elemento prá conscientiza­ção, em vocês, do grupo que formam, esta compreensão de quem os vê com o mais perfeito dos carinhos e sem esperança. Sem nenhuma esperança.

Espera um pouco, Otto: “sem nenhuma esperança” quer dizer aqui que eu não prometo futuros “brilhantes”, isso não me interessa, sou infenso às profecias, e gosto do agora-já. E o que tem de extraordinário o grupo de vocês é o agora-já. Talvez alguns de vocês cheguem a pais de família. Tal­vez alguns sejam no futuro grandes escritores. Não interessa. Também vocês, além de promessas enormes que não me interessam, têm defeitos, têm perigos. Estes me interessam muito. Talvez demais. Mas não gosto de falar nessas coisas em voz alta coletiva. Prefiro falar em voz baixa, que se escuta mais. Irei dizendo de um por um, depois que ler e estudar o que trouxe comigo. Ainda nem peguei porque fiz questão de não pegar. Eu, por enquanto, compreendo por demais vocês em mim, e corria o risco de com­preender demais os versos, ideias, tendências de vocês, em vocês. E isso é, seria um mal enorme que desvirtuava o juízo. Seria uma condescendência.

(Principiei impensadamente esta carta e fui obrigado a interromper pra ir almoçar.) Mas como eu ia falando, se há grande força lírica, se há boa força intelectual em vocês, o que me entusiasma é o grupo. Se eu fiquei querendo bem vocês, muito bem, bem leal, sem a menor espécie de interesse torvo, eu juro, embora disposto a batalhar por vocês me quererem sempre muito – bem interessadíssimo pois, mas só interessado do puro bem-querer –; e se noto meio assustado, meio interrogativo, que se quero bem a cada um de um jeito diferente – que isto é mesmo o problema mais misterioso do bem-que­rer, este querer bem que não é a mais ou a menos quando chega no ponto da amizade, mas é diferente –— e de todos os bem-quereres que eu trouxe, é você o que eu pressinto menos acidentado no futuro, mais possível de cami­nho calmo, sem reservas, sem inquietações, sem brigas, sem perigos (ao Paulo, por exemplo, eu quero bem com raiva; é o por quem, injustamente pra com todos os outros, eu mais prontamente me sacrificaria; é o que mais periga por ser o mais errado como atitude intelectual, embora como atitude sentimental, ou melhor: como exercício do sentimento talvez seja o mais certo)… Meu Deus! me perdi completamente! Deixo isto pra explicar depois. Onde eu queria chegar neste parágrafo era louvar o grupo que vocês fazem, pela força de cada um, pela diferença de cada um, pelo exercício da amizade que soube escolher sem por isso depender de nenhum estreito “espírito de grupo”. É preciso o espírito de grupo, isso é um bem grande, uma felicidade, um exercício digníssimo de vida humana, uma grave modéstia, e um con­forto sempre. E como eu invejo isso em vocês! Eu nunca tive isso em minha vida e sempre desejei isso. Talvez tenha sido o que mais me faltou. Mas me incorporar aos grupos de mais novos seria uma falsificação de tudo. Seria impossível, sobretudo, diante da lealdade natural das idades. E os meus com­panheiros de geração, guardo deles este ressentimento, ainda vinham oito­centistamente tão apegados ao exercício do individualismo, nesta terra sem tradições nem raciais nem culturais, que jamais pudemos viver os benefícios, os confortos, as forças do grupo. Vocês estão com muito melhores condições e por isso eu insisto em chamar a atenção de vocês sobre o vosso grupo. Vocês também não possuem tradições nem raciais nem culturais que permitam só por si o exercício do grupo. Mas já tem maior consciência dos coletivos, que o sofrimento deste tempo novo lhes dá. Vocês, eu vejo, eu sinto, já não estão enceguecidos pela mania vaidosa do exercício interior dos individua­listas. São individualistamente caracterizados, e tão diferentes mesmo uns dos outros, mas nesse exercício exterior do individualismo, que deriva das tendências pessoais e das convicções. O que eu chamo depreciativamente de exercício “interior” do individualismo, interior e menos profundo, era aquele em que vivíamos, nascido apenas da preliminar perniciosa de que era preciso ser diferente, já conseguia duvidar da torre de marfim, mas não pas­sava duma derivação dela, e propunha abertamente o slogan “nada de grupo! nada de escolas!”, feito sapos que se quisessem elefantes, gorgolejando “eu sou eu!”… Vocês precisam amar o vosso grupo e não será invejar demais se me ponho antes de mais nada amando o grupo de vocês e refazendo nele o que eu nunca pude ter. Não é inveja, é saudade.

E tanto mais que, por mais que me tivesse aplicado a descobrir qualquer espírito de grupo estreito, defensivo, em vocês, não consegui perceber isso. Há, de preferência, o sentimento do grupo, que se às vezes poderá dar de uns pra com os outros, uma compreensão excessiva que criam – compreen­são, e não louvor –— e isto é também com perigo: é lindo, é admirável mesmo, vale a pena correr o perigo pra ter o favor dessa felicidade.

