Sexta-feira, 6 de setembro de 1940. “My most dramatic disaster, my black Friday” [“Meu desastre mais dramático, minha sexta-feira negra”], como Saul Steinberg a definiu anos depois.1 Não esperava surpresas, os primos americanos haviam mandado a passagem e o visto de entrada na República Dominicana; ele havia providenciado as autorizações para transitar pela Espanha e Portugal, de lá cruzaria o Atlântico.
Finalmente deixaria a Itália fascista, que há dois anos tornara-se irreconhecível com a decretação das leis raciais importadas da Alemanha nazista. Primeiro proibiram que assinasse os desenhos no periódico satírico Bertoldo. Saul Steinberg era um nome impossível de italianizar. Nem repetindo o apóstolo são Paulo, que originalmente era Saulo, Saul.
Preferiu publicar os desenhos anonimamente. Depois, com o agravamento das perseguições, convenceu-se de que era melhor deixar a Europa. Além dos parentes, tinha amigos nos Estados Unidos. Cesar Civita (irmão de Victor, fundador da Editora Abril) era o mais empenhado em apressar o visto dominicano para tirá-lo da Itália antes que fosse tarde.
Impossível imaginar que a escala em Lisboa poderia ser tão desastrosa. Único porto neutro do Atlântico Norte, passagem obrigatória para as ondas de refugiados do nazifascismo que procuravam o Novo Mundo. Para piorar, Portugal era uma ditadura fascista dirigida pela figura rancorosa e mesquinha de Antonio de Oliveira Salazar, que acumulava duas funções-chave no Estado Novo: primeiro-ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros. Não era um sanguinário antissemita, apenas não queria muitos judeus no país, sobretudo os de origem centro-europeia, impregnados de ideias socialistas e “degeneradas”. Por isso colocou a polícia política (a PVDE, precursora da famigerada PIDE) controlando os diplomatas para evitar generosidades indevidas na concessão de vistos de entrada.
No início de maio de 1940, o cônsul português em Milão (nos telegramas ele se assinava “Magno”) tenta, mas não consegue a autorização para conceder o visto de turista para o artista. Então opta por um visto de trânsito, já que “o indivíduo tem bilhete para a República Dominicana”.2
Steinberg demorou-se a reunir os demais documentos. O visto português foi finalmente carimbado no seu passaporte em 29 de agosto; no dia 6 de setembro ele embarcou no voo semanal da Ala-Littória que fazia a rota Milão-Barcelona-Lisboa.
Nenhum problema em Barcelona (àquela altura o ditador Franco já esmagara a Catalunha). Falta apenas a escala final em Lisboa, de onde partirá de navio.
Tudo bem? Tudo mal: o avião desce no aeroporto de Sintra (o único do mundo que oferecia voos regulares tanto para Londres como para Berlim). Os passageiros são autorizados a desembarcar. Todos, menos Saul Steinberg. “Foi-lhe proibida a entrada no país e obrigado a retornar no mesmo avião.”3
Jamais conseguiu saber o motivo do desastre que mudou radicalmente a sua vida. Nos nove meses seguintes, teve que se ocupar com questões mais urgentes, como sobreviver sem dinheiro, sem emprego, num estado policial em que não havia lugar para judeus e menos ainda para judeus estrangeiros. Chegou a ser internado no campo de Tortoreto, na costa Adriática, destinado aos expatriados, ciganos e marginais.
Com a ajuda de Cesar Civita e das entidades judaicas internacionais para socorro de refugiados, consegue, em junho de 1941, novos vistos (Espanha, Portugal e República Dominicana), novo bilhete aéreo (Milão-Barcelona-MadriLisboa) e a passagem Lisboa-Ciudad Trujillo (como se chamava Santo Domingo. Embarca finalmente, no dia 20 de junho de 1941, no ss Excalibur. Só conseguirá enxergar a Estátua da Liberdade no verão do ano seguinte.
Foi por pouco. A alegação oficial portuguesa para negar o primeiro pedido de visto de Steinberg foi estúpida e simplória: o pedido teria caducado (o visto fora negado “por ter perdido a oportunidade”).4 Mentira: ainda em 11 de maio de 1940 um memorando confidencial do Ministério dos Negócios Estrangeiros à PVDE, assinado por V. da Cunha em nome do diretor-geral, explica a recusa do visto ao estudante romeno Saul Steinberg, “segundo todas as indicações de raça judaica”: “A Romênia se debate com o grave problema que procura activamente resolver, de se libertar duma indesejável, numerosa e crescente população de raça judaica”. Fecha o documento a obrigatória saudação salazarista, espécie de “Heil, Hitler” camarada: “A bem da nação”.5 Na sequência, a PVDE circulou, para uso interno, a “interdição de entrada no país” do jovem judeu romeno.6
Steinberg jamais viu estes papeis, morreu sem saber por que foi deportado e quase foi parar numa câmara de gás, longe, muito longe, da Nona Avenida em Manhattan, de onde na famosa capa da New Yorker (26.03.1976) descortinou o mundo.