E.J. disse ao telefone que era preciso contar tudo. Para isso não podia sair do trem. Não fique de conversa fiada, não cruze isso com aquilo, não esconda nada, não pense que alguém se engana.
Mas tudo era confuso, ela disse, com muita coisa misturada, inclusive alguns mortos, não todos, sentados em volta da mesa como numa sessão de gala naquela casa antiga, que não era a verdadeira. Contar como aconteceu era difícil de compreender. Mas decidiu fazer um esforço e voltar ao cenário, esquecendo o risco das balas perdidas naquele labirinto de ruas atrás da Central. Tinha chovido e pela sarjeta corria água suja misturada com lixo, rodeando os pés dos casarões magníficos mas abandonados.
A estação está agora rodeada de grades e de carros da polícia. Faz pena olhar o saguão livre de antigamente atravancado de lojinhas, anúncios que piscam, uma igreja enfiada num canto, catracas pra todo lado. E o antigo bar que a gente frequentava virou um prosaico McDonald’s.
A vantagem é que o poema voltou límpido. É do Polari, que pegou prisão perpétua, mas saiu um dia e fugiu a bordo de um foguete interplanetário estacionado nas matas da Amazônia. Acho que você nunca ouviu falar. O poema dava o ritmo, o trem corria pelas mesmas linhas e trilhos. Era o mesmo grito. Eu dormia e acordava, os versos vinham pontuais como a luz do dia: as quatro latas sustentando a cama suspensa, a marca da tinta do mimeógrafo na pele fina do corpo.
Ela disse que a desconfiança de uma branquela metida com um negro, azul de tão retinto, não podia ser desprezada. Além disso, ele também podia não ser quem dizia que era.
Mas o tempo passou, insistiu, é como enfiar a mão num saco e tirar uma pedra ao azar. Como a história da foto encontrada na revista, depois é que fiz a relação. A ordem é pra não cruzar isso com aquilo, mas não posso evitar. Virei a página e lá estava ela. Hoje é como um relógio quebrado, não tem antes nem depois. Olhei muito. Senti uma aflição, talvez a única coisa que restou do sofrimento. O fotógrafo devia estar na plataforma quando bateu o instantâneo. Parecia um grupo a caminho do trabalho, não me lembro direito, acho que estavam sendo procurados. Seis ou sete amontoados num trem. Eram quase todos negros, mas também pardos e um puxando pra branco. Mas só dois estavam realmente visíveis, porque havia muitas sombras e a luz deslumbrava. Também melancolia, um clima pesado. Nessa época eu já andava no trem. E o que ocupava o centro era igual a Laudelino.
Sei, pelas datas talvez seja impossível, fiquei confusa depois de tanta pergunta. Acho que a impressão veio arrastada pelo poema, escrito a tinta no fino lençol. Na época tivemos mesmo de sumir com um mimeógrafo, estavam passando pente-fino depois que estouraram o aparelho. Fomos descendo a rua Valparaíso mortas de medo, com ele na cabeça. Aí passou um gari com sua carrocinha, ofereceu pra levar o mimeógrafo até a praça Saenz Peña. Fomos atrás dando risadinhas, quem podia desconfiar de tal esconderijo caído do céu para o asfalto da rua? Depois disso passamos pelas veraneios com a tranquilidade de pombas, a maior comunhão de interesses e sentimentos, gracejou Laís.
Acho que achei parecido, daí recortei a foto e guardei, o que deu o maior problema. Quando procurei anos depois, tinha sumido.
Disse que o calor de março era uma chapa ardente, a saudade da água fria do mar entre as coxas entristecia, o suor escorrendo, o matraquear do trem mastigando alto a poeirada do subúrbio, me levando pra Matadouro. Porque o colégio era junto de um abate de animais. O cheiro de carne crua ficava colado na roupa e no cabelo, tinha que lavar a cabeça todos os dias quando chegava em casa. Sonhava com os bichos pacíficos sendo degolados. E também não podia desviar os olhos dos urubus. Aquele voo bonito, pareciam os mesmos de minha infância, flutuando no vento com as asas paradas. Recortados em pano preto. O lugar também era Matadouro, porque do mesmo modo tinha um abate perto do rio. A molecada andava em cima do dique pra espiar. Eu também, embora fechasse os olhos na hora em que os bois entendiam tudo, iam recuando, recuando. O governo mandou fazer o dique por causa das enchentes. Só que foi construído atrás da vila operária. Quando o rio enchia, invadia as casas, estragava tudo. Era um bairro operário.