E guardei a impressão feliz de que é no grupo, que é em grupo, que vocês preservam o exercício da sua mocidade. Pouco importam as discussões, as brigas mesmo, graves, gravíssimas que vocês possam ter entre si, tão gra­ves como uma reunião atual de Roosevelt, Churchill e Stalin, porque nessas coisas não tem proporção nem relatividade. O Grupo é como que o único segredo da mocidade de vocês. Porque as demais solturas, excessos de álcool carnavalesco, namoros, procuras de zona, cassinices: isso pra vocês não é mocidade mais, não é deslumbramento nem descobrimento, nisso vocês já são tão velhos, tão humanos e tão feitos, tão pobres ou tão ricos, tão sinceros e tão ridículos como qualquer janota senil. Isso não é mocidade, é janotismo. Não é mocidade, é servidão.

Aqui entra explicação do que eu falei do Paulo. Parte apenas, que outra parte eu escreverei a ele. Eu disse que ele talvez estivesse mais certo que os outros de vocês, no exercício do sentimento. Desculpe, mas estou me lem­brando daquela cena alusiva a isso, pra mim tão dolorosa meu Deus! em que a cotia, percebendo a triste precocidade de Macunaíma criança, resmunga pensativa que “curumi faz isso não”, e joga caldo envenenado no menino, ele cresce com a ação do veneno e vira homem-feito pra sempre… Já escrevi uma vez ao Hélio o quanto me amarga essa precocidade humana de vocês todos, moços, principalmente do Brasil, precoces já por este deserto clima do Brasil e ainda por cima preconizados pelo nosso tempo e roubados por isso do gozo livre de sua mocidade… Como vocês são homens-feitos! Como vocês são experientes! E sobretudo: como vocês são compelidos a viver uma vida de homens-feitos, mandados por obrigações e compromissos que ainda não deviam ter!… Eu sofro isso, Otto, sofro isso muito, e estou ima­ginando que você sofre também, porque soube descobrir no seu poema a parte melhor da minha tristeza, a solidariedade pra com vocês, cuja moci­dade o mundo roubou.

Por isso eu gosto muito, no sentido mais e espontâneo do “gosto de ti porque gosto”, do Figueiró, cujos versos li quando ainda estava aí, versos de moço. Do grupo ele é o único que escreve coisas de moço! Como eu sorria feliz lendo os versos dele. Cheguei a imaginar num poema escrito por ele, intitulado pernosticamente de propósito: “Do semvergonhismo jovem”, em que ele exclamasse que era moço, que era deslumbrado com o gozo da vida, que era feliz, mas que inventava uma infelicidade inexistente nele, porque é gostoso se mostrar infeliz… Entre vocês, quando o Figueiró chegava (e como fica expressivo o nome Figueiró!), quando ele chegava, era uma brisa, um prazer desfatigante que chegava. É certo que o Hélio e você e o Murilo, e o Fernando se estivesse aí, me deixavam mais felizes, mas o Figueiró me dava mais alegria, mais esquecimento. E quem sabe se mais verdade.

Eu compreendo o Paulo na espécie da sua gratuidade. Mais da sua dis­ponibilidade que da sua gratuidade exatamente. Não creio, como o Hélio enxerga, que isso o aproxima de Gide. Se há, se houver qualquer coinci­dência possível, eu imagino mais no Paulo um como que desespero incons­ciente pela mocidade que estão querendo roubar dele. É o que mais sente, de vocês, o desequilíbrio entre a maturidade imposta e a mocidade roubada, entre a mocidade feita e a mocidade espontânea. De maneira que se explode num cântico a García Lorca, pouco depois desliza em análises muito finas e bastante grã-finas, sobre o lago. Aliás Gide é moral. É mesmo tremenda­mente moral, através do seu amoralismo convencionado (não convencio­nal) e da curiosidade pelo ato gratuito. Ao passo que o Paulo é imoral. É, eu creio, exatamente in-moral, não-moral, contra-moral, enquanto tudo isso são elementos viris do exercício da mocidade. O Paulo não me pareceu feliz. Me pareceu mesmo o mais infeliz de vocês todos. Não sei se ele quereria que eu dissesse isto nesta carta que está me saindo tão coletiva, mas que ele se ressinta de mim não me faz mal. Não me pareceu que vocês estivessem bastante conscientes, bastante compreensivos do Paulo. É o mais envelhe­cido de vocês, o mais maltratado por si mesmo, o que mais luta em favor do exercício da mocidade. Como pensamento não é o mais amadurecido, mas é o mais gasto. Como moço, talvez seja o mais criança… O Hélio é o mais audaciosamente comprometido com a vida de vocês todos, nesse sentido é o mais viril, mas se preserva numa auroralidade irredutível.

