Este livro resulta de quatro conferências que dei na Universi­dade de Cambridge. [ … ] Ao falar de Borges precisamente ali e em inglês, tive uma impressão curiosa. Aí estava uma argen­tina falando numa universidade inglesa sobre outro argentino a quem hoje se considera “universal”. […] A reputação mundial de Borges o purgou de nacionalidade.1

O renome internacional de Machado de Assis, hoje em alta, até meados do século 20 era quase nenhum. Para não fabri­car um falso problema, é bom dizer que o mesmo valia para a literatura brasileira no seu todo, prejudicada pela barreira do idioma. Talvez a única exceção fossem os romances de Jorge Amado, que se beneficiavam da máquina de propaganda e de traduções do Realismo Socialista, atrelada à política externa da finada União Soviética. Sem ilusões, comentando uma tentativa oficial de divulgar os escritores brasileiros na França, Mário de Andrade observava que a nossa arte seria mais apreciada no mundo se a moeda nacional fosse forte e tivéssemos aviões de bombardeio.2 Como não era o caso, íamos criando uma literatura de qualidade até surpreen­dente, que para uso externo permanecia obscura.

De lá para cá, o romance machadiano foi traduzido, e os estudos estrangeiros a seu respeito vieram pingando, sobretudo em inglês. Em parte, o empurrão foi dado pela ampliação dos interesses norte-americanos no pós-guerra, a qual se refletiu na programação da pesquisa universitária. Voltada para regiões que a Guerra Fria tornava explosivas, a criação de area studies facultava currículos mais adaptados ao presente, para mal e para bem. Assim, na esteira da Revo­lução Cubana, o português foi declarado língua estratégica para os Estados Unidos, com a suplementação de verbas e os dividendos culturais do caso.3

Já na parte propriamente literária, o reconhecimento se deveu a intelectuais com antena para a qualidade e a inovação. Por exemplo, Susan Sontag conta que o editor de seu primeiro romance a cumprimentou pela influên­cia de Machado de Assis, cujas Memórias póstumas de Brás Cubas ele mesmo tinha publicado havia poucos anos. Era engano, pois ela não conhecia nem o livro nem o autor, mas logo os adotou como “influência retroativa”.4 A suposição, que não valia para Sontag, valia entretanto para o próprio editor: Cecil Hemley era romancista por sua vez, e deixou um excelente testemunho de seu interesse por Machado. A anedota mostra o clima de cumplicidades seletas que se estava formando em torno do escritor.5 Na mesma linha, há o depoimento de Allen Ginsberg, o poeta beat. Visitando Santiago, no Chile, em 1961, este disse ao escritor chileno Jorge Edwards que considerava Machado um outro Kafka.6 E veja-se ainda o prefácio de John Barth a uma reedição de seus primeiros livros. O romancista – National Book Award de 1972 – lembra que tentava encontrar a sua maneira, com ajuda de Boccaccio, Joyce e Faulkner, quando o acaso fez com que lesse Machado de Assis. Este lhe ensinou que as cambalhotas narrativas não excluíam o sentimento genuíno nem o realismo, numa combinação à la Sterne, que mais adiante se chamaria pós-moderna.7

Quanto à academia, a pesquisa machadiana desenvol­vida nos Estados Unidos acompanhou as correntes de crí­tica em voga por lá. O patrocínio teórico vinha entre outros do New Criticism, da Desconstrução, das ideias de Bakhtin sobre a carnavalização em literatura, dos Cultural Studies, bem como do gosto pós-moderno pela metaficção e pelo bazar de estilos e convenções. A lista é facilmente prolongável e não para de crescer. Mais afinada com a maioria silenciosa, indiferente às novidades, havia ainda a análise psicológica de corte convencional. A surpresa ficava por conta do próprio Machado de Assis, cuja obra, originária de outro tempo e país, não só não oferecia resistência como parecia feita de propó­sito para ilustrar o repertório das teorias recentes. O ponto de contato se encontrava no questionamento do realismo ou da representação, e em certo destaque da forma, concebida como estrangeira à história. Há aqui uma questão que vale a pena enfrentar: como entender a afinidade entre um romancista brasileiro do último quartel do século 19 e o conjunto das teo­rias críticas em evidência agora nas metrópoles?

O percurso da crítica brasileira no mesmo período foi distinto. Ela não tinha diante de si um grande escritor des­conhecido, mas, ao contrário, o clássico nacional anódino. Embora fosse coisa assente, a grandeza de Machado não se entroncava na vida e na literatura nacionais. A sutileza inte­lectual e artística, muito superior à dos compatriotas, mais o afastava do que o aproximava do país. O gosto refinado, a cultura judiciosa, a ironia discreta, sem ranço de província, a perícia literária, tudo isso era objeto de admiração, mas parecia formar um corpo estranho no contexto de preca­riedades e urgências da jovem nação, marcada pelo passado colonial recente. Eram vitórias sobre o ambiente ingrato, e não expressões dele, a que não davam sequência. Depen­dendo do ponto de vista, as perfeições podiam ser empeci­lhos. Um documento curioso dessa dificuldade são as ambi-valências de Mário de Andrade a respeito. Este antecipava com orgulho que Machado ainda ocuparia um lugar de des­taque na literatura universal, mas nem por isso colocava os seus romances entre os primeiros da literatura brasileira.8

Pois bem, a partir de meados do século 20 a tônica se inverte, com apoio numa sucessão de descobertas críticas. O distanciamento olímpico do Mestre não desaparece, mas passa a funcionar como um anteparo decoroso, que disfarça a relação incisiva com o presente e a circunstância. O cen­tro da atenção desloca-se para o processamento literário da realidade imediata, pouco notado até então. Em lugar do pesquisador das constantes da alma humana, acima e fora da história, indiferente às particularidades e aos con­flitos do país, entrava um dramatizador malicioso da expe­riência brasileira. Este não se filiava apenas aos luminares da literatura universal, a Sterne, Swift, Pascal, Erasmo etc., como queriam os admiradores cosmopolitas. Com discer­nimento memorável, ele estudara igualmente a obra de seus predecessores locais, menores e menos do que meno­res, para aprofundá-la. Mal ou bem, os cronistas e roman­cistas cariocas haviam formado uma tradição, cuja triviali­dade pitoresca ele soube redimensionar, descobrindo-lhe o nervo moderno e erguendo uma experiência provinciana à altura da grande arte do tempo.9 Quanto ao propalado desinteresse do escritor pelas questões sociais, um dos prin­cipais explicadores do Brasil pôs um ponto final à controvér­sia: sistematizou as observações de realidade espalhadas na obra machadiana, chamando a atenção para o seu número e a sua qualidade, e com elas documentou um livro de 500 páginas sobre a transição da sociedade estamental à socie­dade de classes.10 Digamos que o trabalho escravo e a plebe colonial, o clientelismo generalizado e o próprio trópico, além da corte e da figura do imperador, davam à civilização urbana e a seus anseios europeizantes uma nota especial. Compunham uma sociedade inconfundível, com questões próprias, que o romancista não dissolveu em psicologia uni­versalista – contrariamente aliás ao que supôs o historiador.11

