Quanto ao amor, bem, a essa altura não deve ser mistério para ninguém que você se apaixonará por Elika. Casos de amor sempre foram comuns nos videogames, embora predominem as manifestações de amor pudico e platônico (a série Zelda, da Nintendo, por exemplo, sempre me irritou um pouco por deixar as paixonites de Link com conclusões insatisfatórias), com poucas ocorrências de paixão consumada e raríssimos episódios de sexo casual (o formidável No More Heroes, para Wii, é uma exceção recente). Mais comuns ainda, quem sabe, são os casos de amor platônico do jogador pelo personagem. Eu mesmo não tenho vergonha nenhuma de assumir que me apaixonei de leve pela Jade de Beyond Good & Evil, paixão que assomou após a conclusão do jogo, uma vez que antes disso eu a estava controlando, o que confundia as coisas. Não me importaria nem um pouco de encontrar a Sylvia Christel de No More Heroes a sós, também. Mas divago. O fato é que o amor, assim como a morte, tem assumido novas formas nos jogos dos últimos dez anos. Alguns criadores têm procurado fazer que a mecânica de seus jogos leve o jogador a desenvolver, no nível procedimental, um apego análogo ao que seu avatar tem pela amada no nível da história. Quando amor e morte são combinados entre si de maneira inteligente nas dimensões interdependentes do enredo e da narrativa procedimental, o resultado pode ser uma experiência emocional inesquecível.
http://www.youtube.com/watch?v=NBFzintIHMY
Isso nos traz ao incontornável Shadow of the Colossus, lançado em 2005 e considerado um marco dos chamados games de arte. Desenvolvido pelo Team Ico, do venerado Fumito Ueda, Colossus trata da aventura de Wander, um cavaleiro solitário que traz o corpo de sua falecida amada a uma terra distante onde reside uma divindade capaz de trazer os mortos de volta à vida. A divindade, manifestando-se numa voz cavernosa que surge do alto do templo, barganha com o herói: se ele matar os 16 colossos que vivem na região, a garota será ressuscitada. Não entrarei em detalhes sobre a trama do jogo porque a considero sagrada – me basta a culpa de entregar o final de Prince of Persia, o que estou prestes a fazer. Minha recomendação é que você obtenha acesso a um PlayStation2 e jogue Shadow of the Colossus pelo menos uma vez na vida.
Só preciso mencionar que o jogo constrói laços afetivos potentes entre o jogador e dois personagens: a donzela morta e Agro, o cavalo que é o único companheiro de Wander em toda a sua longa exploração dos belos e vastos cenários da aventura. Nos dois casos, o apego afetivo brota de elementos de imersão e agência primorosos e do próprio ato de jogar. A demorada introdução do jogo mostra Agro carregando Wander e sua carga indistinguível por caminhos perigosos que cruzam cenários majestosos e descomunais. Fica claro que o herói enfrentou uma jornada longa e duríssima para chegar a esse templo, e quando ele desmonta o cavalo, posiciona a carga no altar e descobrimos tratar-se de uma garota morta, o amor do personagem por ela imprime uma marca que o jogador carregará por todos os combates contra os colossos. Conforme se percebe que essas gigantescas criaturas – que exigem altas doses de exploração para ser encontradas e de estratégia e habilidade para ser derrotadas — são pacíficas e indiferentes, e que sua agressividade é despertada apenas por nossa intervenção egoísta, a força da paixão de Wander impregna o jogador de maneira procedimental.17 Ter de matar os colossos contra a nossa vontade, um a um, faz que o sentimento do personagem pela garota morta deixe paulatinamente de ser o bode expiatório de nossos atos para tornar-se o sentimento do jogador. Para muitos, essa dinâmica suscita questões morais: tenho direito de matar essas criaturas belas e inocentes em nome do meu amor? No instante em que um pensamento como esse passa pela cabeça de quem joga, o sentimento do personagem, que é um dado do enredo, apoderou-se também do jogador.
http://www.youtube.com/watch?v=1Y1_lQ-go2o
No caso do cavalo, a relação de amizade surge exclusivamente da esfera procedimental do jogo. Ele é nosso único companheiro em toda a jornada e o único ser vivo que vemos, com a exceção de alguns pássaros e lagartos. Agro nos auxilia nas batalhas e nos segue de longe, com o olhar, quando nos afastamos dele. Relincha e fica agitado quando estamos em perigo e vem correndo até nós quando o chamamos pelo nome por meio de um comando específico do joystick. Outro comando nos permite afagar o pescoço do animal. Percorremos extensões enormes de um cenário desabitado sobre o lombo do fiel companheiro, controlando-o com comandos que replicam várias sutilezas da equitação real. A construção gradual e subterrânea desse laço afetivo entre o cavalo e o jogador será explorada dramaticamente num episódio- -chave da trama, perto do final. Eu deveria contar o que acontece, para fins de argumentação, mas não vou. A força desse momento narrativo é comparável a coisas que a maioria de nós espera encontrar apenas na literatura ou no cinema. Eu a colocaria no mesmo patamar de um episódio que ocorre lá pela página 125 do romance A travessia, de Cormac McCarthy, envolvendo o protagonista Billy e uma loba. É a evocação repentina, trágica e devastadora de um afeto que não sabíamos existir até aquele instante.
De qualquer modo, Shadow of the Colossus é uma prova contundente de como a articulação entre enredo e narrativa procedimental pode criar grande impacto emocional a partir de questões de amor e morte. Prince of Persia, lançado mais de três anos depois, deve muito de suas qualidades aos caminhos abertos por esse antecessor. A influência escancarada está nos cenários belos, vastos e desabitados; na importância da exploração imersiva e da convivência dos protagonistas no plano procedimental para estabelecer um afeto que evolui ao mesmo tempo no enredo e nos sentimentos do jogador; no emprego, com finalidade dramática, de mudanças de perspectiva e transformações súbitas das primitivas de participação ou dos métodos de controle dos avatares (por exemplo, quando Prince of Persia nos limita a carregar a enfraquecida Elika no colo durante um trecho da introdução, conforme descrito no início deste ensaio) e, por fim, no uso da morte – e do custo de revertê-la – como impulso da narrativa.
Pingback: De como passei a me aventurar pelos jogos indie « Hadouken
Pingback: AntiCast 42 – Entrevista com Daniel Galera | AntiCast
Pingback: DANIEL GALERA – Literatura Brasileira do Século XXI
Pingback: Literatura Brasileira do Século XXI