O colégio também ficava num bairro operário. Às vezes diziam que os meninos eram maltratados em casa, desconfiavam daquela gente bruta, não sei. Mas os delicados também não adiantam nada, não conhecem a gente. Houve o caso de um jogral que a professora queria ensaiar, mas a culpa não foi da mãe. Porque ninguém sabia ler direito na casa do menino. Um vizinho que chegou bêbado disse à mãe que era um bilhete da professora para dar uma surra no filho. Ela deu. O menino chegou todo rebentado na escola, a senhora, hein?, por que fez isso?, a professora desatinou, chorou muito, assoou o nariz com papel higiênico a tarde toda, não pôde trabalhar. Chamou a mãe. A mãe só disse, a senhora mandou, né?
Mas o certo, disse, era que naquela época o diretor entregou um menor de idade aos órgãos de segurança e ele sumiu para sempre. O menino, fico pensando no pai dele que nunca apareceu, talvez fosse órfão, tinha escrito no quadro-negro: morra o embaixador, Brasil para brasileiros. Nunca mais. Pensamos em fazer um abaixo-assinado, afinal era um colégio estadual, mas ninguém topou.
Também era constrangedor que o serviço social arrancasse os dentes deles. Diziam que não havia verbas pro tratamento. Nas aulas, aquelas gengivas rosadas ou castanhas, ou cor de fumaça, viravam um alvo fácil. Os que tinham dentes caçoavam dos desdentados. Era muito chato. E os desdentados, quando tinham dentadura, colocavam a dentadura na ponta do lápis, não sei como conseguiam, acho que amarravam, e faziam careta para os que tinham dentes, fingindo que não ligavam.
Mas não era só isso. Havia microfones nas salas levando ao gabinete do diretor. Ele queria saber, era preciso fiscalizar o que era ensinado àquela gentinha. Aqueles meninos só iam crescer pra dar trabalho, inda mais se ficassem espertos. Com muito orgulho, dizia em voz alta que tinha recebido ordens expressas das autoridades. Fiscalizar. Quer saber mais? – a espuma do cuspe crescia no canto da boca como uma flor desabrochando –, o Brasil está, quem foi que disse isso?, hein?, o Brasil está a um passo do abismo.
Sei que aquela situação marcava o ritmo do poema, povoava meus sonhos, seguia o trem, o chocalhar das correntes nas curvas, as sandálias rebentadas e blusas sem botão quando eu saltava na gare, os gritos dos meninos vendedores de amendoim. Manda uma franguinha aqui pro meu balaio, imploravam alguns, antecipando a bolina exigida pelo aperto e pelo balanço dos vagões. As folhas soltas dos meus livros voavam contra as paredes da estação enquanto o trem sumia atrás do barranco. “Incha, incha”, gritavam os homens em coro, se jogando de costas contra as portas nas paradas do percurso. Não podia ser diferente, porque não entra uma pessoa só, entram 100, gente é feito água.
Ela disse que qualquer um podia notar o cansaço deles. Não tinha qualquer ambiguidade. Não era, por exemplo, o meu cansaço por mais cansada que eu estivesse. Era um estado de cansaço, uma condição, como ser criança ou estar doente.
Na parada de Bangu, o calor soprava o céu, que tremia feito um pano. Ele entrou e ficou encostado na porta rebentada. O vento agitava a camisa azul, ele mesmo azul cor de carvão, retinto, opaco, a luz batia e escorria, brilhava nos olhos. O homem da foto. Mas seria o homem da foto? Qualquer repetição faz cismar. Mas a verdade é que se eu não tivesse conservado a imagem na memória, não ficaria assim. Não adianta perguntar pelos motivos. Eu sei do que se trata. Mas se você perguntar do que se trata, não vou saber explicar.
