Ali por 2004 parecia fazer todo o sentido debater a vida e a morte da canção. Em entrevista à Folha de S. Paulo em 29 de agosto, José Ramos Tinhorão decretou: “A canção acabou”. E explicou: “Acabou essa canção que nasce contemporânea do individualismo burguês, feita para você cantar e outras pes­soas ouvirem sentindo-se representadas na letra”. Em 26 de dezembro do mesmo ano, também na Folha de S. Paulo, Chico Buarque disse coisa parecida, mas já vinculando o problema explicitamente ao Brasil: “Como a ópera, a música lírica, foi um fenômeno do século 19, talvez a canção, tal como a conhecemos, seja um fenômeno do século 20. No Brasil, isso é nítido.” Sintomaticamente, Chico, como antes Tinhorão, também vinculou o declínio da canção à ascensão do rap: “Quando você vê um fenômeno como o rap, isso é de certa forma uma negação da canção tal como a conhecemos. Tal­vez seja o sinal mais evidente de que a canção já foi, passou.” Desde então, pode-se dizer que o rap já não é mais aquele. Mas o que importa é que não se tratava de qualquer debate. Se a canção perdeu seu lastro, é toda a história da música brasileira que passa a fazer parte do passado e tem pouco ou nada a dizer ao presente. Em tradução mais ou menos literal, aquele país que então parecia não encontrar seu rumo uma vez mais recorria à música para pensar a própria sorte.

Pouco tempo depois, quando a certeza do futuro radiante do país se estabeleceu de vez, sumiram os debates e as dúvidas existenciais. Depois da confirmação dada pela medalha econômica do “grau de investimento”, em abril de 2008, nem se sabe bem o que haveria por debater, afora uma ou outra correção meramente técnica. E a MPB, cuja existência com sentido e densidade estava tão ameaçada, dá a impressão de ter voltado a afirmar sem mais sua exis­tência pelo seu ser. E o debate sobre o estatuto da canção simplesmente evaporou.

O documentário Uma noite em 1967 ilustra isso muito bem. Mal se fica sabendo que eram tempos de ditadura militar. E, pela primeira vez em mais de 40 anos, a lição é a de que todo aquele tumulto enfim passou. Toda a energia dos festivais ficou naquela noite. Uma noite. Toda a cons­trução do filme, todos os depoimentos fazem questão de soldar um dos mais emblemáticos momentos culturais brasileiros a um ano que, por fim, terminou. E, qualquer que seja a intenção, nenhum dos envolvidos acha lá grande coisa o que fez e o que aconteceu naquela noite.

Se é assim para a caixa de ressonância histórica que foram os festivais, que dizer de um obscuro debate, reali­zado no ano precedente de 1966, promovido pela revista Civilização Brasileira, que serve de empurrão para a con­versa que serrote propõe aqui? A resposta não é simples. Também porque é mais um caso da famosa prova da exis­tência do pudim: só mesmo comendo.

Mas que, de saída, tem a vantagem do abismo histórico. Em 1966, havia algo de obviamente errado. Um golpe de Estado, uma ditadura. Vista dessa maneira, a moldura do bloqueio mental de hoje fica bem mais aparente: a dificul­dade de encontrar o que há de obviamente errado. Não porque esteja ausente. Mas porque está difícil enxergar onde estão as energias que permitem colocar o obviamente errado à vista de todo mundo. Porque o obviamente errado só ganha cara quando o bloco ganha a rua. Quando, de algum jeito, vira movimento.

Mais ainda, o obviamente errado apareceu no debate de 1966 de maneira instigante porque juntou coisas que antes andavam separadas: política e indústria cultural, música e mercado. Àquela altura, o movimento musical mais bem sacado do pós-guerra, a bossa-nova, era dado por fogo de palha já devidamente consumido. Bossa-nova que nunca viu, aliás, qualquer problema na sua relação com a indústria fonográfica – a não ser no dado biográfico-social de que ser “músico profis­sional” não era de bom-tom na classe média do eixo Rio-São Paulo dos anos 1950. Já os movimentos musicais do início dos 1960, ao contrário, tinham uma pauta abertamente adversária da indústria, só enxergavam vida musi­cal autêntica fora do mercado, em alternativa a ele. Só no elemento da polí­tica encontravam arte autêntica. O interessante e artisticamente relevante é que a busca de autenticidade, a busca das raízes da MPB, vinha junto com o material musical mais avançado de que se dispunha.

