Uma característica curiosa do samba brasileiro é a dificul­dade de se saber quem é o autor da canção – os próprios sambas são quase sempre mais conhecidos que seus com­positores, como se houvesse uma espécie de obra coletiva pairando sobre eles. Assis Valente? Ou foi Ataulfo Alves? Herivelto Martins? Não seria Wilson Batista? Monsueto? Ou Manacéa? Se isso é resultado do predomínio, até a bossa nova, dos cantores (bastante conhecidos) sobre os compositores (bem menos), da própria precariedade bio­gráfica de tantos desses compositores (que incluía, cons­tantemente, a venda de composições, muitas vezes para os próprios cantores) e ainda da ausência de pesquisas detalhadas sobre o assunto, aponta também para uma questão esteticamente importante, que merece atenção. Alguns de nossos maiores compositores parecem fazer parte, mesmo em seus momentos máximos, de um estilo, o samba, que não requer a individualização imediata de cada obra. Daí que o pot-pourri, essa forma algo detes­tável de achatamento das diferenças entre cada canção, tenha uma recorrência no samba que não poderia ter em outro gênero. Com temas, rimas, soluções melódicas e harmônicas até certo ponto imunes à crise, com situa­ções de vivência tendendo ao coletivo (rodas, terreiros), embora tenha tantos e extraordinários autores, o samba parece recalcar sem muito trauma o espaço da autoria.1 Claro que há, desde sempre, exceções, autores cuja sin­gularidade salta aos olhos, quer a gente queira, quer não: Noel, por exemplo, talvez pela engenhosidade espantosa da letra; Caymmi, pela simplicidade arquetípica de cada achado. Esta lista poderia continuar, mas não me parece equivocado pressupor, nas décadas que assistem à forma­ção de nosso samba, e de grande parte de nossa canção em geral, uma predominância do gênero sobre as con­quistas individuais.

De modo geral, épocas com grandes achados linguísti­cos são propícias a isso: a qualidade extrema das madonas, na pré-renascença, faz com que diversas delas se pareçam entre si e, muitas vezes, com as obras-primas de um Bellini; no barroco, a influência de Caravaggio sobre seu tempo foi tão acachapante que, embora sua própria identidade salte aos olhos, é muito difícil distinguir um discípulo do outro (e são inúmeros); a semelhança entre Picasso e Bra­que é assombrosa, e também entre eles e seus seguidores, durante os anos de desenvolvimento dos cubismos analí­tico e sintético. Para bem e para mal, parece que, quando as conquistas estilísticas são muito bem-sucedidas (quer tenham sido produzidas por um autor identificável ou por uma soma deles), a digital de cada artista nem sempre ocupa o primeiro plano. Algo semelhante ocorreu, entre nós, durante o barroco mineiro, onde Aleijadinho se des­taca num quadro de excelência que quase se equipara a ele. Em outra área, daria para pensar no cinema hollywoo­diano, muito mais refratário à noção de autoria que o cinema europeu – afinal, foi preciso esperar pelo pessoal do Cahiers du Cinéma francês para que a identidade de cada diretor fosse mais bem especificada. Depois dos anos de nascimento, essa estabilização de recursos estilísticos degenera muitas vezes para o tédio e a mumificação (os “caravaggescos” são exemplo disso), mas, enquanto a coisa está viva, formando-se, testando-se, a boa notícia é que muitas vezes o trabalho de um autor desconhecido ganha o estatuto e a força de uma verdadeira obra-prima. Entre nós, os discos de João Gilberto estão repletos de achados assim – autores de quem nunca ninguém ouviu falar pro­duzindo canções à altura dos compositores maiores. O estilo, quando nasce com força, oferece à média dos cria­dores, como um berçário anônimo, matéria-prima acessí­vel e rica.

