Quando me deram sua foto, Thais, eu não esperava chorar o luto de uma desconhecida. Penso que queria ter visto teu salto riscar o chão da pista, sentir no ar a doçura inebriante dos teus perfumes europeus e viver os amores mediterrâneos na Costa Amalfitana, por onde você passou. Só que o tempo, por fim, nos atravessou de outras formas. Encontro você como quem encontra um espelho rachado, ainda que refletindo. Sinto que tua memória me chama, me impele a escrever. Não para te explicar, mas para fazer com que tua beleza, tua dor, tua força e teu axé não se percam no lixo da história.
*
Foi uma amiga, Rakyllayne, quem me presenteou com a imagem de Thais. Em sua casa, enquanto conversávamos sobre o passado e o que ainda pulsa dele, folheei pela primeira vez seu álbum de fotografias, páginas e mais páginas de memórias da sua infância, de familiares e de amigas travestis dos anos 1990: imagens condensadas de um tempo que, a partir dos seus relatos, pareciam-me voltar à vida. Sempre admirei nossa amizade porque vejo nela uma espécie de encontro de tempos distintos: eu, uma travesti de 26 anos, com pouco mais de dois anos de transição, cursando pós-graduação, e ela, uma trans que já ultrapassou seus 50 anos, avó, ex-prostituta e ex-usuária de crack, que encontrou na política pública um lugar e um sentido de vida. Eu sou do tempo do acesso aos hormônios e à PrEP pelo SUS, da depilação a laser, do direito ao uso do nome social, da retificação e, talvez mais importante do que tudo isso, da possibilidade incipiente de sonhar um futuro. Raky vem de um tempo outro: o das perseguições constantes dos alibãs, das maçãs do rosto recheadas de silicone industrial, das amigas mortas cedo demais, do HIV como sentença de morte e de um glamour travesti que já não existe mais. Uma vida nutrida da adrenalina e da urgência do agora diante de um futuro incerto. Tudo isso construído à base de óleo industrial, sangue, gilete e muito desejo.1
Enquanto folheava o álbum de fotos, uma figura belíssima me chamou a atenção. Raky me disse que era a famosa Thais Diniz, de que tanto me falaram na pista. Raky guardava em seu arquivo familiar umas dez fotos que uma cafifa, conhecida como Priscila do Peitão, havia preservado, mas que, diante do acúmulo de coisas, vinha descartando aos poucos. As imagens me encantaram profundamente, eram memórias da vida de Thais entre o Brasil, a Itália e a França. Em uma delas, Thais está nua, coberta apenas por uma peça de pele de sucuri crua, que se enrola ao seu corpo como uma segunda epiderme. A imagem era arrebatadora, quase mítica: uma travesti em nudez cerimonial, perspectivista, vestida de cobra. Raky me deu essa foto e disse: “Fica com ela, é pra memória da Thais circular”. Mais do que um gesto de delicadeza, vi ali uma missão a ser cumprida. E foi assim, enrolada em cobra e silêncio, que Thais se deslocou daquele arquivo e passou também a me habitar.

A primeira vez que ouvi falar de Thais Diniz foi numa terça-feira qualquer, na pista do Jockey Club de São Paulo – dia fraco no quesito bateção de ponto na pista. Ali, as travestis dividem a calçada com os restos de uma elite decadente, old money, daquelas que ainda sonham com cavalos e whisky importado on the rocks. Dos casarões, não se ouvia o menor sinal de vida – silenciosos como túmulos, guardavam o eco de tempos mais gloriosos, já em ruínas. Nesse momento, quem dava alguma vida àquela paisagem era meia dúzia de travestis, algumas fumando uma taba em silêncio, outras distraídas no celular, conversando com seus clientes, ou ainda retocando a make no reflexo dos retrovisores, na espera de algum carro reduzir a marcha.
Ali estava Rachel no seu ponto habitual, recuado em relação à avenida, quase oculto num parque inabitado da região. Sua figura sempre me pareceu um pouco deslocada, ela se destacava naquele cenário. Conhecida como “Vovó das trans”, por ser mais croca, em todas as vezes que a encontrei, ela usava uma máscara médica preta e um boné encobrindo parte do olhar. Um visual discreto, beirando o hermético, extremamente peculiar na pista.