Difícil dizer no que poderia ter dado esse projeto de substituir o mercado pela política como enquadramento da autenticidade artística. Mas o fato é que as tropas do general Kruel desmontaram o experimento. E, dois anos depois do golpe, já tinha ficado claro que não se tratava de quartelada de ocasião, que os milicos não estavam de passagem. De modo que os termos do problema se alteraram radicalmente. Ou o experimento se entocava em células de guerri­lha musical, ou os guerrilheiros aceitavam disputar o terreno do mercado.

Claro estava que o padrão da bossa-nova – comparado, por exemplo, ao gigantesco bloco histórico que o precedeu, o da era do rádio – tinha uma ingenuidade artesanal que, em vista dos acontecimentos, só poderia ser retomada tal e qual como cinismo. Mas mesmo quem não queria se entocar nas células de resistência só topava a disputa aberta na indústria cultural se enxergasse ali margem para outro tipo de guerrilha. Ou seja, se encontrasse na indústria cultural espaço para a disputa política, naquele sentido amplo e largo do termo que é próprio de um movimento artístico que se preze.

A hora histórica não poderia ter sido mais propícia. A música era de longe a forma artística dominante no país. E muitos dos principais progra­mas da televisão nascente eram programas musicais. Com a televisão e a progressiva integração entre os diferentes meios, a indústria cultural bra­sileira estava em um momento de transição para um modelo que só viria a se estabilizar ao longo da década de 1970. As brechas para a intervenção tinham potencial para se tornar grandes avenidas.

O que havia de ilusório nisso veio a cavalo no final de 1968 e deitou con­sequências até muito depois. Mas, ao mesmo tempo, talvez o que havia de ilusório nesse aproveitamento de brechas tenha tido sua parte na própria reação que significou o At-5. Seja como for, em 1966 a questão ainda estava em aberto. E é essa abertura que interessa aqui.

Para quem lê hoje os textos sobre música publicados pela revista Civi­lização Brasileira na década de 1960, as intervenções parecem desconexas, não parecem ser realmente diálogos em muitos momentos. E é mesmo difí­cil reconstruir todo o pano de fundo político e social presente nas diferentes falas, de modo a reconhecer os pontos da teia cultural em que se encontra cada um dos participantes. Grande parte do muito que está implícito na conversa só poderia ser mesmo recuperado por uma exegese histórica.

Mas é possível olhar a conversa do ponto de vista do que aconteceu depois dela. Principalmente no período de pouco mais de dois anos que separa o debate da decretação do AI-5. Olhada assim, a conversa desconexa ganha ares de programa de intervenção. E estende seus efeitos para muito além daquele período. É com esses olhos que podemos ler duas decisivas intervenções nesse debate de 1966, a de Flávio Macedo Soares e a de José Carlos Capinam.

Flávio Macedo Soares abriu a discussão apresentando o diagnóstico do momento. Comparou a situação anterior ao golpe com o momento em que se dava o debate. Note-se que, ao mencionar os novos nomes da MPB, cita exa­tamente os quatro primeiros colocados no Festival da MPB da Rede Record de Televisão do ano seguinte de 1967, o que mostra o quanto sua interven­ção tinha gume para o presente. Ele se exprimiu nos seguintes termos:

Realmente, dentro da conjuntura que havia antes e de certas linhas que já se tinham denunciado na bossa-nova, cresceu toda uma nova geração de músicos, como Caetano Veloso (aqui presente), Gilberto Gil, Chico Buarque, Edu Lobo etc. Essa geração, se bem que ampliando uma área que já fora explorada antes pela bossa-nova mais antiga, não conservou nesse período (dois anos) de crise certas características que reputo essenciais. Uma delas era a visão da cultura não como manifestação isolada, mas como parte de um todo uno, no qual a música popu­lar, a poesia, a literatura, o cinema e o teatro estavam entrosados. Podia-se dizer que havia, através de certas instituições como o ISEB, o cpc, uma tentativa séria – embora pequena ainda, no sentido de fazer uma universidade brasileira (univer­sidade no sentido real da palavra) na qual houvesse um entrosamento tanto no plano ideológico como no prático, com apoio de parte a parte. Essa tentativa se perdeu. Atualmente, os músicos da boa música popular brasileira estão por uma série de razões agindo e pesquisando individualmente.