Como em tantas outras coisas, a bossa nova há de ser um divisor de águas também neste ponto – a partir dela, a cons­telação dos autores/compositores define-se com maior niti­dez. Não há anonimato propriamente e o aproveitamento das composições passa a ser muito maior. O desenvolvi­mento de uma indústria cultural de segunda geração (a da televisão/indústria fonográfica, que sucedeu, nos anos 1960, a “Era do Rádio”, que vinha desde os anos 1930), ao alcance dos que vieram em seguida à bossa nova, vai atribuir a cada um o que lhe é próprio. O misto de anonimato e exposição, de (total) amadorismo e (mínimo) profissionalismo, carac­terístico da nossa canção até os anos 1950, encerra-se aqui. É difícil especificar quanto da sua grandeza veio dessa mis­tura rara (própria de seus anos de formação) entre o mundo privado, familiar quase, dos artistas-compositores e um grau razoável de exposição pública por meio do rádio e de momentos como carnaval, campanhas políticas e festas em geral (estádios de futebol, por exemplo), além de uma inci­piente indústria fonográfica. Embora bastante amadora, a canção brasileira alcançou assim, desde as origens, um sig­nificado social que nenhuma outra forma de arte teve entre nós. Vivia, desde sempre, na boca das pessoas – os anos se contavam pelas marchinhas de carnaval e para cada situação um samba logo se formava. Uma enorme solicitação pare­cia pairar no ar, ainda que não se cumprisse muitas vezes. As canções retornavam então para o circuito íntimo sem atingir o público, e permaneciam nele, como tesouro des­perdiçado e lenda, ou eram esquecidas de vez – mas isto não seria possível se efetivamente, em especial através do rádio e da indústria fonográfica que nascia, diversas canções não tivessem cumprido o seu destino e atingido o público, soli­citando, ainda que vicariamente, uma produção incessante. Com a bossa nova e o salto subsequente da indústria cul­tural, em especial com o advento da televisão, alcançando o que não alcançara, atingindo quem não atingira, essa proporção de amadorismo/profissionalismo, de solidão e compartilhamento, se altera. É possível falar que a época clássica da nossa canção se encerra aqui, e que a geração dos anos 1960 e 70 será a expressão explosiva dessa crise.

No entanto, é na contramão desse novo momento, pró­prio dos anos 1960, com maior acesso ao mundo lá fora e próximo de uma promessa mais efetiva de público, que duas vozes extraordinárias aparecem, no Rio de Janeiro: Cartola e Nelson Cavaquinho. Gravados em LP no início dos anos 1970, têm em comum, além da amizade e da escola (Mangueira), uma larga trajetória. Fizeram razoável sucesso lá atrás (Car­tola foi gravado por Carmen Miranda, Chico Alves, Mario Reis, Silvio Caldas e Aracy de Almeida, nas décadas de 1930 e 40; Nelson foi gravado por Alcides Gerardi e, mais de uma vez, por Ciro Monteiro, na década de 1940, e ainda por Roberto Silva e Dalva de Oliveira, na de 1950), desapareceram por um tempo e voltaram, na esteira da descoberta do morro pela classe média carioca, no início dos anos 1960,2 com um conjunto de canções espantosamente forte e maduro, um ponto de vista absolutamente original e uma diferenciação estilística nítida. Aquele “patrimônio comum” do samba parece interromper-se aqui e uma imparidade poética em relação ao que foi feito antes salta aos olhos. Apesar de tes­temunharem quase a origem do samba (Cartola, fundador da Mangueira, nasceu em 1908; Nelson Cavaquinho em 1911), suas melhores canções formam já uma expressão tardia do gênero, desconectada do estar no mundo do período, diga­mos, clássico da canção popular brasileira (décadas de 1930 a 50). Cartola e Nelson atravessam essa época áurea do samba literalmente em fuga – Cartola desaparecido, com fama de morto; Nelson vagando por aí, dando e tomando esmolas, patrulhando as ruas, embebedando cavalos, trazendo gali­nhas para casa. Se Zé Kéti é a face de alguma forma dialogá­vel desse mundo ressurgido – em suas parcerias com Nelson Pereira dos Santos e com Nara Leão, na poética de esquerda de composições como “Opinião”, “Acender as velas” ou “Malvadeza durão”, ou ainda no próprio show Opinião, que fez com Nara Leão e João do Vale –, Nelson e Cartola repre­sentam, em estado puro, o amadorismo que morria – afinal, quase morreram, mesmo –, com sua cota de solidão e esque­cimento, tornado forma e canção, em plena era nascente do profissionalismo e da indústria cultural televisiva. É em nome dessa face dissipada da nossa canção que compõem, numa espécie de contato permanente com a derrisão e o esquecimento que, no entanto, iam diminuindo inelutavel­mente. Nascem, assim, já na contramão do tempo, reagindo à urgência quase fóbica dos anos 1960 com uma espécie de extemporaneidade inabalável. Paulinho da Viola, que vem inteiro dessa matriz, acrescenta a ela a consciência, própria dos trabalhos tardios.

