Paratodos, para os pobres, pra ninguém – por Ricardo Teperman

Paratodos, para os pobres, pra ninguém

por RICARDO TEPERMAN

Os Racionais MC’s são o ponto cego na inclusão do rap pela tradição da MPB, que já acolheu Emicida e Criolo

 

[A Rádio Batuta oferece uma playlist com as gravações citadas neste ensaio]

 

Em 2010, durante as gravações do álbum Nó na orelha, o rapper Criolo divulgou na internet um vídeo em que cantava uma versão de “Cálice”, de Chico Buarque e Gilberto Gil, célebre peça de resistência à ditadura. O clipe, gravado numa padaria com uma câmera fixa, mostrava o cantor com roupas do dia a dia, numa interpretação contida:

Pai,

Afasta de mim a biqueira, pai

Afasta de mim as bíatch, pai

Afasta de mim a cocaíne, pai

Pois na quebrada escorre sangue

 

Com sua nova letra, Criolo propunha um paralelo entre a truculência do regime militar e a violência do cotidiano dos pobres nas periferias. “A ditadura segue”, diz ele: o sangue continua escorrendo nas quebradas, é preciso desviar da droga (biqueira é gíria para ponto de tráfico) e das biatch (corruptela de bitch, referência vulgar a mulheres com sede de poder ou dinheiro – e índice do machismo que apenas muito recentemente começa a ser revisto por pro­dutores e consumidores de rap).

O vídeo teve grande repercussão, alcançando perto de um milhão de visua­lizações. Poucos meses depois, Chico Buarque incorporou uma homenagem a Criolo nos shows da turnê do disco Chico, mimetizando o estilo rap e cantando:

Gosto de ouvir o rap e o hip-hop da rapaziada

Um dia vi uma parada assim, no YouTube, e disse Queospariu!

Parece “Cálice”, aquela cantiga antiga minha e do Gil.

Era como se o camarada me dissesse:

Bem-vindo ao clube, Chicão, bem-vindo ao clube.

Valeu, Criolo Doido.

Evoé, jovem artista,

Palmas pro refrão do meu rapper paulista.

 

Em seguida canta o refrão da versão de Criolo, emendado com o refrão ori­ginal da canção. Chico Buarque, em geral reservado, não costuma apadrinhar novos cantores – o que sublinha a singularidade de seu interesse pelo rapper. O compositor diz ter se sentido “bem-vindo” ao clube do rap e, ao final, saúda: “Evoé, jovem artista” – retomando, com ligeira alteração, um verso de sua can­ção “Paratodos”, de 1993 (“Evoé, jovens à vista”).

“Paratodos” é um baião cuja letra segue uma das formas mais tradicionais entre cantadores nordestinos, a sextilha: estrofes de seis versos de sete sílabas cada, com rimas entre o terceiro e o sexto versos, e também entre o segundo, o quarto e o quinto. Chico ainda rima o último verso de cada estrofe com o pri­meiro da seguinte, requinte que simula um procedimento típico dos desafios de cantadores.

O recurso a técnicas da cultura popular serve aos propósitos da can­ção, na qual o autor traça sua genealogia particular – pai paulista, avô per­nambucano, bisavô mineiro e tataravô baiano – e musical, com menções a um seleto time de compositores e intérpretes. A descrição da ascendência familiar, que envolve os estados de maior proeminência na história do país (incluindo o Rio de Janeiro, sem referência explícita, mas onde Chico nas­ceu), reforça o sentido abrangente do conjunto de músicos encabeçado por Jobim, “maestro soberano”, apresentado de maneira incomum: Antonio Brasileiro. Ao optar pelo prenome completo, em detrimento do apelido pelo qual o músico foi chamado desde a primeira hora, seguido do pouco conhecido sobrenome do meio, Chico buscava mais do que uma solução que rimasse com o “bisavô mineiro” do terceiro verso. Embora fiel ao registro de nascimento de Tom Jobim, Antonio Brasileiro parece nome imaginário, sonhado, repre­sentação de todos e de cada um.