Não se tratava então de diagnóstico isolado. Flávio Macedo Soares como que resumiu uma análise em grande medida coletiva e compartilhada. E, de acordo com essa análise, comparada ao projeto pré-1964, a situação de 1966 parecia ser de puro e simples impasse. Nessa conversa de 1966, quem pro­pôs uma saída para o impasse e colocou a discussão em um novo patamar foi Capinam. Referindo-se ao tema geral do debate, que era o de descortinar linhas de ação coletiva dentro da MPB, Capinam falou explicitamente em um programa (de ação) no seguinte contexto:

Desde que se discutem os caminhos para nossa música popular, não vejo possibili­dade de fazer um programa, criar valores e uma saída para ela sem considerar um dado fundamental: o mercado. Para muita gente não descubro nada. A razão maior dessa afirmativa é, entretanto, o comportamento pré-capitalista da esquerda brasi­leira, que resiste à industrialização e vê o mercado como o grande sacrifício de sua arte.

E completou:

Preservar a música dos riscos do mercado é uma posição nega­tiva de acanhamento que terá como efeito o contínuo afas­tamento desta música das áreas onde deveria estar agora, e influindo, trocando recursos, informando, alimentando a nossa juventude com aquilo que ela necessita e em potencial a nossa música possui nas raízes: calor, participação e movimento.

Visto com olhos dos festivais da música popular dos dois anos seguintes, por exemplo, isso soa mesmo como um programa. Como o programa que foi efetivamente levado adiante, de diversas maneiras, por diferentes razões, por quem participava, direta ou indiretamente, dessa conversa. E que se cristalizou em diferentes formas de levar adiante o projeto de uma MPB como movimento. Porque o programa de ação que se seguiu dos debates e das intervenções con­cretas no campo da indústria cultural acabou por se tornar padrão para qualquer intervenção musical que não se con­tente simplesmente em existir segundo as regras estabele­cidas, mas que queira fazer parte de algo como um movi­mento. Foi assim que o padrão reconhecido de intervenção artística se dividiu oficialmente em três táticas de guerri­lha que iriam se prolongar até a década de 1980: dentro da indústria cultural, na sua periferia e à sua margem.

Mas, como era de esperar, quem se pôs dentro, na peri­feria ou à margem a partir da década de 1970 estava diante de algo novo. O próprio Capinam, no Iv Festival Internacio­nal da Canção, de 1969, realizado pela então nascente Rede Globo de Televisão, foi proibido pela produção de levar adiante a performance que tinha planejado com o parceiro Jards Macalé. Na defesa da música “Gotham City”, a dupla pretendia soltar morcegos no momento em que os músicos entrassem no palco, ao mesmo tempo que Macalé gritaria (como na letra da própria música): “Cuidado! Há um mor­cego na porta principal.” Uma paródia à revoada de sabiás do festival do ano anterior, no momento em que era apre­sentada a música vencedora, de Tom Jobim e Chico Buarque. Os tempos já eram outros. Não apenas a escalada da violên­cia ditatorial, mas, ao mesmo tempo, a indústria cultural que se consolidava, o mercado cultural que se integrava. As táticas de guerrilha que se estabeleceram na década de 1960 e que se consolidaram ao longo da década seguinte tinham que se haver com essas duas estruturas simultaneamente.