Nas etapas seguintes da virada, que ainda está em curso, a composição do romance machadiano foi vista como for­malização artística precisamente desse conjunto singular, no qual se traía a ex-colônia. A galeria das personagens, a natureza dos conflitos, a cadência da narrativa e a tex­tura da prosa – elementos de forma – agora manifesta­vam, como transposições, uma diferença pertencente ao mundo real. Para mais, os traços distintivos eram surpre­endidos onde menos em falta e mais civilizada ou adian­tada a jovem nação se supunha. Explorados pela inventiva do romancista, os aspectos de demora civilizatória ganha­vam conectividade e expunham a teia de suas implicações, algumas das quais muito modernas, além de incômodas. As peculiaridades prendiam-se: a) ao padrão patriarcal; b) a nosso mix de liberalismo, escravidão e clientelismo, com os seus paradoxos estridentes; c) à engrenagem tam­bém sui generis das classes sociais, inseparável do destino brasileiro dos africanos; d) às etapas da evolução desse todo; e) à sua inserção no presente do mundo, que foi e é um problema (ou uma saída) para o país, e aliás para o mundo. De tal sorte que as questões estéticas ditas abs­tratas, de congruência formal e dinâmica interna, bem como de originalidade, se estavam tornando inseparáveis do seu lastro histórico específico, obrigando à reflexão sobre o viés próprio da formação social ela mesma. Assim, embora notória por desacatar os preceitos elementares da verossimilhança realista, a arte machadiana fazia de orde­namentos nacionais a disciplina estrutural de sua ficção.12 Sem prejuízo da diferença entre os críticos, a natureza complementar dos trabalhos que levaram a essa mudança de leitura se impõe, sugerindo uma gravitação de con­junto. Passo a passo, o romancista foi transformado de fenômeno solitário e inexplicável em continuador crítico e coroamento da tradição literária local; em anotador e anatomista exímio de feições singulares de seu mundo, ao qual se dizia que não prestava atenção; e em idealizador de formas sob medida, capazes de dar figura inteligente aos descompassos históricos da sociedade brasileira. Em suma, há um nexo a explorar entre a originalidade artís­tica da obra e a diferença histórica da nação.

Há alguns anos, por ocasião de novas traduções das Memó­rias póstumas e do Dom Casmurro, a New York Review of Books publicou uma resenha abrangente e consagradora do romance machadiano, assinada por Michael Wood.13 Note-se que o autor não é especialista em Machado nem brasilianista, mas um crítico e comparatista às voltas com a latitude do presente. O lugar da publicação e o rol dos autores sobre os quais o crítico tem escrito – Beckett, Conrad, Stendhal, Cal­vino, Barthes, García Márquez – parecem indicar que depois de 100 anos o romancista brasileiro entrou para o cânon da literatura viva. Aliás, Machado, nos Estados Unidos, começa a ser ensinado também fora dos departamentos de literatura brasileira, na área de literatura comparada, em cursos sobre os clássicos do romance moderno.

A certa altura de seu ensaio, que leva em conta a crítica brasileira, Wood propõe uma dissociação sutil. As relações com a vida local podem existir, tais como apontadas, sem entretanto esclarecer a “mestria e modernidade” do escri­tor. Ou, noutro passo: seria preciso interessar-se pela reali­dade brasileira para apreciar a qualidade da ficção macha-diana? Ou ainda, a peculiaridade de uma relação de classe, mesmo que fascinante para o historiador, não será “um tópico demasiado monótono para dar conta de uma obra­-prima?” E, finalmente, faltaria saber “por que os romances são mais do que documentos históricos”. Não há resposta fácil para essas questões, que não recusam as ligações entre literatura e contexto, mas situam a qualidade num plano à parte. As perguntas têm a realidade a seu favor, pois é fato que a reputação internacional de Machado se formou sem apoio na reflexão histórica. Tomando recuo, digamos que elas, as perguntas, resumem a seu modo a situação atual do debate, em que se perfilaram uma leitura nacional e outra interna­cional (ou várias não nacionais), muito diversas entre si.

A divergência tem base em linhas de força da cena inte­lectual contemporânea e não há por que esquivá-la. Para prevenir o primarismo, que sempre ronda essas diferen­ças, não custa lembrar que várias contribuições para a linha nacional vieram de estrangeiros, e que boa parte da crítica brasileira acompanhou a pauta dos centros internacionais. Contudo, se a cor do passaporte e o local de residência dos críticos não são determinantes, é certo que as matrizes de reflexão a que a divergência se prende têm realidade no mapa e na dimensão política, além de competirem entre si, como partes do sistema literário mundial.14

Uma das matrizes é a luta inconclusa da ex-colônia pela formação de uma nacionalidade moderna, por assim dizer normal, sob o signo do trabalho livre e dos direitos civis. Do ângulo da história, seria a dialética entre a jovem nação e o seu fundo herdado de segregações e coações, em disso­nância explícita (ou em harmonia secreta, diriam os anti–imperialistas) com o tempo. Como ponto de partida há o enigma estético-social representado pelo surgimento de uma obra de primeira linha em meio ao despreparo, à falta de meios, ao anacronismo e ao desconjuntamento gerais. Como é possível que nessas condições de inferioridade se tenha produzido algo de equiparável às grandes obras dos países do centro? Trata-se de um acontecimento que sugere, por analogia, que a passagem da irrelevância à relevância, da sociedade anômala à sociedade conforme, da condição de periferia à condição de centro não só é possível, como por momentos de fato ocorre. Assim, a obra bem-sucedida vai ser interrogada sob o signo da luta contra o subdesen­volvimento. A reflexão busca identificar nela os pontos de liga entre a invenção artística, as tendências internacionais dominantes e as constelações sociais e culturais do atraso com as sinergias correspondentes. Estas últimas, inseparáveis tanto do ingrediente nacional como do extranacional, são a prova viva de possibilidades reais, devidas a conjunções úni­cas – algo de agudo interesse, cuja análise promete conheci­mentos novos, autoconsciência intensificada, além de graus de liberdade imprevistos em relação aos determinismos cor­rentes. Entretecidas com o desejo coletivo de alavancar um salto histórico, as observações estéticas adquirem conotação peculiar. Combinadas a observações e categorias econômicas e políticas, bem como a aspirações práticas, elas fazem figura de recomendação oblíqua ao país. Tomam a contramão da teoria da arte nos países centrais, a qual vê nos aspectos refe­renciais ou nacionais da literatura uma velharia e um erro.

Dito isso, é claro que a integridade própria à grande obra é sempre um enigma que cabe à crítica elucidar, seja onde for. No quadro de uma sociedade inferiorizada, entretanto, a explicação adquire relevância nacional como parte de um discurso crítico sui generis. Trata-se de um programa tácito, cujo significado esclarecido, ou meramente veleitário, ou desdiferenciador, está em aberto. Assim, por exemplo, luga­res-comuns da história da arte incorporam novos significa­dos. A dialética entre acumulações artísticas localizadas e viravolta com potência estrutural, entre empréstimo estran­geiro e eclosão da originalidade nativa, entre vanguardismo artístico e incorporação de realidades sociais relegadas, entre acentuação de tendências, explosão das coordenadas e ele­vação do patamar, assim como a criação genial de nexos e saídas nos quais só parecia existir descontinuidade cultural e descalabro na relação de classes, tudo isso compõe um dese­nho imprevisto, que foge aos esquemas do evolucionismo e do progresso lineares.15 Com risco evidente de regressão, o anseio retardatário de integração nacional ajudaria o país a se revolucionar, ou a se reformar, ou a vencer a distância que o separa dos países-modelo, ou a se refundar cultural­mente (e, em todo caso, se tudo falhasse, permitiria refletir a respeito). Sejam quais forem os resultados para o futuro, a discussão dessas defasagens históricas e dessas soluções artísticas, próprias a nossa integração social precária, res­ponde à ordem presente do mundo, de cujo “desenvolvi­mento desigual e combinado” fixa aspectos substantivos.