A música brasileira é receitada nos versos de “Paratodos” como uma espécie de tônico universal: “Creia, ilustre cavalheiro/ Contra fel, moléstia, crime/ Use Dorival Caymmi/ Vá de Jackson do Pandeiro”. No panteão dos 25 avatares entram ainda Pixinguinha, Noel Rosa, Caetano Veloso e João Gilberto, mas também Erasmo e Roberto Carlos – e a presença dos ídolos da jovem guarda numa lista tão enxuta e canônica reforça o desejo de abrangência.

Todos os artistas citados na canção iniciaram a carreira no mais tardar nos anos 1960. A saudação aos jovens, que encerra a penúltima estrofe, parece mais um voto de esperança, apesar da “vista enevoada”, do que a mirada de algo a caminho. Daí que a canção termine com a repetição dos versos da estrofe inicial, com fecho diferente e algo melancólico: “Vou na estrada há muitos anos/ Sou um artista brasileiro”.

 

*

Paratodos, o álbum, vinha quebrar o primeiro grande jejum de Chico: quatro anos sem disco de inéditas, depois de mais de duas décadas de produção praticamente ininterrupta – desde 1966, ele vinha lançando discos com intervalo de no máximo dois anos. A pausa tornou-se tema de canção no disco, “De volta ao samba”, com os versos: “Pensou que eu não vinha mais, pensou/ Cansou de esperar por mim”. O lançamento an­terior, Chico Buarque, datava de 1989 – ano em que Fernando Collor venceu as primeiras eleições diretas para presidente em décadas, para desalento da esquerda brasileira. Que o si­lêncio de Chico tenha partido daí é uma coincidência que não deixa de ser sintomática.

Em 1991, o cantor publicou Estorvo, breve romance que mais parece o relato de um “sonho mau”, uma “angustiante parábola” da experiência social brasileira da época, como escreveu o crítico Benedito Nunes.1 A produção musical de Chico passou então a ser mais bissexta, com um disco a cada cinco ou oito anos (As cidades, 1998; Carioca, 2006; Chico, 2011), sempre intercalado com um novo livro (Benjamim, 1995; Buda­peste, 2003; Leite derramado, 2009; e O irmão alemão, 2014). O investimento na literatura e a parcimônia na produção musi­cal estão em sintonia com ideias que vieram à tona numa célebre entrevista de 2004: “Talvez tenha razão quem disse que a canção, como a conhecemos, é um fenômeno do século passado, tal é a quantidade de releituras, de compilações, de relançamentos, de gente cantando clássicos”.2

O comentário causou estardalhaço e foi o estopim para um profícuo debate sobre “o fim da canção”. Já em 2001, o etno­musicólogo Carlos Sandroni havia proposto uma provocadora comparação entre MPB e uma sigla sonoramente próxima, MDB, cuja transformação em PMDB representou a diluição de sua força como partido de oposição, tornando-se uma espé­cie de saco de gatos .3 Nos muitos desdobramentos do debate sobre o “fim da canção”, é ponto pacífico que o início do ciclo de redemocratização opera como marco. Segundo Sandroni, a partir desse momento também a sigla MPB perdeu sua uni­dade político-estética e tornou-se pouco mais do que uma eti­queta de mercado.

Tanto a ideia de povo por trás da letra P, de popular, como a ideia de nação encerrada no b de Brasil não mais correspon­diam aos esforços imaginativos forjados nas décadas anteriores. Como disse Lorenzo Mammì, “a reabertura política acon­tece numa situação de degradação social tão acentuada que não apenas é impossível retomar sem mais a utopia desenvol­vimentista, como até a identificação de formas de expressão populares e cotidianas capazes de apontar para uma concilia­ção se torna cada vez mais difícil”.4 Grosso modo, a ideia do “fim da canção” diagnosticava o esgotamento do grande pro­jeto modernista de construção de uma cultura brasileira “para todos”, que orientou a bossa-nova, o tropicalismo e boa parte dos vários desdobramentos da MPB a partir dos anos 1970.

Em 1993, em todo caso, isso ainda não estava tão claro e a volta de Chico ao samba tinha “o sabor da reconciliação do compositor com a cultura nacional e popular, chancelada pela música, a despeito de tudo”,5 escreveu Fernando de Barros e Silva. O neologismo da dedicatória – paratodos – diz muito sobre a tradição à qual Chico se filiava.

