Diante da solidão de Clarice
por ANA MARIA MACHADO
Há 45 anos, num crepúsculo de novembro, a escritora pedia ajuda para ordenar o caos que daria origem à obra-prima A hora da estrela
Ensaio publicado na serrote 35-36
Quando não estou escrevendo, eu simplesmente não sei como se escreve. E se não soasse infantil e falsa a pergunta das mais sinceras, eu escolheria um amigo escritor e lhe perguntaria: como é que se escreve?
Clarice Lispector, “Como é que se escreve?”1
Sei que este encontro aconteceu em 12 de novembro de 1975 porque houve uma data que serviu de marco: o aniversário de 60 anos de Roland Barthes. Daí ser possível fixar com exatidão a referência desta minha conversa com Clarice Lispector. É claro que eu já a conhecia desde antes, de alguma forma, ainda que superficialmente. Primeiro, como leitora, desde quando eu estava na faculdade, no início da década de 1960. Fascinada, lia as crônicas e contos inquietantes que ela escrevia na sofisticadíssima revista Senhor, que então representava a vanguarda absoluta em qualidade de textos jornalísticos e literários e no primor e requinte de sua concepção gráfica, sob os cuidados de nomes como Bea Feitler, Carlos Scliar e Glauco Rodrigues. Depois me convertera em fiel leitora, tanto do que ela publicara em livros quanto da coluna que mantivera por um bom tempo no Caderno B do Jornal do Brasil, antes que eu começasse a trabalhar lá. Acho que dá para dizer que, mais que leitora, eu era fã da escritora.
Além disso, já falara com Clarice pessoalmente, embora com certeza ela não tivesse registrado esses encontros nem se lembrasse de mim. Tinha sido apresentada a ela e trocado algumas palavras em alguns eventos. Lembro de um, em especial, em que até conversamos um pouquinho, ao pé de uma árvore, no ambiente quase bucólico e suburbano de uma vila de casas simples em Copacabana, numa noite de autógrafos de livros editados pela Editora do Autor, que mais tarde se chamaria Sabiá, obras de Vinicius de Moraes, Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e o então estreante Aguinaldo Silva, a essa altura um jovem promissor.
Mas a verdade é que, até esse dia de novembro de 1975, Clarice Lispector e eu nunca tínhamos conversado para valer.
Daí meu espanto com o recado que encontrei à minha espera sobre a mesa na redação da Rádio Jornal do Brasil, quando cheguei de manhã para mais um dia de trabalho. Para ser exata, eram três ou quatro recados com pequenas variantes, nas caligrafias dos diferentes colegas que atenderam aos sucessivos chamados. URGENTE – LIGAR PARA CLARICE LISPECTOR ASSIM QUE CHEGAR. E um número de telefone.
Um pouco emocionada com a perspectiva de falar com ela, disquei o número ainda em pé, antes mesmo de me instalar à mesa. A voz rascante atendeu ao primeiro toque, como quem estivesse a postos, ansiosa, na expectativa daquele som. Explicou que precisava falar comigo imediatamente, sobre alguma coisa que eu tinha escrito e saíra no Jornal do Brasil. Mas tinha de ser em pessoa, nada de telefone. Então me pedia que eu fosse imediatamente encontrá-la em sua casa. Estava à minha espera.
Expliquei que acabara de chegar à rádio, tinha todo um dia de trabalho pela frente, não podia sair assim de imediato. Mas poderia passar lá por volta das sete da noite, quando saísse da redação.
– Não posso esperar até de noite, é muito urgente. Você não entendeu. Não pode dar um jeito de vir agora?
Foi quase constrangedor. Ela achou que era pouco caso de minha parte ou que eu não estava dando importância à sua necessidade premente. Eu expliquei que tinha um horário a cumprir, não podia dispor do meu tempo como quisesse. Não havia jeito de ela aceitar minha recusa. Finalmente, pareceu se render ao irremediável e desligamos.
Logo em seguida, ligou de novo. Insistia, compulsiva:
– Não dá para esperar. Preciso que você venha logo. Pausa. Depois emendou:
– Mas eu tive uma ideia.
E deu a sugestão:
– Não pode pedir a alguém para te substituir? Não, não dava.
No decorrer do dia, ligou mais duas vezes, insistindo. Como criança que, em viagem de automóvel, fica a toda hora perguntando se falta muito para chegar ao destino. Evidentemente, estava aflita.