Na outra matriz, com sede nos países do centro, uma guarda avançada de leitores – os intermediários poliglotas e peritos a que se refere Casanova – empenha-se na identifi­cação de obras-primas remotas e avulsas, em seguida incor­poradas ao repertório dos clássicos internacionais.16 É nesse espírito cosmopolita que Susan Sontag conclui a sua apre­sentação das Memórias póstumas, desejando aos leitores que o livro de um longínquo romancista latino-americano os torne menos provincianos.

Como parte dessa segunda matriz, o trabalho acadêmico dos países do centro coloca-se ele também as tarefas de reco­nhecimento e apropriação. As teorias literárias com vigência nas principais universidades do mundo, hoje sobredetermi­nadas pelas norte-americanas, buscam estender o seu campo de aplicação, como se fossem firmas. O interesse intelectual não desaparece, mas combina-se ao estabelecimento de fran­quias. Nessa perspectiva, uma obra de terras distantes, como a de Machado de Assis, na qual se possam estudar com pro­veito – suponhamos – os procedimentos retóricos do narra­dor, as ambiguidades em que se especializam os desconstru­cionistas, a salada estilística do pós-modernismo etc., estará consagrada como universal e moderna. A natureza sumária desse selo de qualidade, que corta o afluxo das conotações históricas, ou seja, das energias do contexto, salta aos olhos. É claro que não se trata de desconhecer o bom trabalho feito no interior de cada uma dessas linhas críticas, que só pode ser discutido caso a caso, mas de assinalar o efeito automá­tico e conformista das assimetrias internacionais de poder. Por outro lado, a cesta de teorias literárias em voga nas pós­-graduações dos Estados Unidos é heterogênea por sua vez, originária em boa parte de lugares tão pouco americanos quanto a União Soviética, Paris ou Nova Déli, e nesse sen­tido não parece uniformizadora. Contudo, o caldeamento no mercado acadêmico “local”, uma instância do American way of life e uma novidade histórica incontornável, distancia as teorias de suas motivações de origem. O mecanismo lhes sobreimprime uma involuntária feição comum, mediante a qual passam a exercer as suas funções de hegemonia, se possível em escala planetária, e dentro de muito desconjun­tamento. Os lados incongruentes dessa neouniversalidade talvez sejam mais visíveis para críticos periféricos, ao menos enquanto não tratam de adotá-la.

Assim, a consagração atual de Machado de Assis é sustentada por expli­cações opostas. Para uns, a sua arte soube recolher e desprovincianizar uma experiência histórica mais ou menos recalcada, até então ausente do mapa do espírito. A experimentação literária no caso arquitetaria soluções para as paralisias de uma ex-colônia em processo de formação nacional. A qualidade do resultado se deveria ao teor substantivo das dificuldades transpostas, que não são apenas artísticas e que lhe infundem algo de sua tensão. Para outros, a singularidade e a força inovadora não se alimentam da vida extraliterária, muito menos de uma história nacional remota e atípica. Observam que não foi necessário conhecer ou lembrar o Brasil para reconhecer a qualidade supe­rior de Machado, nem para apontar a sua afinidade com figuras centrais da literatura antiga e moderna, ou com as teorias em evidência no momento ou, sobretudo, com o próprio espírito do tempo. A ideia aqui, salvo engano, é de diferenciação intraliterária, ou seja, endógena, no âmbito das obras-primas: Machado é um Sterne que não é um Sterne, um moralista francês que não é um moralista francês, uma variante de Shakespeare, um modernizador tar­do-oitocentista e engenhoso do romance clássico, anterior ao Realismo, além de ser um prato para as teorias do ponto de vista, embora diferente do con­temporâneo Henry James. Em suma, um escritor plantado na tradição do Oci­dente, e não em seu país. A figura não é impossível – embora a exclusiva seja tosca – e cabe à crítica decidir. Não custa notar, entretanto, a semelhança com o clássico anódino de que falávamos páginas atrás, cujas superioridades cos­mopolitas, ou dessoradas, a crítica com referência nacional tentou contestar.

A oposição se presta à querela de escolas e convida a tomar partido. Mas ela encarna também o movimento do mundo contemporâneo, uma guerra por espaço, movida por processos rivais, que não se esgota em disputas de método. As relações entre os adversários, cada qual desqualificando o outro, embora apresentando também algo que lhe faz falta, não são simples. Para dar uma ideia, note-se que dificilmente um adepto do Machado “brasileiro” reclamará da nova reputação internacional do romancista, por mais que discorde de seus termos. Com efeito, que machadiano não se sente enaltecido com o reconhe­cimento enfim alcançado pelo compatriota genial? A nota algo ridícula da per­gunta faz eco ao amor-próprio insatisfeito dos brasileiros, que em princípio não teria cabimento num debate literário que se preze, para o qual essa ordem de melindres é letra vencida. Mas o ridículo no caso é o de menos, pois nada mais legítimo que a vaidade de ver refletidos os expoentes nacionais naquelas teorias novas em folha, que afinal de contas são as depositárias da conversa­ção crítica internacional e, mal ou bem, do presente do mundo – de que é pre­ciso participar, mesmo que ao preço de algum autoesquecimento. Adotando a pergunta do campo oposto, por que diabo enterrar um autor sabidamente universal no particularismo de uma história nacional que não interessa a nin­guém e não tem interlocutores?

Nessa linha, o sucesso internacional viria de mãos dadas com o desaparecimento da particularidade histórica, e a ênfase na particularidade histórica seria um desserviço prestado à universalidade do autor. O artista entra para o cânon, mas não o seu país, que continua no limbo, e a insis­tência no país não contribui para alçar o artista ao cânon. Pareceria que a supressão da história abre as portas da atua­lidade, ou da universalidade, ou da consagração, que per­manecem fechadas aos esforços da consciência histórica, enfurnada numa rua sem saída para a latitude do presente. Veremos que a disjuntiva está mal posta e que não há por que lhe dar a última palavra. Mas é certo que no estado atual do debate ela carrega alguma verdade, pois a falta de articulação interna, de trânsito intelectual entre análise de formas, história nacional e história contemporânea é um fato, com consequências políticas tanto quanto estéticas.

Quanto aos trabalhos artísticos de primeira linha pro­duzidos em ex-colônias, a tese da inutilidade crítica das circunstâncias e da particularidade nacional talvez não saiba o bastante de si. Falta-lhe a consciência de seus efei­tos, que são de marginalização cultural-política em âmbito mundial. Ou ainda, desconhece a construção em muitas frentes, coletiva e cumulativa, artística e extra-artística, em parte inconsciente, sem a qual a integridade estética e a relevância histórica, as quais pretende saudar, não se cristalizam. Seja como for, a neouniversalidade das teorias literárias poderia também ser bem-vinda a seu adversário, que ao criticá-la sairia do cercadinho pátrio e colocaria um pé no tempo presente, ou melhor, num simulacro dele. O reconhecimento internacional de um escritor muda a situação da crítica nacional, que nem sempre se dá conta do ocorrido.