O rapper Criolo

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No mesmo ano de 1993, os Racionais MC’s lançavam seu ter­ceiro disco, Raio X do Brasil. Antes de atacar o primeiro rap, “Fim de semana no parque”, Mano Brown também fazia uma dedicatória: “A toda comunidade pobre da zona sul”. A pro­dução apresentava notável economia de meios: bateria ele­trônica programada apenas com bumbo, caixa e chimbau; a linha de baixo descendente saindo do quarto grau (sol), passando pela terça menor (fá) e repousando na tônica (ré), se repetindo ao longo dos mais de sete minutos da faixa. O único respiro vem com o sample de Jorge Ben, que pontua as intervenções de Brown e Edi Rock e funciona como re­frão. Na maior parte do tempo, um único outro instrumento melódico harmônico compõe o arranjo: um sintetizador, tocado com um dedo só, que sustenta a fundamental (ré) e a cada três compassos repete o gesto melódico do baixo, cinco oitavas acima. A melodia descendente em modo menor e o timbre de órgão no registro agudo, sobre o fundo pesado do conjunto baixo e bateria, propõem um cenário de cons­tante tensão.

A prosa é firme e o conflito, franco: “Olha só aquele clube que da hora/ Olha o pretinho vendo tudo do lado de fora”; “Olha quanto boy, olha quanta mina/ Afoga essa vaca dentro da piscina”. A proposta de enfrentamento de classe e de raça, bem como a recusa obstinada aos apelos da mídia e do mer­cado traziam uma novidade política e estética sem preceden­tes. A música dos Racionais não se organiza nem pela ideia de popular, nem pela de brasileiro: é feita de pretos pobres para pretos pobres, e essa é sua maior ambição e seu maior feito. Em 2001, José Miguel Wisnik via o rap dos Racionais como “um acontecimento forte e significativamente fora do esqua­dro popular-nacionalista”.6

O impacto nacional de Sobrevivendo no inferno, disco de 1997 que vendeu mais de um milhão de cópias, impôs ao grupo o desafio de lidar com o sucesso comercial – desejado ou não. Naquele mesmo ano, o clipe de “Diário de um detento” foi indicado às principais categorias do prêmio Video Music Brasil (VMB), promovido pela MTV. Os Racionais aceitaram o convite para a cerimônia de premiação, que tinha Carlinhos Brown como apresentador.

Quando a vitória dos Racionais na principal categoria da noite foi anunciada, as câmeras da MTV focaram os bastido­res, onde os integrantes do grupo e uma comitiva de cerca de 40 pessoas comemoravam a notícia. A cerimônia foi transmitida ao vivo, e os produtores da MTV pediam aos artistas que se dirigissem ao púlpito para rece­ber o prêmio e dizer palavras de agradecimento. Quase dois minutos depois, uma eternidade no tempo da televisão, os quatro integrantes dos Racionais estavam reunidos no palco.

Carlinhos Brown vestia uma sobrepele vermelha e brilhante que o cobria dos pés a cabeça, além de um par de asas e uma espécie de cocar, ambos feitos de plumas negras. Ele passou a palavra aos MC’s, que se recusavam a encarar o apresentador e não falavam nada, gerando constrangimento. O baiano ten­tou mais uma vez fazer-se notar: repetiu o nome do prêmio e ergueu o troféu ostensivamente diante dos vencedores. A comitiva que acompanhava o grupo passou a insultar o apresentador, em coro regido por Mano Brown: “Filho da puta! Filho da puta!”. Carlinhos Brown disse: “O rap é muito bom, né? Olha o vocabulário.” Então Ice Blue finalmente começou seu discurso de agradeci­mento. “Esse prêmio que a gente ganhou é de vários manos como esses aqui”, disse, indicando as pessoas que os acompanhavam nos bastidores. “Essa rapa­ziada aqui, tudo descendente de preto.”