A primeira marca desses dois compositores é a abstração. Já não servem, não respondem propriamente a nada, ou melhor – nascem muitas vezes de uma situação concreta para logo se moverem até um ponto de vista distanciado, moral ou cósmico. O samba parece querer libertar-se da anedota, e mesmo de qualquer identidade com uma função, um papel, uma persona. Para colocar de outra forma, ele é o movimento mesmo de ascensão do concreto ao abstrato – este é o caminho que percorre (diferentemente de Pauli­nho da Viola, que já nasce abstrato):3 num samba de Cartola, uma traição a um amigo (“fui trair meu grande amigo”) leva, no início da segunda parte, a uma máxima como “faço tudo para evitar o mal/ sou pelo mal perseguido”. O morro, de onde olha o sujeito lírico, passa a ser, antes de tudo, e literal­mente, um lugar alto, distante, isolado. Instalado ali, o com­positor, sozinho, é soberano. Aquela canção que se estabi­lizou com Noel Rosa, multimórfica, penetrante, grudada ao rés do chão, fundida à vida da cidade, dissipada nos bol­sos, nas vielas, nas horas da madrugada, espalhada na gíria e no contexto imediato, na dança, no ganha e perde das disputas entre os compositores e do querer-ser mais ime­diato, essa canção, em suas inúmeras metamorfoses, pode descansar agora, feita de uma matéria mais calma e cons­tante. Assim, uma outra característica de ambos aparece inevitavelmente: a sobriedade, espécie de nitidez formal, singela ou solene, que cria distância ao mesmo tempo que compensa o indefinido do assunto. O compositor não ginga, não desvia, não malicia – nada tem do malandro, e a canção vagabunda, oferecendo-se a toda hora às necessidades do mundo, parece quase absurda aqui. “Ali onde a sobriedade te abandona, ali se encontra o limite do teu pensamento”, dizia Hölderlin.4 Há, de fato, um limite, ou contorno, nas composições de Cartola e Nelson Cavaquinho, um perten­cimento, uma espécie de pudor que multiplica a gravidade das canções. Talvez por isso seu ponto de vista seja sempre tardio – parece que a vida, de certa forma, já foi vivida. A velhice é, portanto, a terceira característica comum a Nel­son e Cartola, o ponto de vista de quem já viveu. Há uma experiência acumulada aqui, que obriga a uma contenção e sobriedade, e a um cansaço de fundo que vem dela.