Helen Caldwell começa The Brazilian Othello of Machado de Assis – A Study of Dom Casmurro – o primeiro livro nor­te-americano sobre o romancista – com uma afirmação “sonora”. O escritor seria um diamante supremo, um Koh­-í-noor 17 brasileiro que cabe ao mundo invejar. Logo adiante, Dom Casmurro é considerado “talvez o melhor romance das Américas”. Não é pouca coisa, sobretudo se lembrarmos que eram os anos da revalorização de Hawthorne e Melville, e sobretudo da imensa voga crítica de Henry James. Dito isso, prossegue Caldwell, é possível que “só nós de língua inglesa” estejamos em condições de apreciar devidamente o grande brasileiro, “que constantemente usava o nosso Shakespeare como modelo”. Assim, ao reconhecimento e à cortesia segue-se a surpreendente reivindicação de competência exclusiva, ainda que envolta em humorismo (“com perdão da megalomania”).18

Mas é fato que a intimidade com Shakespeare permitiu a Caldwell virar do avesso a leitura corrente de Dom Cas­murro, tributária até então dos pressupostos masculinos da sociedade patriarcal brasileira. Mais imersa nos clássicos da tragédia que na idealização de si de nossas famílias abas­tadas, a crítica norte-americana – professora de literatura grega e latina – estava em boa posição para notar algumas das segundas intenções de Machado. A uma shakespea­riana não podiam passar despercebidas a confusão mental e a prepotência de Bento Santiago, o amável e melancó­lico marido-narrador do romance. A lição barbaramente equivocada que ele, o Casmurro, tira do desastre de Otelo era a indicação segura, entre muitas outras, de que seria preciso desconfiar de suas suposições sobre a infidelidade da mulher. Veja-se a respeito o capítulo decisivo em que Bento, agoniado pelo ciúme, vai espairecer no teatro, onde por coincidência assiste à tragédia do mouro. Em vez de lhe ensinar que os ciúmes são maus conselheiros, esta o con­firma na sua fúria e lhe dá a justificação do precedente ilus­tre: se por um lenço Otelo estrangulou Desdêmona, que era inocente, o que não deveria ter feito o narrador à sua ado­rada Capitu, que com certeza tinha culpa?19 O curto-circuito mental, quase uma gag, não deixa dúvida quanto à intenção maliciosa de Machado, que escolhia a dedo os lapsos e con­trassensos obscurantistas que derrubariam – se não fossem passados por alto – o crédito de seu narrador suspeitoso, transformando-o em figura ficcional propriamente dita, que contracena com as demais e é tão questionável quanto elas. À maneira do estranhamento brechtiano, são pistas para que o leitor se emancipe da tutela narrativa, reforçada pela teia dos costumes e dos preconceitos sancionados. Se a campainha artística for ouvida, ele passa a ler com indepen­dência, quer dizer, por conta própria e a contrapelo, mobi­lizando todo o espírito crítico de que possa dispor, como cabe a um indivíduo moderno. A confiança singela e aliás injustificável que até segunda ordem os narradores costu­mam merecer fica desautorizada. A inversão de perspecti­vas não podia ser mais completa: o problema não estava na infidelidade feminina, como queria o protagonista-narra­dor, mas na prerrogativa patriarcal, que tem o comando da narração e está com a palavra, que não é fiável nem neutra. Graças a esse dispositivo formal, que desqualifica o pacto narrativo, a disposição questionante engolfa tudo, da prece­dência dita normal dos maridos sobre as mulheres – o foco da polêmica de Caldwell – ao crédito devido a um narrador bem-falante, à virtude patriótica do encantamento roma­nesco, à respeitabilidade das elites ilustradas brasileiras. De padrão nacional de memorialismo elegante e passadista, o livro passa a experimento de ponta e obra-prima implacável.

A descoberta crítica no caso eleva muito a voltagem inte­lectual do romance. Já notamos o que ela deveu à familia­ridade com os clássicos, ou melhor, à estranheza causada por um desvio clamoroso na compreensão de um deles, independentemente de considerações de contexto. Ou por outra, o seu contexto efetivo foi a própria tradição canônica, cujas luzes serviram de revelador das hipocrisias e ceguei­ras entranhadas na ordem social. Aliás, a intimidade com esta podia até mesmo atrapalhar, como de fato atrapalhou, a crítica brasileira durante 60 anos, entre a publicação do romance em 1899 e o estudo de Caldwell em 1960. Foi com justa satisfação que este saiu a campo para corrigir “três gerações de críticos”, a quem as insinuações do ex-marido, hoje um viúvo amalucado no papel de pseudoautor, conven­ceram da culpa de Eva/Capitu.20 É claro que muitos brasilei­ros haviam lido Otelo e é provável que tivessem notado que o Casmurro tira uma conclusão aberrante da morte de Des­dêmona. Contudo, filiados ao universo ideológico do narra­dor, não lhes pareceu que o “deslize” obrigasse a questionar o viés de poder da situação narrativa. Inclinados a acatar o ponto de vista patriarcal e a veracidade dos memorialistas, ou, também, despreparados para duvidar da boa-fé de um narrador de boa sociedade, dono de uma prosa sem igual na literatura brasileira, bem como de apólices, escravos e casas de aluguel, não acharam que fosse o caso de suspeitar de uma personagem tão bem recomendada. Ficavam aquém da vertigem inscrita no dispositivo literário machadiano, que atrás dos traços de um memorialista fino e poético, cidadão acima de quaisquer suspeitas, fazia ver, primeiro, o marido discretamente empenhado na destruição e na difamação de sua mulher, e, em seguida, o senhor patriarcal na plenitude de suas prerrogativas incivis.

Cotejado com seu modelo, o Casmurro aparece como uma variante ori­ginal, seja porque recombina Otelo e Iago em uma só pessoa, seja porque mistura as condições de personagem e de narrador, tornando incerta uma distinção importante. No que respeita ao enxadrismo das situações lite­rárias, a invenção machadiana é diabólica. Investido da credibilidade que a convenção realista associa à função narrativa, Bento Santiago é, não obs­tante, parte parcialíssima do drama. O garante do equilíbrio expositivo não tem equilíbrio ele próprio: o memorialista honesto e saudoso é um marido desgovernado, que trata de persuadir a si mesmo e ao leitor de que fizera bem ao expulsar de casa e desterrar para outro continente a sua Capitu/ Desdêmona. Aí estão, com raio de generalidade tão supranacional quanto as instituições do casamento ou da narração, os estragos causados pelo ciúme, pela prerrogativa masculina e pela autoridade inquestionada de quem detém a palavra. São resultados de tipo universal, obtidos por Caldwell no espaço como que atemporal e homogêneo das obras-primas do Ocidente, por meio da comparação abstrata de caracteres ou situações, e de análises também elas universalistas. Os paralelos com Shakespeare, a Bíblia e a mitologia, as especulações sobre o significado dos nomes próprios das personagens machadianas no campo geral da onomástica, o estudo da consistência fun­cional de complexos imagísticos, à maneira de Freud e do New Criticism shakespeareano, a revelação da duplicidade do Otelo narrador, que é um feito crítico notável – nada disso requereu o recurso à configuração peculiar do país, que não conta para efeitos de interpretação.

Isso posto, Bentinho não é Otelo, Capitu não é Desdêmona, José Dias e o Pádua não são Iago e Brabantio, nem o Rio de Janeiro oitocentista é a Europa renascentista. O século 19 e seu sistema de sociedades distintas entre si e no tempo entram pela outra porta, e mal ou bem a cegueira do universa­lismo para a historicidade do mundo fica patente, sem prejuízo de even­tuais descobertas sensacionais. As diferenças entre Machado, Shakespeare e demais clássicos não importam uma a uma, no vácuo, à maneira elemen­tarista, como aspectos de um só e mesmo conjunto: elas têm desempenho estrutural-histórico, sugerindo mundos correlativos e separados, que esteti­camente seria regressivo confundir. A presença ubíqua da cor local não pode ser mera ornamentação, sob pena de rebaixamento artístico. A própria desautori­zação do narrador masculino, tão esclarecedora, só atinge a plenitude de sua irradiação quando combina os atropelos do ciúme – uma paixão relativamente extraterritorial – às particularidades do patriarcalismo brasileiro do tempo, vinculado à escravidão e ao clientelismo, empapado de autocomplacência oli­gárquica, além de vexado pela sombra do progresso europeu.