Depois de Blue, quem falou foi KL Jay: “Nos lugar mais longe da cidade, nos lugar mais distante do país, meu povo não tem tevê a cabo nem o conversor pra pegar a MTV e assistir Yo Rap e assistir isso aqui que tá acontecendo. Mas mesmo assim esse prêmio vai pra todo o meu povo que veio da África, enri­queceu a Europa e a América do Norte. E o que sobrou pra nós foi as favela, foi as cadeia…” Nesse momento, KL Jay foi interrompido por Carlinhos Brown, que começou a cantar, com a voz firme, trechos de uma canção do bloco afro Ilê Aiyê. Com o cenho franzido, o apresentador se dirigiu ao grupo que pouco antes o havia insultado, apontando o dedo como se estivesse dando uma lição de moral:

Pelourinho que ontem atuou

É visitado hoje por muita gente de cor

Pelourinho que ontem atuou

Fotografado hoje por muita gente de cor

 

Em seguida, ainda gesticulando e com o dedo em riste, aproximou-se de KL Jay, colocou as mãos em concha em torno do ouvido do DI e entoou fonemas sem sentido, bem ao estilo axé music, que tanto sucesso fazia à época: “tê, tê, tê bom”. Parte do público aplaudiu e KL Jay retomou a palavra como se nada tivesse acontecido: “Bom, como eu ia dizendo…” Concluiu seu discurso e pas­sou a palavra a Mano Brown e Edi Rock, que fizeram agradecimentos sumários.

O líder dos Racionais e o músico baiano escolheram o mesmo sobrenome artístico: Brown, marrom em inglês, que remete a um dos principais nomes do funk, James Brown. Marrom é a cor da mestiçagem, conceito central para se pensar a história do Brasil. Se compartilham o sobrenome, além de trajetó­rias sociais aparentadas – músicos jovens, negros e de origem pobre –, Mano e Carlinhos têm visões divergentes do significado da mestiçagem brasileira.

Em seu happening de improviso contra os Racionais, o baiano festejava a então recente reforma do bairro do Pelourinho, antigo local de suplício de escravos, que para orgulho de “muita gente de cor” tornara-se cartão-postal de Salvador. Com ênfase no sincretismo, a afirmação da negritude em solo brasileiro é saudada como um processo festivo –— tônica geral da chamada axé music. Desse ponto de vista, o saldo principal da escravidão no Brasil é a cria­ção de singularidades dignas de comemoração, como as músicas e as religiões afro-brasileiras.

A visão de Mano Brown é bem diferente. No final do rap “Racistas otários”, lançado no primeiro disco dos Racionais, uma voz enfatuada diz a seguinte frase: “O Brasil é um país de clima tropical onde as raças se misturam natu­ralmente e não há preconceito racial”. Em seguida, ouve-se uma gargalhada sarcástica, e Mano Brown arremata com os versos: “Nossos motivos pra lutar ainda são os mesmos/ O preconceito e o desprezo ainda são iguais/ Nós somos negros, também temos nossos ideais/ Racistas otários nos deixem em paz.”

Uma leitura do embate poderia tomar como foco de discussão a emergên­cia do orgulho negro, desdobramento dos movimentos sociais que se conec­tam tanto ao rap quanto ao axé. A explosão dos blocos afro na Bahia é um acon­tecimento notável, assim como experiências tão diferentes entre si como os maracatus em Pernambuco, o funk no Rio de Janeiro, as festas de aparelhagem no Pará, além do próprio rap. Cada uma à sua maneira, todas correm por fora da chamada MPB.

Mas a disputa entre Brown e Brown na festa da MTV também pode ser entendida como a presentificação do conflito que distinguia a novidade do rap, feito dos “pobres para os pobres”, da tradição hegemônica da música bra­sileira, feita “por todos” e “para todos”.

 

*

Ainda em 1997, mesmo ano de Sobrevivendo no inferno, Caetano Veloso lançou Livro, disco cuja faixa final é “Pra ninguém”, referência explícita a “Paratodos”. A seleção de artistas evocados tem quase a mesma extensão do elenco de Chico (27 no total), e cada intérprete é associado a uma canção. O espectro parece mais amplo, contemplando artistas de carreira então recente, como Marisa Monte, ou improváveis – naquele contexto –, como Max Cavalera, do Sepul­tura. Aliás, a menção ao cantor de death metal é pouco mais que uma nota pro­vocadora ou de “confusionismo calculado”, para usar a expressão de Roberto Schwarz sobre o autor de Verdade tropical.