Abstratos, sóbrios e velhos – Cartola, entre os dois, representará um núcleo mais assentado, harmônico e clás­sico; Nelson será mais individuado e ímpar, quase desagra­dável. Cartola acena para a conciliação e Nelson, para o trá­gico. Em Cartola, o cantor, antes de mais nada, dá conselhos. Aquele que já viveu sopra aos ouvidos de quem escuta: “o mundo é um moinho” ou “acontece, acontece”. Quer pou­par o ouvinte, conduzi-lo a lugar seguro. “Eu bem sei que não queres voltar para mim”, mas, ainda assim, “devias vir, para ver os meus olhos tristonhos/ e quem sabe sonhar os meus sonhos/ por fim”. A canção é o veículo dessa reconci­liação, e a riqueza harmônica de Cartola parece permitir a esse percurso que se torne mais longo e abstrato. Assim, as grandes metáforas que conduzem seu trabalho – as rosas que não falam, os mundos que são moinho, os ninhos de amor que estão vazios – e os ricos percursos harmônicos, adiando o retorno da melodia, têm ambos a mesma função – postergar, enriquecendo-o, como um barco atracando lentamente, um percurso de reconciliação, ainda que triste. Cartola perdeu, mas ensina ao ouvinte aquilo que perdeu, assimilando-o novamente. Seu trabalho é a enorme metáfora dessa perda, que se parece com tudo – alvorada, morro, rosas –, estando, portanto, sempre ao dispor, pronta para encontrar (é isto a metáfora) a justa proporção com o mundo lá fora.

Para Nelson, o perdido é perdido e não retorna – não há conciliação, mas queixa, espanto, estupor. Ao contrário do princípio metafórico, e meta­mórfico, de seu amigo e parceiro, seu trabalho procede por contiguidade e metonímia – as folhas secas caídas de uma mangueira, em que o composi­tor pisa, fazem pensar na escola; as melodias, quase literalmente, sobem e descem, como passos da cruz ou do morro; as flores de Nelson, ao contrário das rosas de Cartola, falam, e o fazem quando ele passa por elas, “quando eu passo perto das flores/quase elas dizem assim: nós amanhã enfeitaremos o teu fim”; o amante é descoberto pelo indício físico: “o cigarro deixado em meu quarto é a marca que fumas, não podes negar”. Ao contrário de Cartola, em que um encanto inesgotável suspende os elementos para pô-los em rela­ção, em que tudo pode transformar-se naquilo que lhe é afim (tudo serve de metáfora para tudo), em Nelson as coisas, ainda que abstratas, são o que são, deixando marcas e sinais: “bem sei a notícia que vens me trazer/ os teus olhos só faltam dizer/ é melhor eu me convencer”.

Suas canções, quase sempre, têm rimas fixas (mágoa/olhos rasos d’água; rosto/desgosto; mundo/vagabundo; embora/agora), estruturas algo arque­típicas e invariáveis: o que conta, realmente, é o movimento de subida e descida da melodia. Se em Cartola as melodias parecem espalhar-se, num desenvolvimento arrebatador e expansivo, em Nelson progridem, passo a passo, num movimento pontual, mas inexorável, entre o aqui e o ali, como se pudéssemos apontar com o dedo o seu movimento. Parecem circunscri­tas, presas a um meio que lhes oferece resistência. Seu canto reforça como nenhum outro tal aspecto. Nelson parece cantar ca-da sí-la-ba como se fosse ela a unidade de significação final; separa-a de sua vizinha como se existisse por si mesma. Assim, o acento em cada ponto do percurso acaba impedindo a expansão lírica típica das canções de Cartola (e o bel-canto correspondente, ainda presente nas interpretações do próprio Cartola) e reforça o aqui e agora aprisionado do cantor. Há uma clausura, uma gravidade, uma força entrópica que a melodia deve vencer, ausentes em Cartola. Muito da beleza e singula­ridade de Nelson vem dessa espécie de conta final entre dois adversários – é quase um espanto que a canção tenha conseguido desenvolver-se, que tenha sido composta, afinal. Parece que poderia ter cedido, ter-se deixado perder em algum ponto. O compositor arrasta a melodia para cima e para baixo, numa espécie de câmera lenta entre as notas, fazendo questão de mostrar isso – estou indo daqui até ali. A composição, aliás, é exatamente assim – o sobe e desce, ponto por ponto, de uma melodia que ameaça falhar.