Pensando em vantagens comparativas, ou no que as leituras podem ofe­recer ou invejar uma à outra, observe-se que a interpretação universalista dá como favas contadas a grandeza que a interpretação com base nacional que­reria demonstrar. Será uma superioridade? Uma inferioridade? É claro que grandeza no caso tem dois significados que brigam entre si. Semelhanças e diferenças com Otelo, Romeu e Julieta, Hamlet, Macbeth etc., além de conver­gências com teses do New Criticism, decidem a questão da estatura artística pela simples indicação dos patronos ilustres, que não deixam de constituir um establishment. Assim, o procedimento que faz admitir Dom Casmurro entre os seus pares no campo das obras universais tem algo de cooptação, ou de reconfirmação de protótipos (de cera?) no ultramar. Graças a um sistema de menções cultas, meio ostentadas e meio escondidas – aliás, escolhidas por Machado com deliberação meticulosa –, um romance que não constava como canônico troca de estante. Por outro lado, embora ponha o livro nas alturas e o subtraia ao acanhamento provinciano, com ganho inegável, essa universalidade, devida ao ar de família, não satisfaz a outra leitura, ainda que a possa ajudar muito. Para esta, o caminho para a qualidade passa pelo apro­fundamento crítico de uma experiência estético-social precária, em boa parte inglória, até então mantida à margem, cuja densidade interna se trata de con­solidar e cuja relevância se trata de arguir e, mesmo, construir. Não há como desconhecer o papel que a tradição clássica tem na obra de Machado, mas o que interessa identificar é o redirecionamento nada universal que, graças ao Autor, a problemática particular do país lhe imprime. A nota de reivindicação, bem como o esboço de um contraestablishment, ou a reconsideração à nova luz do establishment anterior, não existem na outra leitura.

Ainda nesse capítulo da ajuda entre adversários, veja-se que o Brazilian Othello causou uma viravolta memorável em nosso meio, sem ser forte em seu próprio terreno: conforme entra pelas semelhanças e diferenças de personagens machadianas, shakespearianas e outras, postas para flutuar na região comum das obras universais, na qual tudo se compara a tudo, Caldwell vai se perdendo no inespecífico, para não dizer arbitrário. A ver­dade é que o melhor de sua intervenção – o tino para a má-fé do pseudo-autor – não frutifica no âmbito comparatista, e sim no da reflexão nacional. Esta última, demasiado bloqueada para enxergar o artifício machadiano, fizera um papelão. Por isso mesmo, entretanto, uma vez esclarecida a res­peito, era ela quem tinha mais elementos para lhe apreciar o gume e expli­citar o alcance, seja artístico, seja de crítica de costumes, seja político. Em suma, o resultado durável do livro não foi tanto a revelação de uma obra­-prima quanto a inviabilização da leitura conservadora de um clássico nacional, até então assegurada por uma aliança tenaz de convencionalismo estético e preconceitos de sexo e classe. A solidez social dessa liga conferiu aos novos argumentos um valor de contestação inesperado, que escapa ao programa das teorias literárias universalistas. Invertendo a blague inicial da autora, segundo a qual só anglófonos e shakespearianos teriam condições de apreciar Machado de Assis, digamos que foi no ambiente saturado de injustiças nacionais e de história que o achado universalista adquiriu a densidade e o impulso emancipatório indispensáveis a uma ideia forte de crítica.

Por que supor, mesmo tacitamente, que a experiência bra­sileira tenha interesse apenas local, ao passo que a língua inglesa, Shakespeare, o New Criticism, a tradição ocidental e tutti quanti seriam universais? Se a pergunta se destina a mas­carar os nossos déficits de ex-colônia, não vale a pena comen­tá-la. Se o propósito é duvidar da universalidade do universal, ou do localismo do local, ela é um bom ponto de partida.

A questão tem importância para a arte de Machado, que a dramatizou numa crônica das mais engenhosas, chamada “O punhal de Martinha”.21 Trata-se da apresentação, em prosa clássica pastichada, dos destinos paralelos de dois punhais. Um lendário e ilustre, que serviu ao suicídio de Lucrécia, ultrajada por Sexto Tarquínio. Outro comum e brasileiro, por isso mesmo destinado à “ferrugem da obs­curidade”, que permitiu a Martinha vingar-se das impor­tunações de um certo João Limeira. A moça, diante da insis­tência deste, previne: “Não se aproxime, que eu lhe furo”. Como ele se aproxima, “ela deu-lhe uma punhalada, que o matou instantaneamente”.

A notícia, pescada num jornal da Cachoeira, no interior da Bahia, é posta lado a lado com o capítulo célebre da His­tória de Roma, de Tito Lívio. Desenvolvendo os contrastes, o cronista concede que a gazeta baiana não pode competir com o historiador insigne; que Martinha ao que tudo indica não é um modelo de virtude conjugal romana, antes pelo contrário; e que João Limeira não tem sangue régio nas veias. As comparações, todas desabonadoras, são feitas do ângulo do literato ultra-afetado do Rio de Janeiro, que diverte os leitores à custa de uma cidade modesta, que a ninguém ocorreria comparar ao padrão da Antiguidade. Dito isso, Machado inverte a ironia – sem o que não seria quem é – e observa que a cachoeirense não fica a dever à romana em bravura: Martinha vinga-se com as próprias mãos onde a outra confia a vingança ao marido e ao pai, sem contar que pune a mera intenção, e não o ultraje consumado. A nota cafajeste dessa segunda distinção, destinada a botar defeito na honestidade de Lucrécia, não deixa de ser um achado memorável, especialmente vindo de um con­sertador de injustiças… Seja como for, por um momento é Lucrécia quem se deve mirar no exemplo de Martinha, e não vice-versa, uma viravolta de alcance quase inconcebível.

É claro que essas superioridades, tanto quanto as inferioridades, não são para levar a sério. Elas resultam do cotejo abstrato de vícios e virtudes, termo a termo, perfil contra perfil, que prefere o exercício retórico ao tino para a his­tória – uma opção que o tempo havia tornado obsoleta e burlesca. Assim, a comparação leva a rir da Cachoeira, porque ela não se compara a Roma, e a rir de Roma, que talvez não passe de uma Cachoeira revestida de belas pala­vras. Refletidas uma na outra, a localíssima Cachoeira e a universalíssima Roma funcionam como uma dobradinha de comédia. Os clichês derrubam-se mutuamente, para gozo dos finos, e não deixam resto. Artificioso e sumário, o dualismo tem certa esterilidade enjoativa, que não vai a lugar nenhum.

Apesar da equidade ostensiva da argumentação, o espírito do paralelo é de troça e tem ranço de classe inconfundível, este sim interessante, e aliás nada equitativo. O cronista deplora a sorte obscura dos compatriotas pobres e provincianos, mas a comparação culta na verdade lhe serve para subli­nhar a distância que o separa deles e de nossa hinterlândia cheia de facadas. Serve-lhe também para figurar na internacional dos cosmopolitas fim de século, que não se iludem com Roma e a discurseira clássica, embora dispo­nham de seu repertório. Num caso busca diferençar-se da barbárie popular; no outro, integrar-se à elite mundial dos espíritos educados, sempre em lin­guagem para poucos, que marca uma superioridade meio caricata. O leitor é tratado na empolada segunda pessoa do plural, com subjuntivos e condicio­nais difíceis: “Talvez esperásseis que ela se matasse a si própria. Esperaríeis o impossível, e mostraríeis que me não entendestes”. Como a facilidade da pirotecnia gramatical, são aspirações medíocres, cheias de autocongratula­ção risível, em que, no entanto, há altura artística, pois o seu esnobismo dá forma a feições importantes da desigualdade moderna.