Você… du bist die Ruhe. Você é a paz, é não a sua, eu sei, mas a minha melhor paz, a lembrança mais grata e mais profunda dentre os conheci­mentos que fiz desta vez em Belo Horizonte. É a lembrança que guerreia. Era justo que eu levasse agora outras tantas folhas de papel lhe confiden­ciando o que penso e sinto de você, Otto, mas agora que chegou o momento, eu não tenho o que dizer e sinto assim como se nos ligasse uma velha ami­zade. Quem descobriu isto aliás foi você e o disse admiravelmente no seu poema de Pampulha. Eu já vinha distinguindo você dentro do grupo, desde a conversinha fatigada do bar no primeiro dia, como a inteligência mais pro­funda do grupo. A que menos sobrenadava ao léu dos acidentes da vida e também das leituras. Isso me repunha em mim naqueles tempos passados do Modernismo, em que na malta turbilhonante que formávamos, eu era, sem vaidade falsa, o mais consciente e exigente de conhecimentos e o mais seguro de propósito. Eu sabia o que iria fazer e onde iria parar. Você não pre­cisa saber tanto: os caminhos de agora por certo são os mais dolorosos, mas são menos incertos. E eu me revivia em você. Alma curiosidade esfomeada pela sua inteligência, pelo seu pensamento, me tomou desde o primeiro dia, você nem queira imaginar.

Até que foi o estouro juvenilíssimo do seu poema do Cassino. Era a velha amizade que nos surpreendia no princípio do caminho. Confesso que fiquei atordoado e com os olhos úmidos quando li o seu poema. Não consigo saber se é bonito como obra de arte, não sei, juro que não sei. Mas queima como adivinhação e marca pra sempre como sentimento. Trouxe o manuscrito comigo. Vou lhe passar à máquina uma cópia pra você guardar. Não publique, que essas coisas muitas vezes o falso olho do mundo tem por fraqueza. Mas guarde. Não é fraqueza e muito menos dependência, é força. Ah, minhas esplêndidas compreensões de mocidade! Esse foi o seu melhor exercício de mocidade, desses dias inesquecíveis pra mim. Guarde. Algum dia você há de sorrir desses versos pelo que eles têm de mais maravilhoso, a generosidade do moço. Mas acredite: eles apreenderam o que há de mais verdadeiro e de perfeito em mim. E paro aqui, lhe mandando o meu mais profundo afeto, amigo.

Eu, quando principiei esta carta, sinceramente: não sabia o que ia dizer. Mas decerto pressentisse alguma coisa e por isso me socorri de você. Não sei até que ponto a carta saiu confidencial. Na verdade a escrevi pra você, e se me deixei levar sem reticência foi porque escrevia a você. Não consigo saber o que pode ser sabido dela pelos outros, sem prejudicar ninguém. Confio em você. Amigo velho.

P. S. Acabo de copiar eu mesmo o poema de você. A impossibilidade de ajui­zar esteticamente continua a mesma. Mas, “artisticamente”, o seu poema é da mais legítima Poesia; e, sem ter nenhuma incompreensão que o prejudi­que, tem vários traços de compreensão tão aguda de mim mesmo, que eu preferia não saber, não me tornar claramente consciente deles. Repito: o seu poema me dói admiravelmente.

São Paulo, 25

Otto,

Fui reler essa carta pra mandar e fiquei surpreendido com o tom exagerada­mente sério dela. Quis escrever outra mas logo reconsiderei, e achei que devia mandar assim mesmo. É séria, é grave por demais, não sei, mas não é insalubre. É preferível que eu tome a sério você desde o princípio e no princípio; as felici­dades e alegrias virão depois e creio que terão muito tempo pra se gozar.

E também reconsidero outra coisa: lhe peço mostrar a carta aos que ela interessa de perto, ao Hélio, ao Paulo, ao Murilo. Fica mais leal assim e assumo a responsabilidade do que penso e sinto nela. E irei escrevendo aos poucos, desde o princípio do mês que vem, assim que me livre dum trabalho urgente que estou fazendo pra Argentina, e possa ler com mais calma os versos que trouxe comigo. Avise disto o Alphonsus também, por favor. E diga ao Babá que se ainda não mando a cópia integral da Lira Pau­listana é porque estou esperando a opinião do Manuel Bandeira sobre a disposição gráfica duma instância, que hesito em expor em versos livres, ou mais francamente em prosa.

1. Estão citados na carta, por ordem de aparição: Hélio Pellegrino (1924-1988), psicanalista; Paulo Mendes Campos (1922-1991), jornalista e escritor; Fernando Sabino (1923-2004), escritor; Wilson Figueiredo (1924), jornalista; Emílio Moura (1902-1971) poeta; Sábato Magaldi (1927), crítico teatral; Frederico, não identificado; José Geraldo Santos Pereira (1925), cineasta; José Renato Santos Pereira (1925), cineasta e irmão gêmeo de José Geraldo;Alphonsus de Guimaraens Filho (1918-2008), poeta; Murilo Eugênio Rubião (1916-1991), escritor.

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