No pós-Segunda Guerra Mundial, conhecido como o período dos “anos dourados” da indústria cultural norte -americana, em que os gadgets de consumo se tornam acessíveis a uma ampla camada da população, o lazer coletivo sofre um drástico processo de desconcentração. Tendo mais brinquedos em casa, e podendo acessar – graças ao automóvel individual – praias e parques menos lotados e mais bem frequentados, como Jones Beach, a classe média nova-iorquina vai abandonando Coney Island, que passa a sofrer com os problemas crônicos de bairros periféricos, como assaltos, crimes, tráfico de drogas e guerras de gangues.
O golpe final vem em meados dos anos 1960, quando o endividado Steeplechase Park entra em falência e é comprado pelo magnata e especulador imobiliário Fred Trump, que pretendia forçar o governo a alterar o zoneamento da região e transformar o local em uma Miami Beach nova-iorquina. Segundo a descrição de Charles Denson, biógrafo de Coney, na véspera de demolir o parque, Trump convidou amigos e personalidades para arremessar tijolos contra a fachada de vidro do Palácio da Alegria, enquanto modelos de biquíni posavam para fotos sobre as escavadeiras de tratores.7
Depois de Moses e Trump, o mais novo inimigo mortal de Coney Island e sua trupe mambembe veio a ser o também especulador Joseph J. Sitt, dono da Thor Equities, que em 2005 se tornou proprietária de 50 mil m2 no coração da área de parques da ilha, ao longo da faixa que margeia o calçadão. Uma vez proprietária dos terrenos de parques ainda remanescentes até aquele momento, como o Astroland, a Thor foi forçando suas falências pelo não pagamento de mensalidades do aluguel.8 Seguindo estratégias especulativas, muitos terrenos – agora vazios –— entraram em letárgico adormecimento à espera de um rezoneamento e, consequentemente, de valorização. O plano declarado de Sitt era construir um enorme resort ao estilo Las Vegas, acompanhado de um parque aquático, torres de hotéis tipo Bellagio e condomínios fechados.9 Com a demolição da montanha-russa Thunderbolt, em 2000, e o fechamento do Astroland, em 2008, a área de parques de Coney foi reduzida a menos de 12 mil m2, uma parca memória daquilo que um dia foi o conjunto de parques de diversão mais efervescente do planeta. À boca pequena, foi dado como certo, entre a população de Nova York, que tudo ali seria demolido em pouco tempo.
Mais recentemente, a proposta de “revitalização” de Coney Island – como ponta de lança de um processo de descentralização dos destinos turísticos de Nova York –, apareceu como uma das importantes bandeiras de campanha na segunda reeleição de Michael Bloomberg à prefeitura da cidade, em novembro de 2009, contando também com apoios de peso, como o da Municipal Art Society de Nova York, e do The New York Times.10
Finalmente, também em novembro de 2009, depois de tensa negociação, a prefeitura desembolsou 95,6 milhões de dólares para comprar pouco mais de metade dos terrenos da Thor (28 mil m2), com o objetivo de incentivar a reconstrução de parques de diversão na área, combinados à edificação de conjuntos residenciais para média e baixa renda.
O que se pergunta agora é qual será o sentido real dessa revitalização. Em seu editorial de 3 de fevereiro de 2009, o The New York Times defende a seguinte posição:
A nova Coney Island não deve ser um parque temático. Não uma Six Flags nem uma Disney World. Ela deve ser uma atraente adaptação de Dreamland, Luna Park, e os outros parques exóticos que sempre fizeram Coney Island esplendidamente única, um tipo de irrealidade nova-iorquina.11
Quer dizer, o que se teme, evidentemente, é a pasteurização do lugar como um parque temático domesticado, como um grande mall a céu aberto, o que finalmente esterilizaria Coney Island não pela depredação e o abandono, mas com uma injeção letal em seu próprio “ser”. Se cumpriria, assim, o movimento autofágico da modernidade descrito e analisado por Marshall Berman em Tudo que é sólido desmancha no ar, 12 segundo o qual a necessidade de revolução permanente da modernidade a empurra a devorar suas próprias conquistas anteriores. Por esse caminho, Coney Island seria mãe e vítima de Manhattan (sua cria e algoz), tendo Robert Moses – o grande vilão do livro de Berman – como o primeiro capataz de uma linhagem matricida.