Naquele momento, ela conversava com outra trans, um pouco mais nova, relembrando memórias da vida em Santo André, da opulência dos concursos de Carnaval e das noites europeias. Eu, muito que ninfeta, sempre busquei aquendar a indaca quando as travas barrocas falavam. Havia nesse ato um certo tipo de postura ética geracional, compartilhada entre as trans frente à memória. Nessa aproximação, Rachel me contou que havia conhecido Thais Diniz quando ambas competiram no mesmo concurso, organizado por Tânia Star, uma das travestis mais famosas e ricas de SP, diretora artística da lendária boate Pink Panther, em Santos. O ano era 1986, e o concurso, o Miss Carnaval Gay, na época um “Miss Brasil” das travestis, era disputadíssimo. Papo de produto de exportação, mon amour. Em muitos casos, a vitória significava uma viagem para a Europa, paga por parcerias com agências de viagem focadas no “público gay”. O destino? Paris, Rimini, Capri, o sonho que toda boneca brasiliana busca para se fazer. Rachel me disse que se lembrava perfeitamente da entrada de Thais, uma coisa “bem Paris”: corpete branco toda funfun, espartilho bordado com pérolas e franjas, saltos altíssimos e o picumã longo e loiro, que já era sua marca registrada. Em um momento de autoafirmação, Rachel também me contou que sua própria entrada tampouco havia passado despercebida. Ressaltou que, mesmo não sendo feita como Thais, encantou o público, que foi às alturas, gritando: “Já ganhou! Já ganhou!”
Uma pausa na história.
Um cli que estava passando de carro começou a reduzir a marcha e me perguntou se eu estava ocupada. Disse que sim e, em um gesto de recusa, me virei para Rachel, que começou a me sussurrar segredos em bajubá: “Quenda o ojun nessa cona, viu… Uma penosa doida pra dar o edi arrombado dele por quaisquer dez arô.” Rimos. Pura xoxação, mona, abafa.
Voltando ao babado: Rachel e Thais chegaram juntas à final do concurso. Tânia Star tomou o microfone e anunciou, com o suspense que o momento exigia, que a vencedora havia sido escolhida por unanimidade pelos jurados. Ao descrever essa cena toda, Rachel seguia soltando nomes de pessoas agora falecidas, como quem acendia velas para um altar invisível – eu não saberia dizer quantas vezes repetiu “todas já morreram”. Eliane King Kong já morreu. Jaqueline Blablablá já morreu. Carla Facão já morreu. Thelma Lipp, famosa concorrente da Roberta Close, já morreu.
Naquele instante, Thais tinha certeza de que seria a ganhadora. Fez caras e bocas, jogou o peitão, já ensaiando seu coroamento. Rachel também acreditava que a coroa seria de Thais e, intimidada, começou a se esgueirar para fora do palco, até que foi interrompida por um dos organizadores do evento: “Não sai, não, mulher, você ganhou!”. Confusão armada. As amigas de Thais não aceitaram a derrota e começaram um fuzuê generalizado. “Como poderia uma ninfetinha ganhar de Thais Diniz?”, diziam.
A opulência de Thais foi sua bênção e sua maldição. Na pista, era uma estrela para as travestis: sempre descia com aquele glamour, trajando seus casacos de pele à moda de Paris. Thais Diniz era um mito, Rachel me disse. Ela gostava de exibir seus batons Yves Saint Laurent, presentes de clientes europeus. “Qual seu batom, querida?”, e emendava logo: “Bicha, você tem que usar esse aqui, ó: Saint Laurrrrrrent”, forçando o “r” como quem saboreia uma taça de Chandon.
Se em alguns casos sua opulência era ferramenta de deboche, em outros era seu jeito peculiar de cultivar uma certa ética do cuidado com outras travestis. Rachel me contou que, tratando do enterro de uma amiga em comum, Thais fez questão de preparar o corpo com o que havia de melhor. Passou na defunta o seu perfume importado, um Valentino daqueles que custam o olho da cara. “Ela não vai de qualquer jeito, não, minha filha”, dizia, talvez para a própria Morte. Vai cheirosa, vai fina, vai com dignidade.