Precedida do artigo definido e singularizador, a Cachoeira passa a ser uma localidade familiar, que fica logo ali, mesmo para quem não tenha conhecimento dela. Algo análogo se dá com Martinha, que possivelmente seja um tanto bárbara, de má-vida e culpada de homicídio, mas a quem o diminutivo afetuoso traz para perto em ideia, incluindo-a na esfera da cor­dialidade brasileira, ou do sentimento nacional, desdizendo as segregações antissociais trazidas do tempo da Colônia. Noutras palavras, alguns indi­cadores gramaticais funcionam na contracorrente da dicção emproada, de cujas presunções de exemplaridade, estilo elevado e civilização destoam, ou, ainda, a cujas partições se opõem.

Digamos então que o paralelo clássico milita, enquanto forma, pela separação dos espaços que compara. Também do ponto de vista de classe ele mais afasta do que aproxima, pois alinha o escritor na franja europei­zada e culta, estranha às circunstâncias cruas e remotas da vida popular no interior do país. Estamos próximos da posição do letrado colonial, vivendo nestas brenhas a contragosto, na companhia consoladora de ninfas e pas­tores de convenção. Ao passo que as descaídas chãs e familiares da prosa, menos salientes mas não menos definidoras, fazem supor um alinhamento político diverso, em que aquelas separações não são ponto pacífico. Volta e meia, a despeito da couraça retórica, o escritor parece reconhecer como suas a gente e as localidades da ex-colônia, agora o Brasil. Implícita, há também a recíproca, segundo a qual essa gente e essas localidades poderiam contar com ele nalgum grau. Está aí a posição do intelectual posterior à Indepen­dência, impregnado de tradição europeia, mas bloqueado por ela.

Como exemplo da contradição, observe-se o apreço dúbio pela bravura de Martinha, com a sua pitada de zombaria. As palavras de entusiasmo não têm como alcançar a moça, pois o paralelo com Lucrécia a despoja de seu contexto próximo e, no fundo, a faz perder de vista, embora lhe dê visibi­lidade e universalidade noutro nível. Enredado em sua cultura de aparato, o escritor está do lado contrário ao que desejaria defender, ocultando o mundo diferente que quereria revelar. As boas letras não funcionam apenas como trunfo, mas também como obstáculo, ao passo que a experiência local, sendo um núcleo de identidade, mas de uma identidade pouco prestigiosa, tanto fortifica como desmerece e empareda o seu portador. A mescla das dicções – da dicção engomada e da dicção familiar – interioriza e encena a crise, que se resolve nas linhas finais, pela derrota da aspiração nacional: depois de indignar-se com a “desigualdade dos destinos”, que só recolhe e transmite o que está nos livros canônicos, ignorando o que existe na reali­dade – leia-se o Brasil –, o escritor joga a toalha e toma o partido do opositor, o beletrista amestrado que ele traz dentro de si. “Mas não falemos mais em Martinha”, quer dizer, não falemos do Brasil.

A conclusão não é para ser acatada, ou melhor, é para ser desobedecida. Trata-se de mais uma versão do refinado procedimento machadiano do (inale em falso, ou do (inale inaceitável, na verdade uma provocação que manda reexaminar criticamente a persona que está com a palavra. No ato, o literato consumado que não tem coragem de romper com a máquina lite­rária culta se transforma em figura lastimável. Deve ceder o passo a seu alter ego recalcado, este sim capaz de reconhecer a poesia que existe em Mar-tinha e na Cachoeira – uma poesia desafetada, sem fórmulas de Tito Lívio, sem atitudes de tragédia, sem gestos de oratória, sem quinquilharia clás­sica, mas com “valor natal e popular”, incluídas aí as afrontas à gramática, e valendo “todas as belas frases de Lucrécia”.

Assim, o prosador duvida entre atitudes opostas, muito representativas, em confronto dentro dele. Numa, a anedota local – marcada pela nota primi­tiva e por vestígios da Colônia, que são a substância efetiva do pitoresco – é sujeitada à luz dos modelos ditos universais, que lhe impõem a medida. Na outra, a mesma anedota ou matéria seria valorizada nos seus próprios parâ­metros, liberta das convenções literárias que nos separam e escondem de nós mesmos, embora nos identifiquem como civilizados. O que seria essa prosa voltada para o natal e o popular, sem guarda-roupa clássico, e ainda assim capaz de merecer um lugar na memória dos homens?

Note-se que o ideal da autossuficiência estética, ligado ao nacionalismo romântico, bem como a uma noção mítica da Independência, inclui a quebra da hierarquia entre as nações, que seriam todas igualmente váli­das, ainda que diferentes. Recusando os paradigmas externos, antigos ou contemporâneos, é uma ideia que a seu modo converge com o desejo de autarquia, com a aspiração moderna à desconvencionalização completa. Mas a equiparação geral entre as nações, que anularia os hegemonismos, seria uma possibilidade efetiva? Mesmo que só imaginária, essa verdadeira revolução cultural, que obrigaria ao realinhamento das afinidades de classe internas e externas, compondo um bloco histórico diferente – em que as classes cultas se deveriam mais a seu povo que a seus pares nos países adiantados –, faz recuar o cronista, que volta às garantias tradicionais da posição anterior.

Em resumo, o paralelo com Lucrécia começa como uma piada de lite­rato bem-posto e rebuscado, conformista no fundo. Em seguida, ao inver­ter as precedências entre a romana e a baiana, a brincadeira toma um rumo menos convencional, mas ainda assim enquadrado pela autossatisfação das classes cultivadas, únicas em condições de apreciar o lance. É num terceiro passo que o punhal de Martinha e o esquecimento inglório que o espera adquirem a vibração notável. Como a familiaridade da linguagem indica, Martinha não é apenas uma representante de costumes bárbaros, que os civilizados de todos os quadrantes, entre os quais o cronista, olham com curiosidade, de fora e do alto. Ela faz parte também do povo brasileiro e, por aí, da problemática interior do mesmo cronista. O homem ilustrado, sem­pre um conselheiro da pátria em formação, sente que o destino dos com­patriotas pobres e relegados é menos exótico e mais representativo do que parecia. Mal ou bem, a falta de reconhecimento em que vivem não deixa de lhe dizer respeito. Aliás, a inadequação literária do cronista, ou seja, a sua reverência por Lucrécia, não teria parte na condição apagada que diminui a sua gente? E não haveria também nele próprio algo da marginalização his­tórica, para não dizer da barbárie e até do exotismo de Martinha? Sem con­tar que a simplicidade clássica da punhalada em João Limeira revela rique­zas inexploradas da nação, ao menos quanto às possibilidades literárias.