Como o compositor baiano declarou, trata-se de uma lista muito pessoal, “quase acrítica” – a não ser pela escolha de João Gilberto: “Melhor do que isso só mesmo o silêncio/ Melhor do que o silêncio só João.” Em Paratodos, Chico Buarque saudava jovens músicos que ele não via, sob a guarda de Antonio Bra­sileiro. Caetano os vê, mas João Gilberto está acima de todos, além da barreira do som. O elogio tem como custo a conde­nação da produção musical brasileira (pior do que o silêncio), a princípio homenageada pela canção. O próprio niilismo do título de Caetano, “Pra ninguém”, parece sugerir que algo está fora da ordem.

“Pra ninguém” é um samba meio duro, como em crise de identidade: o violão evoca João Gilberto, mas hesita entre dife­rentes batidas de bossa-nova e não convence; um pandeiro improvisa estranhamente, às vezes substituído por vassou­rinhas na caixa da bateria. Flautas, oboés, um violão de sete cordas e um cavaquinho aparecem e se vão, bem como um pequeno conjunto de câmara que intervém com frases glamo­rosas. A despeito da competência da orquestração de Jaques Morelenbaum, o resultado é duvidoso. A letra é uma lista, lite­ralmente, bem à moda dos top five, uma febre à época, popula­rizados por Nick Hornby no romance Alta fidelidade, de 1995. Sem se organizar em estrofes claras, cada verso tem um tama­nho, em função do nome do artista ou da canção – e a melodia vai se adequando como pode; as rimas vêm ou não, como ao ao acaso. A estranheza da canção não se explica simplesmente por eventuais defeitos de fatura, ainda que não seja uma das (muitas) grandes criações do compositor. Sua aparente incon­gruência é testemunho do problema que enfrenta.

Na primeira frase do release que escreveu para Livro, Caetano diz: “Às vezes penso que minha profissão tem sido perseguir Chico Buarque”, para então explicar como algu­mas canções (e não apenas) do disco dialogam com a obra do colega.? Ao mencionar o paralelo de “Pra ninguém” e “Paratodos”, Caetano lembra ainda do rap “Festa da música tupini­quim”, de Gabriel o Pensador, peça que o “comove e exalta de modo semelhante à de Chico, embora em registro diferente”.

Entendo que essas “grandes canções de congraçamento”, como Caetano as define, são indícios não só da saturação do campo, mas também da impossibilidade de que este se man­tenha coeso. É a percepção do desmantelamento de um sen­tido compartilhado do que é a música brasileira que motiva a conciliação anunciada nessas canções. Se “Paratodos” termina em nota melan­cólica, à espera de jovens que hão de vir, “Pra ninguém” denuncia, se ouvida a contrapelo, a falência do projeto. Já a canção de Gabriel o Pensador só tem interesse pelo passo em falso que tenta dar.

O rapper Emicida

*

Filho de uma jornalista de carreira bem estabelecida, Gabriel ainda era estu­dante na PUC-Rio quando começou a compor raps. Seu primeiro disco, pela Sony Music, vendeu em 1993 mais de 200 mil cópias, com divulgação em programas como Domingão do Faustão e Fantástico, na Rede Globo. Na época, houve certa polêmica em torno de Gabriel, e discutia-se sua legitimidade ao fazer rap por ele ser branco e de classe média.

“Festa da música tupiniquim”, de 1997, ecoa a “Festa de arromba” da jovem guarda. Famosa pelo refrão (“Vejam só que festa de arromba/ Noutro dia eu fui parar”), a música composta por Erasmo e Roberto em 1965 nomeia os músicos do movimento como Ronnie Cord, Prini Lorez, Wanderléa, Renato e seus Blue Caps. O rap de Gabriel tem batida animada, como promete ser a tal festa: “Todo mundo tá presente/ Não tem hora para acabar/ E muita gente ainda tá pra che­gar”. Logo no primeiro verso, o rapper diz que não foi convidado para a festa, mas entrou assim mesmo. Afinal, nessa balada cabe todo mundo, inclusive o palhaço e hoje deputado federal Tiririca – “Olha o Tiririca com uma negra chei­rosa”. Os críticos, no entanto, são “barrados no baile”.