Não é de espantar, portanto, que as vertentes guerrilhei­ras estivessem conectadas e se alimentassem mutuamente, ainda que seguissem programas distintos. Essa análise per­mite entender a própria identidade artística de muita coisa da época: a identidade de “ser marginal”, por exemplo, cuja marca de nascença talvez esteja ali pelos anos de 1967, 1968. Não só Caetano Veloso tomou de Hélio Oiticica o lema da Tropicália. Na temporada que fez com Gilberto Gil e com os Mutantes na boate Sucata, em 1968 –— suspensa pela polícia –, usou como cenário a bandeira de guerra que Oiticica havia apresentado no ano anterior: “Seja marginal, seja herói”.

Quando se fala em cinema ou em poesia marginal, a refe­rência não é apenas à ditadura, mas a uma indústria cultu­ral que se consolida rapidamente. Só que, ao contrário do cinema ou da literatura, a música tinha já um lastro indus­trial respeitável. O cinema ou a literatura eram marginais na década de 1970 em um sentido que não dizia respeito à música: não tinham sido ainda objeto de integração por parte da própria indústria cultural brasileira.

No caso da música, aqueles personagens do festival de 1967 continuaram seus programas-movimentos dentro da indústria. Foi assim com Caetano, Chico, Gil, Edu Lobo, com os Mutantes, com tantos outros. Mas os que se posta­ram na periferia ou à margem também foram muitos. Tal­vez possam ser representados por alguns casos emblemá­ticos. O primeiro deles sintetizado por um músico que foi, ele sozinho, um movimento: Jards Macalé. Ao contrário do tropicalismo, ou de Chico Buarque, ou do Clube da Esquina, Macalé representou o padrão de intervenção próprio da periferia da indústria cultural.

Macalé não estava fora da indústria. Ao mesmo tempo não conseguia se manter dentro dela. Enquanto os avanços tecnológicos caminhavam para a busca de uma sonoridade cada vez mais “limpa” (a reação punk de meados dos 1970 tinha também esse óbvio alvo técnico), Macalé insistia em fazer um som “sujo”. Não conseguia assinar um contrato com uma gravadora sem romper em seguida.

Caso muito diferente foi o dos que se colocaram à margem da indústria, em alternativa a ela. Em continuidade com o movimento do início dos 1960, os chamados “independentes” não queriam se submeter à lógica das gravadoras nem da indústria cultural de maneira mais ampla. Tinham a ambição de manter um padrão técnico equiva­lente ao da indústria mais avançada do período. Mas consideravam mais grave ceder à lógica da indústria do que estar um degrau abaixo na escala tecnoló­gica. E conseguiram encontrar dessa maneira o seu público.

Talvez o apogeu e o início do ocaso desse movimento estejam no segundo caso emblemático escolhido aqui. A experiência da produção independente foi a base material e de público para o desenvolvimento, em fins dos 1970, de um grupo que ficou conhecido como Lira Paulistana. Já a referência a Mário de Andrade no nome mostra que o grupo reunido em torno do porão mal ventilado que era o Teatro Lira Paulistana não estava para brincadeira. Muitos dos que são considerados membros desse grupo recusam a deno­minação, seja porque nunca se apresentaram naquele teatro, seja porque não se consideram integrantes de movimento nenhum. De qualquer forma, ao Lira estão associados nomes como Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, grupo Rumo, Língua de Trapo e Premeditando o Breque, Eliete Negreiros, Vânia Bastos, Tetê Espíndola. Nesse núcleo, duas das três táticas de guerrilha que vinham dos anos 1960 foram tentadas ao mesmo tempo.

Ainda que não tenha sido levada adiante por ninguém do grupo, a guer­rilha na periferia da indústria cultural teve grande influência na produção feita ali. Basta pensar no vínculo entre Macalé e Itamar Assumpção, por exemplo, que é biográfica e musicalmente saliente. Ainda que Itamar não se colocasse mais na periferia, mas à margem da indústria, dentro do movi­mento dos independentes. Aliás, parece difícil encontrar um caso como o de Macalé a partir da década de 1980. A impressão que fica é que, das três táticas de guerrilha, sobraram mesmo apenas duas: o combate a partir de dentro e o combate à margem. Seja como for, o interessante da experiência do Lira foi que muitos tentaram ao mesmo tempo seguir tanto a experiência do movimento dos independentes como o padrão fixado na década de 1960 de disputar o terreno da própria indústria.