Hoje, a semelhança entre Coney e Manhattan só pode ser reconhecida como uma grande boutade. Aliás, foi devido à ação delirante de um francês que essa longínqua aproximação se deu de forma mais recente e fulgurante – e talvez derradeira –, em agosto de 1974. Refiro-me à performance do equilibrista Philippe Petit, para quem os monólitos alinhados do antigo World Trade Center criavam um pedestal perfeito para a travessia na corda bamba, a 400 metros de altura. E foi o que ele de fato fez, para espanto geral, cruzando por várias vezes, sobre um cabo de aço, a distância de 43 metros entre as torres norte e sul, utilizando apenas os seus pés e uma vara de contrapeso. Como não pensar nessa travessura, bela e minimalista, como um Parachute jump horizontal, solitário e lento? Ou, como não pensar também que Philippe Petit, talvez em homenagem inconsciente à história de Nova York, tenha “coneyislandizado” Manhattan por 45 minutos?
Quando, no recente filme de James Marsh O equilibrista [Man on Wire, 2008], assistimos à amadora e bem-sucedida invasão de Petit e sua turma ao interior das Torres Gêmeas, coroada por sua arriscadíssima travessia no raiar da manhã – talvez no mesmo horário em que os aviões viriam a se chocar contra as torres, 27 anos e um mês depois –, não podemos deixar de pensar no curto-circuito entre a graça (beleza gratuita) e o pragmatismo no mundo atual. Afinal, o que parece enfurecer os policiais e as autoridades nova-iorquinos, naquele caso, não é tanto a afronta causada, mas a profunda incompreensão, por parte deles, da razão gratuita do feito. E, imediatamente, passamos a pensar no quanto o espaço para aquele “divertimento irresponsável”, semelhante ao que teria sido detectado por Freud em 1909, se estreita cada vez mais no mundo pós-Torres Gêmeas – que é também um mundo pré-Torres Gêmeas futuras, as chamadas “torres da liberdade”. Um mundo que se, por um lado, se “disneylandizou” completamente, por outro, não está para muita brincadeira.
GUILHERME WISNIK é arquiteto, historiador e crítico. É autor de Lucio Costa (Cosac Naify, 2001), Caetano Veloso (Publifolha, 2005) e Estado crítico: à deriva nas cidades (Publifolha, 2009). Colaborador do jornal Folha de S. Paulo, é curador do projeto de arte pública Margem, no Itaú Cultural.
HELOISA LUPINACCI, jornalista e bacharel em moda, é editora-assistente do caderno “Link”, do jornal O Estado de S.Paulo.
1. Lawrence Ferlinghetti, A Coney Island of the Mind. New York: New Directions, 1958. A epígrafe do livro diz o seguinte: “O título deste livro foi tirado de Into the Night Life, de Henry Miller. É usado fora do contexto, mas expressa como me senti em relação a esses poemas quando os escrevi – como se eles fossem, reunidos, uma espécie de Coney Island da mente, uma espécie de circo da alma”.
2. Rem Koolhaas, Nova York delirante: um manifesto retroativo para Manhattan. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 90. O texto original de Górki se chama “Tédio”.
3. “…Ah, but remember that the city is a funny place/ Something like a circus or a sewer/ And just remember different people have peculiar tastes”. […Ah, mas lembre que a cidade é um lugar divertido/ Algo como um circo ou um esgoto/ E lembre apenas que pessoas diferentes têm gostos peculiares.] 4. Versos de Lou Reed em “Coney Island Baby”, do disco homônimo (1976).
4. John Strausbaugh, “The Case of Sigmund F. and Coney I.”, The New York Times, 22.07.2009. A exposição referida se chama Dreamland: The Coney Island Amateur Psychoanalytic Society and Its Circle, 1926-1972, criada pela artista multimídia Zoe Bellof.
5. Publicado pela Otis Books em 2006.
6. Rem Koolhaas, op. cit., p.
7. Ver Charles Denson, Coney Island: Lost and Found. Berkeley: Ten Speed Press, 2002, p. 140.
8. Ver Harvey Morris, “Coney Island Awaits Wheel of Fortune’s Turn”, Financial Times, 11.09.2009.
9. Ver Charles V. Bagli, “Seeking Revival, City to Buy Land in Coney Island”, The New York Times, 11.11.2009.
10. Embora discordem de aspectos essenciais do plano, como a pouca área destinada aos parques de diversão e a liberação para a construcão de edifícios altos em frente à estação Stillwell Ave., obstruindo a vista do mar para quem chega. Ver “NYT Weighs in on Coney Plan and Endorses mas Recommendations”, 13.07.2009, no site do Municipal Art Society: http://mas.org/nyt-weighs-in-on-coney-plan-and-endorses-mas-recommendations.
11. “Minding Coney Island”, editorial do The New York Times, 03.02.2009.
12. Marshall Berman, Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.