À sua maneira, Gabriel o Pensador contribuiu para a consolidação da popu­laridade do rap no Brasil. Ao mesmo tempo que ocupou espaços, por assim dizer, centrais na indústria do entretenimento, ficou relativamente à margem nas esferas de reconhecimento próprias do gênero, como rádios comunitárias, palcos de periferia e no discurso dos demais Mcs. Muitos rappers e Djs dizem que Gabriel não faz rap. De fato, o gesto de entrar mesmo sem convite na festa da MPB – que no seu rap ocorria na rua Antonio Carlos Jobim, como que para sublinhar a intenção do compositor – era diametralmente oposto à proposta dos Racionais, que inclui tudo menos festa e congraçamento.

Ao colocar Gabriel ao lado de Chico Buarque (como já havia feito com Max Cavalera), Caetano reitera que a sua é uma “avaliação extratécnica e supra-crítica”. O compositor acompanhava com interesse a produção do rap, tendo inclusive arriscado incursões no gênero com “Língua” (ainda em 19 84) e “Haiti” (1993). São intervenções que revelam não só o alto nível de competência analí­tica e técnica de Caetano como sua capacidade de reagir rapidamente às coisas do mundo – em “Haiti”, há uma longa passagem em que denuncia “o silêncio de São Paulo” diante do massacre do Carandiru ocorrido no ano anterior e sobre o qual os Racionais dariam o testemunho definitivo em 1997.

Em “Pra ninguém”, também chama atenção que nenhum dos compositores citados interprete uma obra de autoria própria: Djavan surge cantando uma canção de Gil, também mencionado, mas cantando Edu Lobo; e Chico apa­rece associado a um samba de Jamelão. O ganho do procedimento é frisar a originalidade de João Gilberto – apesar de ser autor de algumas canções, é sua genialidade como intérprete da tradição da canção brasileira que faz Caetano apresentá-lo, “crítica e tecnicamente”, como “mestre supremo”.

A avaliação de Caetano reforça a distância entre o rap e a MPB. A ideia de um intérprete que seleciona obras de outros autores e as reapresenta com sua leitura, por mais pessoal e original que seja, é estranha ao rap: um MC só canta letras de sua autoria, um testemunho de sua experiência de vida, de raça e de classe. Diz Mano Brown em um dos melhores raps do grupo:

Eu não li, eu não assisti

Eu vivo o negro drama

Eu sou o negro drama

Eu sou o fruto do negro drama

 

É uma boa coincidência que “Fim de semana no parque”, “Paratodos” e “Pra ninguém” estejam todas na tonalidade de ré. O rap dos Racionais começa e termina em ré menor, sem dali sair nem por um segundo. O modo menor e o caráter monótono da harmonia só reforçam a negatividade crítica da produção do grupo.

O baião de Chico explora com maestria caminhos harmônicos possíveis apenas para quem estudou, de perto, com Tom Jobim. A peça está em ré maior, mas aproveita também o modo de ré mixolídio (que tem a sétima menor, como em “Baião”, de Gonzaga), com pontual alteração do quarto grau, típica da música nordestina. Trata-se de uma música de parte única, mas pequenas e elegantes variações na melodia e/ou na harmonia em algumas das estrofes garantem o desenvolvimento sofisticado e sempre interessante do discurso musical – como a sintetizar a circularidade modal da música dos repentistas com o sentido progressivo das harmonias tonais.

A harmonia do samba estranho de Caetano está o tempo todo em ré maior, exceto por uma abrupta modulação meio tom abaixo, permanecendo em dó sustenido menor durante alguns compassos. A peça é uma espécie de paródia do gênero bossa-nova no que ele tem de mais superficial: sua influência do jazz. Veja-se, por exemplo, a longa cadência que arremata a canção, no tre­cho em que a letra diz: “Melhor do que isso só mesmo o silêncio/ Melhor do que o silêncio só João.” A passagem harmônica é quase um clichê; aparece em dezenas de composições à maneira da bossa-nova e se repete três vezes, com pequena variação, na coda de “Chega de saudade”: “Que é pra acabar com esse negócio de você viver sem mim/ Não quero mais esse negócio de você longe de mim/ Vamos deixar desse negócio de você viver sem mim.” Mas o que é uma sacada poderosa no samba-choro que fez tanto barulho no fim dos anos 1950 soa como arremedo sem bossa no Caetano de 1997.