Fui ficando preocupada. E, afinal, tratava-se de Clarice Lispector, a grande escritora, em uma situação de emergência. Mas não era fácil sair. Eu era editora de jornalismo da rádio, então com a delicada responsabilidade diária de enfrentamento da censura, além da supervisão do trabalho de toda a equipe de repórteres e redatores, sucursais e correspondentes. Adiantei como pude o que eu tinha de fazer e resolvi falar com o superintendente da rádio. Dei a desculpa de um imprevisto pessoal, expliquei que já tinha providenciado para o chefe de redação me substituir no fechamento do longo noticiário das 18h30. E pedi para sair mais cedo.
Dessa forma, consegui sair da avenida Brasil, perto do centro do Rio de Janeiro, por volta das cinco da tarde. Cerca de uma hora depois, chegava ao Leme. Com a luminosidade do verão, ainda estava claro. Em frente ao endereço que ela me passara, estacionei, fechei o carro, olhei para cima e vi que uma mulher estava à janela do andar correspondente. Acho que sétimo. De qualquer modo, bem alto. De longe, eu não podia distinguir os traços, mas podia apostar que era Clarice.
Entrei no prédio, dirigi-me ao elevador. Ao atingir o andar, não precisei abrir a porta. No hall, Clarice Lispector já a abriu e a segurava para mim, dizendo algo assim, em tom de quem reclama:
– Como você demorou! Já estava achando que nem vinha…
Era toda expectativa.
Deixara a porta do apartamento escancarada. Entramos, me fez sinal para sentar em uma poltrona de frente para a janela, sentou-se no sofá, sobre as pernas cruzadas, e ordenou:
– Fale.
– De quê? – perguntei, um tanto assustada.
– De tudo. Quero saber tudo.
Continuei muda, perplexa, olhando para ela. Não fazia ideia do que pretendia de mim.
Vendo que eu não entendia, me passou o Caderno B daquela manhã, dobrado, com meu texto na capa. Vi que havia alguns parágrafos sublinhados, pontos de exclamação em alguns trechos e breves comentários escritos nas margens, numa caligrafia esparramada e espaçosa.
Mesmo sem saber o que ela queria, acabava de vislumbrar um possível assunto: Roland Barthes. Era o tema do meu texto publicado em página inteira naquela manhã, marcando os 60 anos de nascimento do crítico francês, com quem eu estudara alguns anos antes e sob cuja orientação preparara minha tese sobre Guimarães Rosa. A essa altura, ainda inédita, pois a primeira edição só viria a sair no ano seguinte.2
Comecei, então, a falar de Roland Barthes. De como ele era, como funcionara no papel de meu orientador, como desenvolvia suas aulas. Falei também um pouco sobre Guimarães Rosa, de minha hipótese de trabalho sobre a escrita dele. Nem cheguei a me estender muito, pois logo pude perceber que nada disso a interessava, em nada.
Por outro lado, notei uma brecha. Ela quis saber mais sobre meu trabalho com Barthes. De vez em quando, me interrompia com alguma pergunta. Assim, fui compreendendo que o que realmente a atraía era a ideia de que um livro pudesse ser todo feito de fragmentos – algo que eu mencionara de passagem em meu artigo, a propósito do então recentíssimo lançamento de Roland Barthes par Roland Barthes na coleção Écrivains de Toujours da Seuil.
Interessou-se também por outro ponto a que me referi: a questão que Barthes formulou e buscou desenvolver sobre “por onde começar?”.
A partir desses dois temas, após uns 15 minutos em que ela falara muito pouco, a conversa engrenou com mais fluidez. Clarice começou a se manifestar, cada vez mais. Não me pareceu animada nem entusiasmada com o assunto, mas aflita, perturbada, quase angustiada e compulsiva. Acabou por me dizer, quase em tom de confidência, que estava havia um ano e meio escrevendo um livro, e agora achava que estava pronto. Ou quase. Mas tinha um problema: não sabia como ordená-lo.
Não entendi bem, mas logo ela passou a esmiuçar melhor.
Para começo de conversa, não sabia por onde começar o novo livro. E também não fazia ideia de como arrumá-lo depois que começasse. Mas estava convencida de que não faltava escrever mais nada, já tinha tudo pronto. Só que em fragmentos. Esse era o problema. Precisava montar o quebra-cabeça. Explicou que sabia que tinha uma protagonista e muitas reflexões sobre ela. Tinha também alguns diálogos entre essa protagonista e outros personagens. E as situações vividas. Tinha todas as partes, estava segura disso. Mas não tinha o todo, e isso a deixava numa situação de desespero total.
