serrote #4,março 2010
Martinha versus Lucrécia
ROBERTO SCHWARZ
Este livro resulta de quatro conferências que dei na Universidade de Cambridge. [ … ] Ao falar de Borges precisamente ali e em inglês, tive uma impressão curiosa. Aí estava uma argentina falando numa universidade inglesa sobre outro argentino a quem hoje se considera “universal”. […] A reputação mundial de Borges o purgou de nacionalidade.1
O renome internacional de Machado de Assis, hoje em alta, até meados do século 20 era quase nenhum. Para não fabricar um falso problema, é bom dizer que o mesmo valia para a literatura brasileira no seu todo, prejudicada pela barreira do idioma. Talvez a única exceção fossem os romances de Jorge Amado, que se beneficiavam da máquina de propaganda e de traduções do Realismo Socialista, atrelada à política externa da finada União Soviética. Sem ilusões, comentando uma tentativa oficial de divulgar os escritores brasileiros na França, Mário de Andrade observava que a nossa arte seria mais apreciada no mundo se a moeda nacional fosse forte e tivéssemos aviões de bombardeio.2 Como não era o caso, íamos criando uma literatura de qualidade até surpreendente, que para uso externo permanecia obscura.
De lá para cá, o romance machadiano foi traduzido, e os estudos estrangeiros a seu respeito vieram pingando, sobretudo em inglês. Em parte, o empurrão foi dado pela ampliação dos interesses norte-americanos no pós-guerra, a qual se refletiu na programação da pesquisa universitária. Voltada para regiões que a Guerra Fria tornava explosivas, a criação de area studies facultava currículos mais adaptados ao presente, para mal e para bem. Assim, na esteira da Revolução Cubana, o português foi declarado língua estratégica para os Estados Unidos, com a suplementação de verbas e os dividendos culturais do caso.3
Já na parte propriamente literária, o reconhecimento se deveu a intelectuais com antena para a qualidade e a inovação. Por exemplo, Susan Sontag conta que o editor de seu primeiro romance a cumprimentou pela influência de Machado de Assis, cujas Memórias póstumas de Brás Cubas ele mesmo tinha publicado havia poucos anos. Era engano, pois ela não conhecia nem o livro nem o autor, mas logo os adotou como “influência retroativa”.4 A suposição, que não valia para Sontag, valia entretanto para o próprio editor: Cecil Hemley era romancista por sua vez, e deixou um excelente testemunho de seu interesse por Machado. A anedota mostra o clima de cumplicidades seletas que se estava formando em torno do escritor.5 Na mesma linha, há o depoimento de Allen Ginsberg, o poeta beat. Visitando Santiago, no Chile, em 1961, este disse ao escritor chileno Jorge Edwards que considerava Machado um outro Kafka.6 E veja-se ainda o prefácio de John Barth a uma reedição de seus primeiros livros. O romancista – National Book Award de 1972 – lembra que tentava encontrar a sua maneira, com ajuda de Boccaccio, Joyce e Faulkner, quando o acaso fez com que lesse Machado de Assis. Este lhe ensinou que as cambalhotas narrativas não excluíam o sentimento genuíno nem o realismo, numa combinação à la Sterne, que mais adiante se chamaria pós-moderna.7
Quanto à academia, a pesquisa machadiana desenvolvida nos Estados Unidos acompanhou as correntes de crítica em voga por lá. O patrocínio teórico vinha entre outros do New Criticism, da Desconstrução, das ideias de Bakhtin sobre a carnavalização em literatura, dos Cultural Studies, bem como do gosto pós-moderno pela metaficção e pelo bazar de estilos e convenções. A lista é facilmente prolongável e não para de crescer. Mais afinada com a maioria silenciosa, indiferente às novidades, havia ainda a análise psicológica de corte convencional. A surpresa ficava por conta do próprio Machado de Assis, cuja obra, originária de outro tempo e país, não só não oferecia resistência como parecia feita de propósito para ilustrar o repertório das teorias recentes. O ponto de contato se encontrava no questionamento do realismo ou da representação, e em certo destaque da forma, concebida como estrangeira à história. Há aqui uma questão que vale a pena enfrentar: como entender a afinidade entre um romancista brasileiro do último quartel do século 19 e o conjunto das teorias críticas em evidência agora nas metrópoles?
O percurso da crítica brasileira no mesmo período foi distinto. Ela não tinha diante de si um grande escritor desconhecido, mas, ao contrário, o clássico nacional anódino. Embora fosse coisa assente, a grandeza de Machado não se entroncava na vida e na literatura nacionais. A sutileza intelectual e artística, muito superior à dos compatriotas, mais o afastava do que o aproximava do país. O gosto refinado, a cultura judiciosa, a ironia discreta, sem ranço de província, a perícia literária, tudo isso era objeto de admiração, mas parecia formar um corpo estranho no contexto de precariedades e urgências da jovem nação, marcada pelo passado colonial recente. Eram vitórias sobre o ambiente ingrato, e não expressões dele, a que não davam sequência. Dependendo do ponto de vista, as perfeições podiam ser empecilhos. Um documento curioso dessa dificuldade são as ambi-valências de Mário de Andrade a respeito. Este antecipava com orgulho que Machado ainda ocuparia um lugar de destaque na literatura universal, mas nem por isso colocava os seus romances entre os primeiros da literatura brasileira.8
Pois bem, a partir de meados do século 20 a tônica se inverte, com apoio numa sucessão de descobertas críticas. O distanciamento olímpico do Mestre não desaparece, mas passa a funcionar como um anteparo decoroso, que disfarça a relação incisiva com o presente e a circunstância. O centro da atenção desloca-se para o processamento literário da realidade imediata, pouco notado até então. Em lugar do pesquisador das constantes da alma humana, acima e fora da história, indiferente às particularidades e aos conflitos do país, entrava um dramatizador malicioso da experiência brasileira. Este não se filiava apenas aos luminares da literatura universal, a Sterne, Swift, Pascal, Erasmo etc., como queriam os admiradores cosmopolitas. Com discernimento memorável, ele estudara igualmente a obra de seus predecessores locais, menores e menos do que menores, para aprofundá-la. Mal ou bem, os cronistas e romancistas cariocas haviam formado uma tradição, cuja trivialidade pitoresca ele soube redimensionar, descobrindo-lhe o nervo moderno e erguendo uma experiência provinciana à altura da grande arte do tempo.9 Quanto ao propalado desinteresse do escritor pelas questões sociais, um dos principais explicadores do Brasil pôs um ponto final à controvérsia: sistematizou as observações de realidade espalhadas na obra machadiana, chamando a atenção para o seu número e a sua qualidade, e com elas documentou um livro de 500 páginas sobre a transição da sociedade estamental à sociedade de classes.10 Digamos que o trabalho escravo e a plebe colonial, o clientelismo generalizado e o próprio trópico, além da corte e da figura do imperador, davam à civilização urbana e a seus anseios europeizantes uma nota especial. Compunham uma sociedade inconfundível, com questões próprias, que o romancista não dissolveu em psicologia universalista – contrariamente aliás ao que supôs o historiador.11