De novo, não é mais que uma coincidência, mas a menção é irresistível: “Chega de saudade” também foi composta em ré – a primeira parte em ré menor, a segunda parte em ré maior. Ela é, como se sabe, o emblema maior da bossa-nova – composição de Tom e Vinicius interpretada por João. Muitos dos principais artistas da geração dos anos 1960 relatam o impacto da pri­meira vez que a ouviram e lembram fotograficamente daquele momento. Caetano a ouviu no bar de Bubu, em Santo Amaro da Purificação; Chico no toca-discos Telefunken dos pais, sabendo que a letra era de Vinicius de Moraes, frequentador de sua casa.

Mano Brown não era nascido em 1959, mas sua mulher, Eliane Dias, provavelmente ouviu “Chega de saudade” na voz do próprio Vinicius de Moraes, na casa de quem sua mãe trabalhou como doméstica, no início dos anos 1970. Não bas­tasse isso, a mulher de Brown, hoje advogada e produtora, quando menina foi empregada da psicanalista Maria Alice Rufino, à época namorada do músico Toquinho. Em entre­vista à revista TPM, Eliane Dias relatou que a patroa a estimu­lava a ouvir Caetano e Chico.

Brown não costuma fazer referências aos ícones da MPB em seus raps, situando-se em uma tradição musical de cor de pele e origem social bem marcadas e menos prestigiada pelos estudos acadêmicos, e que tem em Jorge Ben e Tim Maia seus principais expoentes. Curiosamente, o autor da letra de “Chega de saudade” é nominalmente citado em “Da ponte pra cá”, rap gravado pelos Racionais em 2002: “Fundão muita treta pra Vinicius de Moraes ”.8 A poesia do “branco mais preto do Brasil” não o credita a figurar no rol daqueles que podem fre­quentar a quebrada de predileção de Mano Brown. Os rappers tomam lado ao denunciar a cisão social e racial que racha o país, metafórica e muito concretamente representada pela ponte que separa bairros nobres como Itaim e Vila Olímpia daque­les situados pra lá da estrada do M’Boi Mirim, como Capão Redondo e Jardim Ângela. Diz o refrão: “Não adianta querer, tem que ser, tem que pá/ O mundo é diferente da ponte pra cá”.

 

 

*

O rapper Emicida abre seu último disco com a faixa “Mãe”, em que diz: “Não esqueci da senhora limpando o chão desses boy cuzão/ Tanta humilha­ção não é vingança, hoje é redenção.” É claro que esses “boy cuzão” poderiam ser Vinicius, Tom, Caetano, Chico. No entanto, do mesmo disco, feito com o patrocínio do programa Natura Musical, participam Caetano Veloso e Vanessa da Mata. Pela primeira vez, Emicida solta a voz em melodias com alturas – algo que Criolo já vinha fazendo e que é, quase por definição, um recurso musical conciliador (por oposição à aspereza do canto-falado). Sem deixar de lado os versos contundentes do rap, Emicida canta sambas e baladas, e tem muita de­senvoltura no trato com a mídia e com as noções de carreira e mercado.

A aproximação com a MPB e o patrocínio de empresas não são fatos inéditos no rap nacional. Mas se em Marcelo D2 ou Rappin Hood o flerte com o samba e com outros gêneros brasileiros era quase experiência laboratorial (“à procura da batida perfeita”), em Emicida o trânsito entre estilos tem fluência e natu­ralidade. Quanto à parceria com a Natura, trata-se apenas de mais uma das muitas iniciativas da Laboratório Fantasma, empresa criada por Emicida e seu irmão Evandro Fióti. Atuando como selo, editora, produtora e grife de moda, a firma se consolida como o mais bem-sucedido negócio na história do hip-hop nacional e um case no mercado musical brasileiro, em plena reconfiguração pós-declínio da indústria do disco.

Em 2011, Criolo e Emicida foram os grandes vencedores do VMB. O primeiro faturou os prêmios de artista revelação, álbum e música do ano por “Não existe amor em SP”, balada algo melosa que combina crítica e declaração de amor à capital paulista, um pouco à maneira de “Sampa”, de Caetano, ao lado de quem Criolo se apresentou na festa da MTV.