De manhã, quando lera meu artigo, imaginou que eu poderia socorrê-la, porque teve a sensação de que eu compreendia seus problemas, falava deles de uma forma com a qual se sentia plenamente identificada, próxima, confiante. E ela não estava mais aguentando continuar naquela situação. Queria então me pedir que a ajudasse a ordenar a obra.
Insistiu muito em dizer que não fazia ideia de como começaria e ficou muito surpresa quando eu argumentei de volta, garantindo que começar nunca foi problema para ela. Para dar um exemplo de sua segurança nessa área, mencionei que, afinal, ela até mesmo já começara um romance por uma vírgula.
Negou com veemência, dizendo que isso não acontecera, eu estava inventando, ela não faria uma coisa dessas, jamais. Insisti, ela continuou a negar. Era uma discussão ridícula, eu garantindo que ela escrevera algo de que não se lembrava e que se recusava a reconhecer.
Tive que lhe provar, pedindo que pegasse na estante um exemplar de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Abri na página inicial e mostrei: “, estando tão ocupada, viera das compras de casa que a empregada fizera às pressas…”.
Ficou em silêncio, com ar de espanto, parecendo realmente perplexa com a revelação. Viu que era verdade: ela já começara um romance por uma vírgula. Apenas admitiu que esquecera.
Depois, se levantou de novo, foi até a estante e guardou o livro. Mas pegou uma caixa em uma das prateleiras. Trouxe-a de volta ao sofá, abriu-a e começou a me mostrar papeizinhos diversos, com fragmentos escritos, e algumas páginas inteiras. Uma grande mistura. Havia de tudo. Trechos datilografados e manuscritos. Dos mais variados formatos e feitios, de papel de embrulhar pão a verso de nota fiscal. Alguns eram diálogos. Outros, coordenadas para uma cena. Outros ainda, informações soltas, quase de almanaque, sobre animais, plantas, vultos históricos, estatísticas. Sem disfarçar um certo constrangimento, me disse que nunca lhe acontecera isso, era a primeira vez que estava pedindo socorro a alguém para escrever um livro.
Narrou um sonho comprido que tivera, em que o narrador de um dos fragmentos mais longos lhe aparecia e conversava com ela. Contou sua lembrança desse sonho e desse diálogo, pedindo-me que lhe explicasse seu significado. Quando, meio assustada, eu lhe disse que não era psicanalista e seria charlatanice me meter a dizer qualquer coisa a respeito, ficou quase agressiva, dizendo que se eu tinha uma tese em semiologia devia ser especialista em significados, mas meu comportamento era egoísta, porque não estava querendo colaborar.
Fiquei firme em minhas negativas no que se referia a interpretações do sonho ou disposição para ajudar no texto. Mas continuamos conversando sobre o que sonhara e as coisas que o narrador lhe dissera então. Era um contexto belo e rico, intenso, cheio de vertentes que ela abria para si mesma e não via – pelo menos, ao que me parecia. Sua total ignorância, confessa, sobre os caminhos do incons- ciente era comovedora e me deu a medida da grandeza de sua intuição, da força de sua percepção, capazes de criar uma obra de tamanha verdade psicológica.
Em algum ponto, tornei a lhe dizer que todas as soluções para seu livro teriam que vir dela mesma. Fiquei firme, por mais que ela insistisse. Eu não poderia jamais tocar naqueles fragmentos de sua obra para ajudar a ordená-los. O livro era só seu, de mais ninguém.
No momento em que compreendeu que minha decisão era inabalável, me olhou em silêncio, foi ficando com os olhos úmidos e começou a chorar. Sem dizer nada. Testemunhar aquela cena foi um momento muito aflitivo para mim. Depois de algum tempo, Clarice falou, como se concluísse:
– Então estou mais sozinha do que pensava. Faz mais de um ano que esperava que alguém pudesse me ajudar, tinha certeza de que um dia ia encontrar. Hoje de manhã te encontrei no que você escreveu no jornal. Achei que estava tudo resolvido. Eu sei que você pode me ajudar, se quiser. Mas você não quer. Prefere dizer não. Estou mais sozinha do que nunca. Agora vou ter de fazer por mim mesma.
