As imagens são um pouco confusas, pois as figuras pintadas sobre o vidro se sobrepõem ao rosto e aos gestos de José Pancetti. Nas folhas de contato guarda­das por Marcel Gautherot (hoje no acervo do Instituto Moreira Salles) não há registro sobre a data do material. É muito provável que as fotos sejam de 1956 ou 1957, sendo que a maior parte das obras de Pancetti sobre a lagoa do Abaeté, Salvador, foi feita nesses anos, às vésperas de sua morte, em fevereiro de 1958. Também não se sabe o propósito das imagens, se ilustraram alguma matéria de imprensa, o que é provável, ou se o ensaio foi iniciativa do fotógrafo ou do pintor. O certo é que Gautherot preparou cuidadosamente a cena, ciente de que, ao retratar o artista trabalhando sobre a superfície transparente, criaria um plano de interseção entre sua imagem, sua obra e a paisagem do Abaeté.

Retratos de Pancetti pintando ao ar livre não são incomuns, já que desde suas primeiras paisagens, feitas na década de 1920, quando era marinheiro, manteve o hábito de trabalhar a partir do motivo. Assim que se transferiu para Salvador, em 1950 – ele viveu nessa cidade até 1957 –, foi fotografado por Pierre Verger pintando na praia da Barra. Na lagoa do Abaeté, ele aparece também em fotos de Luis Carlos Barreto, autor da reportagem “Abaeté posa para Pan­cetti”, publicada na revista O Cruzeiro, em 9 de fevereiro de 1957. Em imagens coloridas e em preto e branco, o artista é visto pintando as lavadeiras que tra­balhavam no lugar. Nessas fotos, bem como nas de Verger, não há obstáculo para a leitura da cena: Pancetti, a tela e a paisagem são apresentados em planos distintos. Os dois materiais enfocam com clareza seu método de trabalho e a relação de sua obra com a paisagem baiana, mas enquanto as fotos de Verger são documentos discretos do pintor concentrado em seu ofício, na matéria de O Cruzeiro ele posa como uma celebridade.

Assim como Alberto da Veiga Guignard e Alfredo Volpi, Pancetti está entre os artistas que conquistaram espaço no meio artístico brasileiro durante os anos 1940, ao longo de um gradual processo de institucionalização e reconhe­cimento público das linguagens modernas. Em 1941, ele foi o primeiro a ganhar o prêmio de viagem internacional oferecido pela Divisão de Arte Moderna do Salão Nacional de Belas-Artes, que havia sido criada um ano antes. Sobretudo em São Paulo e no Rio de Janeiro, surgiram salões, exposições, galerias e, no fim da década, três museus comprometidos com a educação do público para a apreciação da arte moderna: o Masp, o MAM/SP e o MAM/RJ.

Quando se transferiu para Salvador, Pancetti era conhecido como um dos mais importantes pintores modernistas brasileiros. Já havia participado da Bienal de Veneza e tinha obras no acervo do Museu de Arte Moderna de Nova York. Outra matéria de O Cruzeiro, publicada em 7 de janeiro de 1956, exagera: “Pancetti é um dos grandes nomes universais da pintura moderna”, “o novo Gauguin”. Tendo alcançado essa popularidade, sua presença na Bahia era um estímulo para artistas como Mário Cravo Jr., Carlos Bastos e Genaro de Carva­lho, que desde o fim dos anos 1940 batalhavam para criar um circuito de arte moderna em Salvador. Esse período identificado com o início da modernidade nas artes plásticas da Bahia envolveu também a atuação de uma série de outros artistas brasileiros e internacionais que se transferiram para o estado entre o fim dos anos 1940 e a década seguinte. O fotógrafo Pierre Verger se radicou na cidade em 1948; o desenhista argentino Carybé, em 1951; o gravador alemão Hansen Bahia, em 1955; o músico Walter Smetak, em 1957. A presença mais marcante foi possivelmente a da arquiteta Lina Bo Bardi, que entre 1959 e 1964 fundou e dirigiu o Museu de Arte Moderna da Bahia e o Museu de Arte Popular do Unhão, instituições que transformaram o cenário cultural da cidade, con­tribuindo para a formação de Glauber Rocha, Caetano Veloso e Waly Salomão, por exemplo.

Embora a historiografia sobre a arte brasileira nos anos 1950 se volte sobre­tudo para a produção de arte abstrata e construtiva – e há razões para que seja assim –, parte considerável dos artistas brasileiros, entre eles Pancetti, perma­neceu ligada à figuração. Ele manteve o vínculo com a paisagem do país, mas sua produção não compartilha do mesmo teor nacionalista da obra de artistas como Portinari e Di Cavalcanti. Suas figuras são muito sintéticas e o lirismo de seus trabalhos assume um caráter demasiadamente melancólico e intimista para isso. Em 1945, o crítico argentino Romero Brest, em texto sobre a expo­sição de pintura brasileira que viajou para Buenos Aires nessa data, aponta a combinação entre “romantismo” e “sentido construtivo” na obra de Pancetti: “Não é um naturalista-romântico na acepção precisa do termo, porque em suas telas há demasiado sentido construtivo da forma e inclinação ao decorativismo moderno para sê-lo, mas o sentimento romântico está presente”.