Por isso, talvez, alguma coisa nas canções de Nelson tenda ao coro, que une naturalmente essa melodia tensio­nada ponto a ponto, suprindo-a em suas fraquezas, contra­pondo-se à sua vulnerabilidade. Aqui, mais do que em qual­quer outro compositor, a voz coletiva se impõe. À exceção de alguns clássicos, como “A flor e o espinho” (cuja primeira e mais famosa parte parece ser de autoria de Guilherme de Brito) ou “Folhas secas” (parceria dos dois), quase todas as suas canções parecem prontas para ser cantadas em coro. Há vários motivos para isso: o ponto de vista, presente também na melodia, é de tal forma abstrato, moral, quase religioso, que prescinde das sutilezas do sujeito e tende ao coletivo. Suas interpretações, no entanto, tão pessoais, já contêm essa ambiguidade. Nelson canta, a um só tempo, de modo expressivo (voz rasgada, única, cheia de idiossincrasias; vio­lão percussivo, absolutamente original) e mecânico (divisão quase maquinal das sílabas), misturando uma singularís­sima antítese do bel-canto à marcação silábica monótona, que aceita a neutralização expressiva de um coro.

Além disso, o dilaceramento das canções parece tão intenso que a conciliação prévia de uma coletividade, com seu acolhimento e neutralização, se faz necessária. Muitas vezes (“O bem e o mal”, “Rei vadio”, “Minha festa” – prova­velmente, a única canção feliz de Nelson –, “Vou partir”, “Rei vagabundo”), o coro anuncia o tema com tamanha ênfase que o cantor, ao entrar, parece já aquietado, por contraste. Às vezes, ao contrário, é o cantor exasperado que se funde ao coro, no final da canção (“Juízo final”). De toda forma, o coro dá serenidade a esse sujeito trágico, acalmando-o em seu acolhimento. É isto exatamente o que Schiller diz do coro trágico grego: “As personagens trágicas necessitam deste intervalo […]. A presença do coro, que as ouve, qual uma testemunha julgadora, e que lhes doma as primei­ras explosões de paixão, motiva a circunspecção com que agem e a dignidade com que falam.”5 Nelson, quando canta, parece exatamente assim: circunspecto, digno, de algum modo contido – sóbrio. O coro clássico é um depositário de valores anteriores à ação a que sucumbe o herói – Vernant e Vidal-Naquet viam nele a forma poética do mundo agrá­rio, arcaico, aristocrático e homérico (anterior, portanto, ao mundo presente do teatro trágico), em oposição à fala em prosa do cidadão da pólis, representado pelo ator trágico.6 Claro que essas forças não estão organizadas em Nelson Cavaquinho, mas creio ser possível perceber em seu tra­balho uma tensão, que merece reflexão, entre o sujeito e o coletivo, entre o agora de quem canta e compõe e o imemo­rial derrisório de nossa história, que esse coro parece des­pertar e perdoar.

À diferença da tragédia grega, o coro em Nelson Cava­quinho funde o coletivo e o individual – não há duas vozes, sempre preservadas na tragédia grega, em que dois tempos diversos parecem conviver; nem oposição entre a ação trá­gica do herói e o inevitável rebarbativo cantado pela “teste­munha julgadora”, o coro. O cantor e o coro nas canções de Nelson querem cantar juntos, numa espécie de conciliação cósmica que a entrada das vozes femininas e masculinas no fim de “Juízo final”, na interpretação do próprio Nelson, exemplifica com perfeição. Ali, o cantor parece arrastado por essas vozes, que atuam no mesmo sentido que ele, elevando suas palavras a um patamar que não alcançariam sozinhas. Assim, os dois polos misturam-se, acalmam-se, consolam-se. A canção perde uma imparidade lírica quase insuportável, que tenderia talvez à dissipação, consolando-se com o ato mesmo de muitos estarem-na cantando agora.