Como indicam essas inerências à distância, ou determinações recípro­cas entre classes quase estranhas, deixamos o âmbito retórico das oposições abstratas e maniqueístas, além de vagamente colonialistas, do tipo Civiliza­ção versus Barbárie. Em seu lugar, entram as identidades problemáticas, os desníveis nacionais e internacionais, mais a correspondente dialética social, com as suas interligações imprevistas e significados instáveis. Sob a forma ostensiva, a forma latente: a bravura ou braveza da moça dá assunto a com­parações engenhosas e fora do tempo, mas veicula também a ambiguidade estético-política de quem escreve, imprimindo à prosa uma nota de inquie­tação e culpa históricas. Dentro do cronista coexistem e lutam, ou alternam, o cosmopolita empertigado e o escritor mordido pela situação brasileira, com todas as ambivalências do caso. Assim, o esquecimento em que desapa­recerá a moça da Cachoeira merece as lágrimas de crocodilo do humorista de salão, bem como as lágrimas sentidas mas confusas do escritor nacional, que lastima nela a obscuridade em que vegetam o seu país e ele próprio.

Para tomar a medida do abismo de classe por trás dessas vacilações, basta colocar-se na posição da heroína meio anônima e quase admirada que está no outro polo. Submetido a uma ducha escocesa, o destino popular tanto pode ser enaltecido e servir de bandeira regeneradora como pode ser sim­plesmente posto de parte, segundo a inspiração momentânea dos bem-pos­tos, que têm e não têm compromisso com os compatriotas pobres.

Dito isso, a nossa apresentação vem forçando a nota num ponto delicado: palavras da esfera histórico-política, como pátria, nação, Brasil etc., e tam­bém as referências à questão nacional, em que insistimos, não comparecem no argumento explícito da crônica. Elas são as suas presenças ausentes. Ao lastimar as injustiças da fama, que, ao que tudo indica, não irá conservar a punhalada de Martinha, o cronista toma um rumo entre trivial e metafísico, em detrimento do senso histórico. Segundo a sua explicação, Martinha vai “rio abaixo do esquecimento” porque é uma criatura “tangível”, como aliás todo mundo, e não por ser brasileira e popular, como indica o contexto. A “parcialidade dos tempos”, da qual ela é vítima, não se refere à desimpor­tância que aflige o Brasil e as suas classes pobres, mas à oposição entre os clássicos e a mera vida em carne e osso. Como os clássicos são “pura lenda”, “ficção” e “mentira” compiladas em livros recomendados, notáveis pelo apuro da gramática, é claro que não deixam lugar para a mocinha empí­rica da Cachoeira, que tem endereço e ofício conhecidos, erra na colocação de pronomes e não foi celebrada pelos poetas – ela sim real e verdadeira. A conclusão acaciana do cronista filósofo, que medita “sobre o destino das coisas tangíveis em comparação com as imaginárias”, é que os humanos só dão valor ao que não existe. “Grande sabedoria é inventar um pássaro sem asas, descrevê-lo, fazê-lo ver a todos, e acabar acreditando que não há pás­saros com asas…”

A ironia está na composição. Como nos seus grandes romances, Machado faz literatura “do seu tempo e do seu país” – para lembrar o programa famoso – por meio e à custa da personagem cosmopolita que tem a palavra e se acredita acima das circunstâncias, o que mais a localiza.22 Cabe ao leitor, armado de implicância e antena histórico-social, contrapor a feição brasileira das situações à sua redução pelo cronista a uma generalidade atemporal e vazia. É certo que é possível sujeitar a lista de nossos traços notó­rios de ex-colônia à categoria dos “tangíveis”, por oposição aos “imaginários”, preferidos pela fama. Contudo é possível também enxergar nessa operação do espírito mais outro exemplo de defeito nacional, pronto para figurar naquela mesma lista de traços de atraso, à qual a mania de transfor­mar em pontos de filosofia as nossas mazelas históricas se integra à perfeição. A função nobilitante e mascaradora do deslocamento fala por si.

Entrando em matéria, aí estão a Martinha, entre familiar e desconhecida, como o povo a que pertence; a condição social de zé-ninguém, sem nome de família nem proteção da lei, e com prenome no diminutivo; a facada meio urbana meio sertaneja, e a Cachoeira, que é um faroeste com feições locais. No campo dos instruídos, há o exibicionismo retórico e gramatical, que compensa o complexo de inferioridade herdado da Colônia; o sentimento geral de irrelevância e de vida de segunda classe, além do ressentimento com a falta de repercussão de nossas coisas; há ainda as províncias remotas como um ultramar, envolvidas em certo apego sentimental etc. A incongruência entre isso tudo, “tão Brasil”,23 e os con­ceitos filosóficos do cronista incita à reflexão histórico-social, que fica desafiada a completar e denominar o que está confi­gurado, a incongruência inclusive. O procedimento é verti­ginoso, mas efetivo: a acuidade mimética para os problemas brasileiros combina-se à inclusão maliciosa de raciocínios desfocados, e à exclusão, também deliberada, do vocabulá­rio e dos argumentos ligados à questão nacional. Esta, cuja ausência é estridente, passa a ter a presença que o leitor insatisfeito seja capaz de lhe conferir por conta própria, com as matérias à mão e longe dos chavões românticos e natu­ralistas então disponíveis. O movimento ultrapassa o marco explícito colocado com pompa pelo explicador da fábula, e “cabe ao leitor tirar as conclusões da conclusão”24

Enquanto o cronista se queixa do pouco sucesso de Martinha, é claro que ela está mais que imortalizada – graças a essa mesma queixa, que traz em si, sem o saber, uma condição moderna de grande ressonância artística. Para ele, indeciso entre o clássico e o autóctone, ambos incapazes de assegurar à moça “um lugar de honra na história”, não há como sair do impasse. Já para Machado – que inventava a situação narrativa – o trio formado por: a) a região relegada do universo; b) o repertório clássico que desmerece as realidades locais; e c) o cronista culto, portador de um despeito histórico-mundial, é ele próprio a solução: uma vez articulada pelo jogo literário, esta verdadeira célula social-histórica imprime à cena algumas das linhas inconfessadas da atualidade. Ela deixa entrever uma história mais real, em andamento, mas de rumo incerto, na qual a escolha entre localismo e universalismo funciona de modo imprevisto, com as noções trocando e destrocando de posição, em discrepância com o seu conceito abstrato. Olhando bem, Martinha não se tornou imortal, ou relevante, porque um literato nativista se ateve aos termos dela e da Cachoeira, rejeitando a tradição estrangeira que as impede de brilhar. Pelo contrário, na ausência do paralelo ilustre, o episódio ficaria reduzido a uma facada entre outras. Na verdade, é a referência à dona celebrada ou ao repertório clássico que tira da vala comum a mocinha do meretrício local, transfor­mando-a em tema “para a tribuna, para a dissertação, para a palestra” – não porque seja uma igual de Lucrécia, como quereria o cronista, mas porque a comparação não se aplica, fazendo girar em falso a cultura canônica e indicando algo que lhe escapa, que fica atravessado e seria o principal.

Um deslocamento análogo desuniversaliza a forma do paralelo, que de clássica se torna pitoresca. Em tom grave, como convém às comparações cultas, ela deixa à vista uma porção de realidades entre indesejadas e risíveis, além de distintivas, que destoam do padrão. Os vexames incluem o nosso reflexo estrangeiro diante dos patrícios pobres, des­providos de existência civil, as veleidades de requinte dos educados, a sua avidez de reconhecimento, o papel antipo­pular da alta cultura, a adoção semiculta e pernóstica desse mesmo papel, e assim por diante. Entretecidos com a retó­rica rebuscada, os traços precários adquirem tessitura lite­rária, além de dar a Martinha o contexto adensado, propria­mente brasileiro e atual, ou moderno, que parecia faltar.