Brest de certo identificava um caráter “construtivo” na aparência planar e nas estruturas geométricas que organizam as telas de Pancetti. E o adjetivo român­tico talvez se refira às figuras solitárias e contemplativas que habitam suas pai­sagens, ou à tensão emocional característica de seus retratos e autorretratos. Embora trabalhasse olhando para o assunto, as cores saturadas, os enquadra­mentos angulosos e a fragmentação de elementos (árvores, troncos e casas) por meio de cortes “fotográficos” conferem aparência artificial a suas paisagens e, em alguns casos, forte sentido de independência das obras em relação ao referente.

Pancetti devia conhecer o debate sobre a autonomia dos elementos visuais que, nos anos 195 0, conquistou certa dimensão pública na imprensa do Sudeste pelas vozes de Mário Pedrosa, Ferreira Gullar e Waldemar Cordeiro; tampouco ficou alheio à arte concreta que podia ser vista com facilidade em exposições e bienais. O sentido abstracionista de sua obra se acentua no período em que viveu e retratou a Bahia, quando as áreas trabalhadas com somente uma cor se ampliam e o aspecto bidimensional das telas se torna mais evidente. No entanto, nas pinturas feitas na lagoa do Abaeté, a presença das lavadeiras com seus chapéus, bacias e panos coloridos estendidos na areia evidenciam o vínculo das obras com aspectos típicos da paisagem natural e humana do lugar. Nessa série, as figuras são destacadas e, ainda que sejam simplificadas e apare­çam de costas ou de perfil, a linha preta contornando os corpos dá um caráter de ilustração às imagens.

Nas folhas de contato com as fotos de Pancetti no Abaeté feitas por Mar­cel Gautherot, há uma sequência em que o artista aparece pintando uma tela pequena e, em seguida, duas composições diferentes sobre vidro. A princípio, as imagens remetem à famosa cena de Jackson Pollock visto de baixo para cima, com o céu ao fundo, deixando pingar (ou arremessando) gotas de tinta sobre uma placa de vidro. A cena colorida, em movimento, foi filmada por Hans Namuth em 1950, na casa do artista em East Hampton, na mesma ocasião em que realizou o ensaio fotográfico em preto e branco, com ele pintando sobre a tela estendida no chão. Nas fotos de Gautherot, o cavalete em primeiro plano logo evidencia que o fato de terem sido retratados por detrás de uma placa de vidro é provavelmente a única coisa que Pollock e Pancetti têm em comum.

Talvez Gautherot conhecesse o filme de Namuth. Talvez tivesse assistido ao documentário do cineasta francês Henry-Georges Clouzot, lançado em 1956, em que Pablo Picasso é filmado pintando por detrás de um papel especial, semitransparente, que esconde seu rosto mas revela o processo de elaboração do quadro, pincelada por pincelada. Já as fotos do artista brasileiro concentram a atenção do observador mais em seu rosto do que em sua ação.

Sob o sol escaldante, com os olhos apertados para conter o excesso de luz, um tanto rígido e às vezes esforçado para manter a pose, nas fotos de Gautherot, Pancetti lembra a figura de Van Gogh. Essa semelhança pode ser mais que uma coincidência se lembrarmos do impacto que o artista holandês exerceu sobre o brasileiro, sobretudo em seus retratos e autorretratos, nos quais o enquadra­mento, a posição do rosto em meio-perfil, a rigidez do corpo e a tensão emocio­nal concentrada no olhar não deixam dúvidas a esse respeito. Além desses dados formais, grande parte da bibliografia sobre o “homem do mar” focaliza os lances trágicos de sua vida: infância pobre, aventuras da época de marinheiro, a saúde sempre frágil, desilusões amorosas, solidão e sofrimento no leito de morte – o que aproxima ainda mais a figura de Pancetti à personagem Van Gogh.

Formado em arquitetura decorativa pela École Nationale Supérieure des Arts Décoratifs da França, radicado no Brasil desde 1940, o fotógrafo francês Marcel Gautherot construiu um acervo de imagens diversificado sobre o país. Ele foi um dos principais intérpretes da arquitetura moderna brasileira, além de documentar o patrimônio arquitetônico nacional para o Serviço do Patri­mônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) e registrar festas populares em todo país para a Comissão Nacional do Folclore, durante os anos 1940 e 1950. Nesse período, Gautherot esteve mais de uma vez na Bahia. Fotografou Pan­cetti possivelmente um pouco antes de iniciar sua extensa documentação da construção de Brasília, a partir de 1956, comissionado por Oscar Niemeyer.

No Abaeté, a substituição da tela pela superfície transparente cria um efeito de continuidade entre o espaço da pintura e seu entorno, sublinhando ainda mais a relação da obra com o lugar. Numa das fotos mais interessantes, a mulher que caminha ao fundo da cena parece ter sido a modelo da figura esboçada no vidro. As duas se parecem não apenas por causa das roupas, mas porque o corpo desfocado da primeira é tão destituído de detalhes quanto o da segunda. Ao mesmo tempo, as pinturas suspensas criam uma moldura inusitada para o rosto de Pancetti. Em outros casos, a transparência parece achatar as distâncias entre os planos, de modo que a figura do artista, coberta ou não pela tinta, lem­bra uma colagem. Dessa maneira, os efeitos criados pelo uso do vidro bloqueiam uma leitura direta do retrato e evidenciam que a situação é uma encenação, já que Pancetti não está simplesmente trabalhando, e sim posando para Gautherot registrá-lo. Ainda assim, as fotos são documentos e ratificam que, nos anos 1950, o mote central da obra de Pancetti permaneceu sendo a interpretação de luga­res, pessoas e coisas de seu cotidiano. E seu parâmetro de produção, a pintura de cavalete ao ar livre feita à maneira dos pós-impressionistas.