Tudo em Nelson Cavaquinho tende ao arcaico, ou extemporâneo – mas, à diferença de outro Nelson (Nel­son Rodrigues, seu contemporâneo e conterrâneo), ele não parece dar-se conta disso. Não há dois polos aqui. Nel­son Cavaquinho não é o pai do samba brasileiro moderno, como Nelson Rodrigues é do teatro moderno brasileiro. Não há propriamente tensão entre forma moderna e conteúdo arcaizante aqui.? Essa questão, presente em quase toda a arte brasileira, simplesmente não se coloca. Muito mais do que arcaico, Nelson (como Cartola) parece ter nascido extemporâneo, na contramão da “promessa de felicidade” da década de 1 9508 e da agoridade exigente dos anos 1960. É desse patamar que Nelson e Cartola compõem, esque­cidos, mas também preservados – e é desse mesmo lugar que Paulinho da Viola enxerga o mundo, embora, digamos, sabendo disso. O coro, em Nelson, parece o próprio arcaico conciliado, tornado acolhimento – e não será exagero pôr na conta desse arcaico os maus-tratos da escravidão secu­lar, da distribuição de renda pífia, do racismo latente, do alcoolismo universal, da vida brutalizada por toda parte. O coro acalma o cantor, que se entrega a ele como quem nasce de novo, uma vez que é a negação imediata de seus males, dos males que o cantor está presentemente cantando – o coro é a solidão negada, a traição negada, a miséria negada. Ele diz o contrário da canção; a sua existência é a refutação cabal do que está sendo cantado, e não é de estranhar que acabe virando tema da canção “e é por isso que eu canto assim: lá, láláiá laiálaiá (coro)” (“Minha festa”). Se há coro, então o cantor não é mais um pobre-diabo, nem está sozi­nho, mas cercado de irmãos, que cantam agora com ele e para ele. Mangueira, a escola que vive até na morte (“vivo tranquilo em Mangueira porque/ sei que alguém há de chorar quando eu morrer”), é esse coro tornado gente, vida real, espalhado por aí. Cantar, assim, transforma o palhaço em rei e o pobre-diabo em centro do mundo. Nelson, que é em tudo um artista extremado, parece mostrar em diversas composições essa passagem limítrofe entre a dilaceração quase muda, de quem talvez não consiga cantar a próxima nota, e uma espécie de acolhimento que o coro (revelando o movimento da própria canção) oferece.

O trabalho de Nelson Cavaquinho coloca para a canção brasileira uma espécie de limite estético – sem prejuízo da beleza cabal de tantas de suas melodias,9 o fato é que ouvi-lo cantar é muitas vezes uma experiência rascante, quase desa­gradável. Seu violão “preparado”,10 percussivo, com notas que batem mais do que ecoam; sua voz absurda, espécie de anti-João Gilberto em seu fôlego mínimo, que se orgu­lha de dizer que está acabando a cada verso, ou meio-verso; seus temas recorrentes, suas rimas recorrentes e, principal­mente, suas melodias alpinistas, subindo e descendo passo a passo à nossa frente, formam um conjunto impressionante de tristeza, dilaceração e morte. Independentemente dos anos de formação dessa poética (entre as décadas de 1930 e 50), o fato é que, no momento em que efetivamente rea­parece para o mundo, gravando ou tocando em endereço conhecido (anos 1960), parece contrapor-se solidamente ao que se anunciava à sua volta. O trabalho de Nelson foge à ambivalência moderno/arcaico que atravessa toda a pro­dução dos anos 1950/60/70, entre o otimismo da primeira bossa nova e o dilaceramento tropicalista. Ele é nosso con­tato imediato com aquilo que deu profundamente errado em nós, sem remissão a nenhum outro: internacionalização, desejo, cosmopolitismo. Consegue sublimar nosso fracasso sem aludir à “vida que podia ter sido e que não foi”. Talvez deva muito de sua sobriedade e solidez formal à ausência desse elemento compósito, o desejo e a recusa do moderno, que caracteriza quase tudo o que fizemos. Em Nelson, a vida é o que é e, num certo sentido, aquilo que sempre foi. Por isso, não carrega ansiedade nem projeto. Parece tão desejá­vel quanto a morte.