Como dispositivo formal, a comparação dos punhais é um cenário de cartolina, mas dotado da força de revelação dos achados oswaldianos: “O lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui Barbosa: uma cartola na Senegâmbia.25 Tudo revertendo em riqueza”.26 Sem nada de antiquário, as segundas intenções do paralelo são satíricas e visam o presente, em conivência maliciosa com o realismo oitocentista. A sua lição de coisas, uma documentação como que à revelia, oferecida a quem queira ver, é um subproduto da inadequação da forma ela mesma. Carregado de consciência e humorismo históricos, o des­propósito formal, que é um artifício cara de pau, impõe às anedotas locais um pano de fundo extra, ou a complexidade de um fundo duplo. O estado bisonho e tão fora de tudo dos causos brasileiros, insuficientes para sustentar uma prosa à altura do tempo, é corrigido pela sombra clássica e universal.

Com recuo adequado, a “desigualdade dos destinos” lamentada na crônica se despega de Martinha e Lucrécia, da figurinha popular e do busto de museu, que não têm por que ser iguais, para aludir à condição inferiorizada e proble­mática de país periférico, atolado na conformação e nas privações da ex-colô­nia, estas sim difíceis de envergar no quadro das nações civilizadas. Martinha está para Lucrécia como o Brasil, para os países adiantados. Arbitrário como toda montagem, o paralelo entre o fait divers baiano e um dos episódios fun­dadores da mitologia da Roma antiga é uma substituição sutil, que expressa em termos passadistas e farsescos um mal-estar contemporâneo.

Em suma, universalismo e localismo são ideologias ou chavões, ou tim­bres, de que Machado se vale como de pré-fabricados passíveis de uso satí­rico. A parafernália da retórica e do Humanismo, universal por excelência, lhe serve, desde que faça figura imprópria, nada universal, com cacoetes de lugar e classe historicamente marcados. Uma inversão análoga atinge o anseio patriótico de libertar a matéria local dos enquadramentos como que alienígenas da cultura erudita. Também esse patriotismo serve, desde que leve aonde não quer, à insignificância e ao isolamento, a que o propósito elevado imprime conotação cômica, esta sim contemporânea e relevante. As ressonâncias não programadas dos registros universalista e localista são o que estes têm de mais verdadeiro. Ao sublinhar as desafinações e fazer que alternem, Machado dá figura artística à posição em falso da ex-colô­nia, às “anomalias” da integração interna e da situação externa da quase nação, também elas involuntárias. Trata-se dos resultados locais e disfor­mes de grandes tendências-norma da atualidade, os quais dizem e valem mais do que parece. São especificações contraideológicas: cultura hegemô­nica ostensiva, mas desqualificada pela paisagem social discrepante; e vida popular a que não falta poesia, mas acompanhada das restrições da norma civilizada. Estamos diante de um material com fisionomia própria, compó­sito, desarmônico e rebaixado, que é produto histórico e pode ser ponto de partida artístico. Depositários da transformação periférica da cultura europeia, estes quiproquós põem de pé uma problemática inédita, difícil, de classes e de inserção internacional, de que a oposição corrente entre localismo e universalismo oferece uma versão distorcida e característica.

O processo de fundo é a formação da nacionalidade nas condições herda­das da colonização, inevitavelmente fora de esquadro, se o esquadro forem as autoidealizações da Europa adiantada. Traduzindo os termos pelo seu desempenho, “local” é o déficit de mediações, o fosso escancarado entre o dia a dia semicolonial e a norma do mundo contemporâneo; e “universal” é o consagrado e obrigatório, a presunção de exemplaridade que se torna uma quimera ou uma estupidez quando aplicada sem mais à mesma circunstân­cia. As mediações não se podem fabricar por um ato de vontade, do dia para a noite. Ao desenvolver uma escrita em que os dois registros contracenam a seco e com ironia, incongruentes, complementares e des­cambando no seu contrário, Machado criava um equivalente estilístico dessa constelação histórica, além de colocá-la em movimento, com seus fortes momentos de verdade. O uni­versal é falso, e o local participaria do universal se não esti­vesse isolado e posto à parte, um degrau abaixo.

Enquanto outros escritores buscavam a cor local em regiões e classes pouco afetadas pelo progresso, onde um citadino em dia com os tempos a admite facilmente, com bonomia e sem custo para a autoestima, Machado foi detec­tá-la em nossas classes mais civilizadas, ou universais, ou residentes na corte. O frequentador carioca de Tito Lívio, que zomba dos compatriotas desfavorecidos e no íntimo se ofende com o destino que lhes cabe, à margem do mundo, não é menos pitoresco do que Martinha. Mas não se pode dizer que seja uma figura localista, pois os seus ressenti­mentos derivam claramente da história contemporânea em sentido amplo, a qual expressam e cujo quadro de desigual­dades e humilhações internacionais não diz respeito só aos brasileiros, mas a todo mundo – embora de maneiras dife­rentes.27 Ao fazer dessa personagem o seu narrador, ou, por outra, ao desuniversalizar o narrador cosmopolita – uma operação formal decisiva –, Machado dessegregava a maté­ria local. Esta saía de seu confinamento histórico e via-se intermediada por um vivíssimo jogo de interesses de classe atrasado-modernos, nacionais e internacionais, disfarçados de universais. Por baixo da engrenagem retórica, lógica e estética do particular e do universal, pressionando-a e dan­do-lhe verdade, como um imenso subentendido, há luta de classes, luta entre nações, patamares desiguais de acumula­ção cultural, além de luta artística e crítica.

O referente remoto, que valida ou desqualifica a com­posição artística – se estivermos certos –, é a ordem mun­dial desequilibrada e em litígio, de que o país faz parte. A última palavra não pertence à nação, nem à cultura hege­mônica internacional, mas ao presente conflituado que as atravessa e desdiz. Entre outras coisas, este é uma fábrica de recalques, que reconhece só o que é consagrado pelo establishment, ou que se pareça com ele. E deixa esqueci­das a um canto as ex-colônias, que não correspondem ao padrão. Era o próprio desequilíbrio, sempre em processo de se renovar, que ditava aos escritores a angústia em que se expressa a condição periférica: o espírito vale porque, a despeito de desterrado, se filia ao repertório dos modelos europeus? Ou vive do apego ao viés peculiar, muitas vezes inaceitável e constrangedor, além de próprio e novo, do país em formação?28 Machado de Assis, que era avesso à unilate­ralidade, não só não tomou partido no caso, como tomou o partido de assumir e acentuar as decalagens, fazendo delas e de seu jogo – entre Roma e caixa-pregos – uma regra de sua prosa. Mais compósita e tensionada do que se diz, esta articulava uma parceria de incompatíveis. Casava a inves­tigação numerosa e original das relações sociais brasileiras ao recurso em grande escala ao pacote greco-romano-hu­manista-ilustrado-cientificista, em suma, universalista, em parte avançado, em parte um anacronismo irônico. É claro que a vizinhança imediata e metódica entre local e univer­sal, familiar e encasacado, informal e oficialista, contingente e clássico, arbitrário e ilustrado, nacional e estrangeiro, des­conhecido e célebre e, para tudo resumir, ex-colônia e paí­ses-paradigma, apontava para um denominador comum, ainda que movediço e dotado de inúmeras faces. As dualida­des recobriam-se em parte, expressavam-se uma pela outra e originavam um jogo de substituições que as ultrapassava. A nota dissonante, sem solução em perspectiva, tinha pos­sibilidades cômicas e representatividade nacional, além de funcionar como caricatura do presente do mundo, em que as experiências locais deixam mal a cultura autorizada e vice-versa, num amesquinhamento recíproco de grande envergadura, que é um verdadeiro “universal moderno”.