Tentei sugerir uma fórmula intermediária, me oferecendo para vir outras vezes a sua casa conversar com ela. Podíamos falar de coisas variadas, inclusive do livro. Talvez trocar ideias a ajudasse, e ela então pudesse prosseguir. Mas reiterei que o livro era seu, e só ela poderia tocar nele.
Essa proposta não a satisfez. Não consegui perceber se minha sugestão a irritava ou a angustiava. Ela fazia longos silêncios, e eu não sabia como interromper a situação aflitiva que se criara. A essa altura já anoitecera, e ficamos algum tempo caladas, as duas na quase escuridão, antes que ela se desse conta e acendesse uma luz. Finalmente, consegui dizer que precisava ir embora.
Ao me levar até a porta, enquanto esperávamos o elevador, Clarice rompeu o silêncio:
– Você não pode mesmo me dar nada, a não ser a certeza de minha solidão?
Nem sei direito com que palavras tentei assegurar, mais uma vez, que podia dar amizade, mas não ajuda com o livro. A decepção que tivera comigo era evidente e aflitiva. Como se eu a estivesse abandonando de propósito.
Ao chegar em casa, com a sensação de estar saindo de um pesadelo ou de um estranho sonho, fiz logo algumas anotações do encontro, numa espécie de “ajuda-memória”, como dizem os franceses. Usei minha experiência de repórter para tentar registrar da maneira mais fiel possível as frases que acabara de ouvir. Já começava a duvidar do turbilhão emocional em cuja órbita eu girara naque- las poucas horas.
Dois dias depois, Clarice me telefonou de novo. Calma, quase carinhosa, queria me agradecer. Disse que respeitava muito minha atitude e via que eu tinha razão. E que eu tinha sido corajosa em dizer não. Poucas pessoas teriam essa dignidade, garantiu. Guardei uma frase:
– Você me ajudou a enfrentar a verdade.
Nunca mais nos encontramos.
Menos de dois anos depois, poucos dias após sua morte, me chegou um dos primeiros exemplares do livro, recém-publicado, com sua dedicatória em letra trêmula. Lindo título, A hora da estrela. Uma obra-prima.
Li e reli. De vez em quando tive a sensação de encontrar algumas das passagens que tinha visto nos papéis soltos ou ouvido na sua leitura. Aos poucos, claramente fui me deparando com alguns dos fragmentos. Só que não eram mais fragmentos. Era uma obra fluente, perfeitamente estruturada, com tudo harmoniosamente disposto, acabado, reinventado. Até as informações soltas, do tipo almanaque, se haviam convertido em indícios indispensáveis sobre a protagonista, na reiteração de sua solidão, só quebrada por frases avulsas da Rádio Relógio, fundamentais para Macabéa encher o tempo de seu isolamento e ter assuntos variados para conversar com o namorado. Tudo perfeitamente contextualizado, bem amarrado. Perfeito, admirável, dava vontade de aplaudir de pé.
E eu nem ao menos podia conversar com ela sobre isso, confirmar como valera a pena ter confiança em sua força criativa. Chegando-me dessa maneira, com a marca de sua caligrafia, logo depois de sua morte, o texto era um testemunho da reinvenção e do emocionante poder artístico de Clarice.
Como afirma o narrador do livro, em um talvez possível fragmento que me assombra ao mesclar morte e escrita, e que nem lembro mais se vi na mão da autora, pulando de dentro da caixa na penumbra daquele fim de tarde, ou se apenas passou a constituir parte de uma obra-prima: “Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias. Mas preparado estou para sair discretamente pela saída da porta dos fundos.”
NOTAS
- Jornal do Brasil, 30.11.1968 in Todas as crônicas. Rio de Janeiro: Rocco, 2018, p. 172.
- O livro foi lançado pela editora Imago, sob o título Recado do nome: leitura de Guimarães Rosa à luz do nome de seus personagens, e hoje faz parte do catálogo da Companhia das Letras.
Ana Maria Machado (1941) é autora de vasta obra infantojuvenil, romances e ensaios. Membra da Academia Brasileira de Letras, em 2000, recebeu o Hans Christian Andersen, mais importante prêmio internacional dedicado à literatura infantil, e, no ano seguinte, o Machado de Assis, pelo conjunto da obra. Publicou mais de 100 títulos, traduzidos em 20 países.
As notas para A hora da estrela, como aquelas que Clarice Lispector (1920-1977) mostrou a Ana Maria Machado em 1975, estão abrigadas desde 2004 no acervo da escritora no Instituto Moreira Salles.
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