Em 1968, Leon Hirszman realizou um pequeno documen­tário sobre Nelson Cavaquinho. Vale o esforço de assisti-lo.11 Em tudo despretensioso, soma aparentemente descosida de dez ou 15 takes, trata-se na verdade de um filme fortís­simo, essencial para a compreensão de Nelson. Nele, como nos penetráveis contemporâneos de Hélio Oiticica, tudo parece dentro. Estamos sempre colados ao que aparece, como se não fosse possível olhar nada de longe. No entanto, ou talvez exatamente por isso mesmo, aquela cumplicidade da câmera em relação ao seu objeto, e de seu objeto em rela­ção à câmera, típica de tantos documentários e reportagens recentes, ainda não nasceu aqui. A luz estourada, a presença acidental e absurda do microfone de som direto, a alusão àquilo e àqueles que estão atrás da equipe de filmagem, a absoluta ausência de naturalidade de todos os que aparecem no filme (menos do próprio Nelson), criam um “lado de lá” perturbado pela câmera, alheio e heterogêneo, mas por isso mesmo centrado e autêntico. Numa cena especialmente feliz, sob o som de “Tire o seu sorriso do caminho”, a câmera persegue uma moça, que foge ferozmente dela, esconden­do-se atrás das amigas, das mãos e do próprio cabelo, e ser­vindo, neste movimento, de mira para o que aparece atrás dela: um pátio cheio de gente e fachadas de casas, um pátio onde entramos sabendo, pelo comportamento de nossa anfitriã, que não deveríamos entrar. Em outra sequência, sob a trilha de um estranha canção, cuja letra fala de um pimpolho de cinco anos que fuma charuto e pede mulher, crianças bebem cerveja (mas pode ser tubaína), galinhas se espalham pela casa, tudo parece bêbado, disperso, em festa e deprimido, como uma cena de crueldade infantil de Dickens, mas na qual nossos valores já não servem: as crianças estão sendo aliciadas? Estão realmente bebendo álcool? O efeito é cômico? Trágico? A depressão explícita de Nelson é autêntica? Perigosa? Vai matar o pintinho que tem entre as mãos ou está brincando com ele? As coisas, neste filme, parecem alheias na medida mesma em que se mostram de todo despreparadas para aparecer para nós. Esse despreparo é a matéria primeira do filme, sem que se saiba bem se não será nosso ao olhá-lo. Por isso não é tanto a miséria, tema por excelência do cinema novo, que está sendo captada nesses longos travellings, com os grandes valores que sempre se depositam nela – estupor, piedade, princípios, revolta. Não, pois a passi­vidade da miséria ficou de fora, expulsa pelo comportamento incomodado de tantos que aparecem no filme, pela figura estranhíssima, cabocla e albina, de Nelson, mas principalmente pelas canções que surgem ao fundo. O que está sendo flagrado é alguma coisa que foi esquecida, mas que parece ter-se organizado plenamente nesse esquecimento. Algo que tolera a câmera, mas não se entrega a ela, que consegue fugir dela, ou mostrar-se enquanto foge, dirigindo a câmera em sua fuga. As figuras e canções vêm daí, voltam para aí e querem ficar aí. Não precisam de nós. A última e extraordinária cena do filme merece descrição. A canção é “Vou partir”, e Nelson está cantando sozinho (“Vou partir/ Não sei se voltarei/ Tu não me queiras mal/ Hoje é Carnaval// Partirei para bem longe/ Não precisa se preocupar/ Só voltarei pra casa/ Quando o Carnaval acabar, acabar”). A tomada, noturna, começa de fora das portas abertas de um bar. Um zoom revela uma mesa em cujo centro Nelson toca e canta, cercado de pessoas. Corte para uma tomada de longe, do alto, inteiramente preta, onde a luz do bar se tornou um pequeno retângulo na parte inferior do quadro, numa composição que remete dire­tamente, com incrível fidelidade, ao mundo das xilogravuras de Goeldi. No momento do corte, o coro entra. Pela primeira vez em todo o filme, ouvi­mos o coro típico das canções de Nelson; pela primeira vez em todo o filme, alguma coisa é filmada de longe. De longe, para que o coro entre. De longe, porque ficamos de fora.