A vertente independente foi lentamente sufocada. Não pelo avanço técnico em sentido estrito. Pelo contrário, a montagem dos estúdios tinha ficado mais acessível, assim como o aluguel. A mudança se deu em duas outras dimensões. Em primeiro lugar, um processo de oligopolização da divulgação e da distribuição pelas grandes gravadoras, criando barreiras à venda e gerando custos de produção pouco acessíveis aos independentes. Em segundo lugar, a verdadeira revolução na percepção que foi o videoclipe, cujo eclipse só viria em fins dos anos 1990.

Gravar um videoclipe para lançar um novo álbum passou a ser obrigató­rio para alcançar o público, tanto em termos de divulgação como de fruição. A grande era da MTV transformou o clipe em uma nova etapa necessária da produção musical. E os clipes, por sua vez, passaram a se sofisticar de tal maneira que se tornaram peças cinematográficas e publicitárias de alto custo. Com isso, ao longo da década de 1980, “independente” passou pro­gressivamente a ser sinônimo de má qualidade. A chegada do CD foi a pá de cal nesse processo. Uma situação que só viria a se alterar significativamente com os novos saltos tecnológicos dos anos 1990, com o MP3 e de maneira mais ampla com a internet, processo que massificou novamente a produção musical. E que indica, por sua vez, que as condições de fruição do público se alteraram substancialmente e, sobretudo, diversificaram-se.

Parece ter sido a percepção dessa mudança dos padrões de produção e de consumo musical na década de 1980 que fez muitos integrantes do Lira Paulistana buscarem também retomar o outro padrão de guerrilha da década de 1960, o de disputar a partir de dentro do terreno da própria indústria. Mas, nesse momento, eram as brechas e aberturas que já não existiam da mesma maneira.

Coisa que os Titãs, por exemplo, perceberam desde o início. Nunca tive­ram outro modelo que não o de disputar o mercado. A exigência performá­tica da estética do videoclipe era o elemento do grupo. Nisso reatavam com a estética do tropicalismo e de Lennie Dale. Mas já com um diagnóstico dife­rente. Não mais uma indústria cultural que está se tornando sistema e, por isso, está cheia de brechas. Mas uma indústria cultural já consolidada como sistema, e que, no entanto, por sua alta complexidade, produz brechas de novo tipo. Não mais aquelas próprias a um movimento, mas agora afeitas aos grupos. Só episodicamente os grupos estabelecem redes que se proje­tam como quase movimentos. Como, aliás, já era o caso dos Estados Unidos e da Inglaterra desde a década de 1960.

O padrão de intervenção a partir de grupos durou bem umas duas déca­das. Rótulos como “o rock brasileiro dos 19 8 0” valem apenas como isso mesmo, como rótulos, não como movimento. Além disso, a partir dos 1990, o padrão dos grupos passa a contar também com a novidade dos “coletivos” – prova­velmente pensados nos moldes dos coletivos de artistas plásticos da década de 1980. Os anos 1990 são também marcados por um novo retorno ao samba, que submerge e ressurge periodicamente – aspecto, aliás, já ressaltado por José Ramos Tinhorão em sua entrevista à revista Civilização Brasileira de julho de 1965, importante referência para o debate do ano seguinte na mesma revista.

O padrão de intervenção dos grupos entrou em crise com a crise da pró­pria indústria – que hoje raspa o tacho dos catálogos e garante sobrevida a grupos como os Rolling Stones, mas que sabe bem que sua hora chegou. É uma crise que atinge a própria lógica sistêmica da indústria cultural, que vai ter de se reconfigurar de maneira radical. E é exatamente aqui que os deba­tes de meados da década de 1960 deixam de fazer parte do passado para falar ao presente. Só que, para voltar ao início, a primeira impressão pode ser a de que não há ninguém para ouvir.