Quando desci em Matadouro ele se aproximou, com os sapatos rangendo na areia grossa, e, contra todas as expectativas, me entregou os documentos. Disse que era para eu ver que se tratava de um trabalhador. Seria verdade? Sentia uma zoeira na cabeça. Pensava no mimeógrafo dentro da carrocinha, mas aquele homem era outro, não era? Tinha uma pedra pesada no meu peito, talvez fosse uma cilada, eu não podia arriscar. Mas li seu nome, Laudelino Santana. A calma de um nome tão antigo, quem teria escolhido? Li também que era gari, quem sabe um sinal de salvação? Mesmo assim o chão insistia em fugir, o trem a gritar, eu não podia esquecer aqueles gritos, esses permanecem, vão permanecer para sempre, disse Polari. Pra disfarçar, devolvi os papéis. Será que somos parentes? Seu sobrenome é igual ao meu, só que escrito diferente.
Laudelino não ligou. O negócio é o seguinte, disse, gostei muito de você e acho que fui correspondido. Não sei como arranjei coragem, cada vez mais suada, falei tão baixo, tive que repetir. É, você é mesmo muito atraente. Então pronto, ele disse. Então pronto não, tenho que trabalhar, as crianças estão me esperando.
Marcaram um encontro no bar da Central, que hoje é aquele McDonald’s. Laudelino puxou a cadeira para ela sentar e pediu à garçonete: leite para a moça. Para mim, uma Brahma bem gelada.
Teve vergonha de demonstrar a humilhação depois de tanta panfletagem defendendo igualdades, olhou com despeito o copo dele, embaçado pela cerveja dourada e branca, as bolinhas subindo soltas, fugindo da gaiola para o céu azul. Olhei tanto, sem parar, e nem assim ele compreendeu. Sosseguei um pouco, podia ser uma homenagem. Ora, por que homenagem? Tomei leite a tarde toda, isso foi bem chato.
Mudei de assunto: como é que eu faço para descer do trem às 6 horas da tarde na estação da Central? Foi a vez da surpresa dele. Você é professora e não sabe descer do trem? Expliquei que eu ficava diante da porta, o povaréu entrava e eu voltava o caminho todo.
Como acontece nos romances, a um pedido de ajuda o cavalheiro atende: gentilmente disse para eu ficar não em frente, mas encostada rente à porta; que deixasse o povo entrar; quando o vagão estivesse cheio, que segurasse no cinto de um homem para ser rebocada para a gare. Eu disse, ele vai pensar que quero roubar. Não, disse Laudelino, ele só pensa em saltar do trem. Sozinha você não vai ter força. Hoje pode segurar no meu cinto.
Isso resolveu em parte, mas não tudo. O tempo passava, as tardes cresciam e se dobravam, ficavam imprestáveis, não adiantava ele insistir. Por trás da beleza vinha a desconfiança, o pessoal do trem também olhava com desprezo, principalmente algumas mulheres mortas de cansaço, viam os livros que ele passou a carregar, ela não queria de jeito nenhum, os livros não eram pesados, com certeza pensavam que ela não passava de uma branca querendo faturar um negro. E ele? Querendo também faturar uma branca com lucros calculados? Ele disse, não, tem muitas outras razões, mas pra você entender só num tremendo particular.
Havia um ar de súplica nos copos brancos e amarelos, lado a lado sobre a mesa, no corpo de veludo ardendo no calor. Seriam assim tão lindas as coisas impossíveis? Mas não queria errar, se prevenia com todas as forças contra o perigo do erro. Então se esquivava e dizia, não te conheço. E se ele respondia, você só me conhece me conhecendo, reparava que a tardinha baixava de asas abertas e começava imediatamente a correr para pegar o trem. Os desdentados esperavam, a flor de cuspe desabrochava, o último apito ainda boiava no ar.
Não tenho certeza do momento, os momentos não são claros, mas disse finalmente que não, era preciso acabar com aquela lenga-lenga, e além disso também disse que não queria leite, que preferia as taças cristalinas de água prata (como se houvesse taças). A essa altura o dia já parecia uma montanha de sucata.
Uma última dúvida antes que o vagão derradeiro desaparecesse atrás do barranco: por que será que gari bebe tanto? Ele disse, é o desprezo, o cheiro do lixo, ninguém aguenta, lavando não sai, é preciso esquecer.
É preciso esquecer, repeti, tentando decorar o compasso.
Na relação com o mundo, afirmava o poema, as rimas são sempre interiores. Por isso andamos todos perdidos.
Eu acho que ele já morreu.