Emicida venceu com o melhor clipe e como artista do ano. Ao receber seu troféu, fez propaganda da Laboratório Fantasma e declamou um trecho de le­tra que só gravaria em 2013, “Samba do fim do mundo”, em que começa di­zendo: “Somos a contraindicação do carnaval/ Nagô do tambor digital”. Para concluir com os versos: “Fuga da vida dura/ Ação necessária, por nossa ban­deira/ Isso é reforma agrária da música brasileira”.

Nas duas ocasiões em que foi protagonista na festa da MTV, em 1997 e 2011, o rap procurou marcar posição com relação à tradição da música popular: mas se a participação dos Racionais teve como tônica o conflito e o desconforto, a de Emicida e Criolo foi uma grande celebração.

Pouco depois, os dois jovens rappers lançaram um DVD juntos, produzido por Paula Lavigne – confirmação do trânsito intenso de ambos no mundo da música popular, contando com a colaboração estreita de seus mais renoma­dos artistas e produtores, além da bênção dos medalhões. Em poucas palavras, Emicida e Criolo deram o passo que Gabriel o Pensador tentou, mas não con­seguiu, e que Mano Brown sequer considerou: inseriram o rap na “linha evo­lutiva” da música popular brasileira. A expressão, proposta por Caetano ainda nos anos 1960, tornou-se consagrada ao mesmo tempo em que consagrava certa leitura sobre a história da música no país. A bossa-nova é o ponto central dessa tradição: tudo que vem antes ou depois ganha sentido a partir dela.

Essa é narrativa recontada, com pequena variação, tanto em “Paratodos” quanto em “Pra ninguém”. Sempre haverá interesse em notar, por exemplo, que Jobim protagoniza a versão de Chico, enquanto João Gilberto é a estrela na de Caetano. Mas, para todos os efeitos, o filme é o mesmo. Já “Fim de semana no parque” conta uma história bem diferente, na qual Vinicius não faz mais do que uma ponta.

Como disse Roberto Schwarz sobre o tropicalismo: “Em estética, e não só nela, os acertos têm seu custo, que é parte do problema”. Ao anunciarem a “reforma agrária na música popular brasileira”, adotando procedimentos esté­ticos e mercadológicos consagrados na tradição hegemônica, Emicida e Criolo propõem incluir a navalha de Mano Brown no prestigioso retrato feito pela Rolleiflex de Caetano e Chico. É um gesto que tem garantido enorme aceitação de público e crítica, mas que também tem decorrências cujo impacto ainda está por ser avaliado – entre os riscos que correm estão notadamente a diluição da verve crítica e a relativa perda de capacidade de representação das camadas mais pobres e marginalizadas.

 

Ricardo Teperman é doutor em antropologia social pela USP. É editor na Companhia das Letras, editor executivo da revista Novos Estudos (Cebrap) e professor no programa de pós-graduação em canção popular da Faculdade Santa Marcelina. Escreveu o livro Se liga no som – As transformações do rap no Brasil (Claro Enigma, 2015) e lançou, entre outros, os CDs A torcida grita (2007) e Geringonça (2009).

Com agradecimentos a Pedro Meira Monteiro e Maria Emilia Bender.

 

NOTAS

  1. Benedito Nunes, “Estorvo é o relato exemplar de uma falha”, Folha de S.Paulo, Ilustrada, 03.08.1991, p. 3.
  2. Fernando de Barros e Silva, “O tempo e o artista: a canção, o rap, Tom e Cuba, segundo Chico”, Folha de S.Paulo, Ilustrada, 26.12.2004.
  3. Carlos Sandroni, “Adeus à MPB”, in Berenice Cavalcante, José Eisenberg e Heloisa Starling (org.), Decantando a República. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.
  4. Lorenzo Mammì, “Os sonhos dos outros”, in Arthur Nestrovslki, Lendo canções. São Paulo: Publifolha, 2007.
  5. Fernando de Barros e Silva, “O fim da canção (em torno do último Chico)”, serrote. São Paulo, n. 3, nov, 2009, pp. 26-42.
  6. José Miguel Wisnik, Sem receita: ensaios e canções. São Paulo: Publifolha, 2004.
  7. Caetano Veloso, O mundo não é chato. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
  8. Agradeço a Gabriel Feltran pela lembrança do verso.

5 respostas para Paratodos, para os pobres, pra ninguém – por Ricardo Teperman

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