E, se faz sentido a análise, essa surdez tem também a ver com a falta de conversa organizada sobre a situação atual. Com todas as suas ambiguidades e mal-entendidos, talvez a 29a Bie­nal de São Paulo seja um sintoma de novos ventos, prenúncio de futuras confusões produtivas. Ao organizar a exposição em torno da articulação de arte e política, a curadoria trouxe para o primeiro plano muito do imbróglio de hoje. O primeiro curto- -circuito foi o da identificação entre política e engajamento, em que a própria obra é sacrificada no altar do engajamento polí­tico. Uma identificação que se radicalizou a ponto de igualar política e engajamento eleitoral, como foi o caso da obra do argentino Roberto Jacoby, coberta por orientação do Ministé­rio Público Federal, por supostamente ferir o código eleitoral ao fazer propaganda da candidatura de Dilma Rousseff.

No sentido contrário, a obra de Nuno Ramos Bandeira branca representa talvez a maneira mais refletida e viva de reivindicar o elo entre arte e política presente na arte bra­sileira dos anos 1960. Sinal dos tempos, o próprio artista classifica sua obra como uma “espécie de antipenetrável”, em tensão com os Penetráveis de Hélio Oiticica. A irritação causada custou a permanência da própria obra na Bienal. Foram retirados os três urubus vivos (não foram morcegos desta vez) que a compunham e desligados os três aparelhos de som que reproduziam as canções (!) “Bandeira branca”, “Boi da cara preta” e “Carcará”. Independentemente de uma discussão séria em torno de uma ética animal, o fato é que a obra foi desmontada por força de uma identificação limi­tada de “cultura” e “valores”. Por razões outras, claudica aqui também o vínculo entre política e cultura, as duas amputadas das dimensões e dos sentidos capazes de proje­tar movimentos para além do convencional.

Não há dúvida de que o senso limitado de política cos­tuma coincidir com obras de arte igualmente limitadas. Mas o importante é registrar que o problema voltou. Com as confu­sões que lhe são próprias e inevitáveis, é certo, principalmente depois de um longo período de despolitização. E, ainda mais significativo, em um movimento que pode se colocar como a contracorrente de uma estranha brasilidade triunfante.

É nesse ambiente que, com a cautela devida, parece pos­sível dizer que modelos de intervenção adequados à situa­ção atual estejam surgindo na música. Talvez não estejam aparecendo com clareza. Talvez estejam obscurecidos pelo peso ainda grande dos modelos de intervenção já caducos, mas que seguem ativos. Em uma indústria cultural em des­moronamento e reconfiguração, os três padrões de inter­venção gestados nas décadas de 1960 e 1970 só podem ser imitados hoje como farsa. As ideias de marginalidade, de independência ou de disputa da indústria desde dentro sim­plesmente perderam a base material que lhes dava sentido. Tornam-se farsescas na exata medida em que a configuração presente da indústria cultural caducou.

Que o digam os variados maneirismos da MPB atual, que já não têm mais nada a ver com o encontro da técnica mais avançada com uma tradição reinventada, mas apenas se esforçam para dar uma embalagem transada para a mesmice sob o manto da suposta “autenticidade”. Vale lembrar que, ao longo do século 20, a música popular urbana brasileira se constituiu na passagem do étnico ao nacional, estreito por onde transitaram grandes mestres como Sinhô, Donga, Pixinguinha, Noel Rosa, Ary Barroso, Tom Jobim e muitos outros. Nas últimas décadas, no registro do “global que quer ser local”, o rumo é outro: aceitação direta e aberta das impo­sições do mercado e o conformismo a rótulos pífios como o da teologia das “raízes” e da “diversidade”, que se traduzem em rodas de samba, choros, maracatus, modas, toadas, seres­tas, entre outros subgêneros, quase todos recriados a partir de um passado idilizado e monumentalizado.

A pergunta passa a ser, então: quais são os possíveis padrões de intervenção que estão se formando, aqueles com potencial de movimento, que não simplesmente se con­formam às condições de uma indústria cultural em desin­tegração e reconfiguração? E em que medida a realidade da internet, por exemplo, impõe de tal maneira o esforço colaborativo que a articulação em movimento se torna uma necessidade vital para a música não conformista?

Por caminhos mais que tortos e íngremes, é possível que o momento cheio de brechas de 1966 esteja dando as caras de novo. Momento em que um debate pode bem se servir da fresta para olhar mais longe. E, quem sabe, abrir outras e novas avenidas.