*
Comecei a buscar vestígios dessa figura em todo lugar, nos arquivos públicos da cidade e nas pistas de São Paulo e Santo André, à procura de alguém que a conhecesse. Thais Diniz foi travesti nos anos 1980, contemporânea ao grande fenômeno de Roberta Close, figura chancelada midiaticamente como “a mulher mais linda do Brasil”. Era o tempo dos silicones industriais e hormônios, mas também das batidas policiais e das automutilações para escapar da polícia. Em 1984, a Playboy dizia sobre Roberta Close: “Na época da gilete e das perucas, as pessoas sabiam com quem estavam falando. Mas, depois que a ciência se intrometeu com silicone e hormônios, tudo ficou mais complicado.” Para alguns, as tecnologias de gênero haviam chegado, na cultura brasileira, caracterizada pelas inversões rituais carnavalescas, a um estágio em que a sociedade passou a hipervalorizar o “falso”, a imitação. O feminino era agora consumido em doses cavalares de pílulas hormonais e seringas de Silicone-1000.

De fato, a passagem dos anos 1970 para os 1980 foi um marco na construção da travestilidade brasileira, o fruto proibido do cruzamento entre os avanços da ciência e a abertura da imprensa, da televisão, do entretenimento. Foi quando o autodenominado sujeito travesti saiu das festas privadas, da penumbra da noite e dos cinemas eróticos para se tornar uma figura pública, chancelada midiaticamente.2 Thais aparece em fotos de importantes revistas dos anos 1980, como a Manchete e a Fatos e Fotos, responsáveis por cobrir bailes de Carnaval como o Grande Gala Gay, no Rio de Janeiro. Plumas, brilhos, paetês, neca aquendadíssima, maiôs justíssimos, meia-arrastão e maquiagem expressiva invadiam as revistas. E também peitões siliconados.
A transexual Roberta Close é a escolhida para encarnar o mito da beleza brasileira, produto desse novo momento fármaco-pornográfico, tempo da confusão de gênero, tempo da suposta vitória da ilusão. Na capa da Playboy de maio de 1984, vemos a “feminilidade original” de Lídia, a mulher cis escolhida para ser a coelhinha da edição, ocupando o centro da imagem. Relegada ao canto esquerdo, a intrigante “feminilidade fake” de Roberta Close aparece mais tímida e em uma foto menor, acompanhada da seguinte chamada: “Incrível: as fotos revelam por que Roberta Close confunde tanta gente!”. A revista prometia desvendar finalmente o segredo da transexual, alimentando a curiosidade brasileira de ver se o que havia entre suas pernas era afinal neca ou raxa. O clímax da espetacularização.
A edição esgotou em três dias. O ensaio começa com uma foto em preto e branco de La Close, ainda vestida, com olhar dócil e sorriso de Monalisa. No segundo momento, em uma versão mais femme fatale, a transexual aparece com os peitos à mostra, debruçada sobre uma cadeira. A terceira e última imagem é o ápice do seu strip-tease visual: Roberta se encontra nua, de pé, braços abertos e pernas cruzadas. As imagens que prometiam revelar o mistério, na verdade, sustentam-no, ao mostrá-la trucando a neca. Como no tempo do mito, reinava a indistinção: o público se questionava se Roberta era homem, viado, travesti, transexual ou mulher.
Ao pensar o caso de Roberta Close, entendo que a transexual reencena, no espaço da mídia, da passarela e também da pornografia, um certo tipo de realidade mítica articulada em torno da origem racial e sexual do Brasil, historicamente associada à colonização e à figura da mulher negra. Embora fundada na suposição de um convívio harmônico entre as três raças, a partir de um ideal positivado de miscigenação, o desejo que a sustenta é essencialmente ambíguo: instaura a nação ao mesmo tempo que a ameaça.
Em um processo de torção mítica, Roberta surge como a personificação da mulher brasileira idealizada, já em um novo momento fármaco-pornográfico – o tempo dos hormônios, das revistas e dos silicones. Mestiça, de traços finos, curvas exuberantes, La Close servia uma beleza tropicalizada: odara o suficiente para seduzir, passável o suficiente para confundir e “polida” – lê-se “branca” – o bastante para circular na grande mídia.
Contudo, sua transgeneridade torna esse mito mutável. Há uma inversão nas categorias raciais e sexuais – negra-branca e raxa-neca. Sua beleza é também incorporada à narrativa da nação, mas sob a forma de um corpo-limite: simultaneamente cultuado e vigiado, exaltado e regulado.
Por mais que, em sucessivas reportagens, La Close buscasse se autoidentificar publicamente como uma transexual, parte da imprensa brasileira a considerava “um travesti”. Havia uma permanente tensão gênero-midiática entre ser transexual, categoria asséptica fundamentalmente clínica, e ser travesti, seu inverso abjeto, associada à criminalidade, à agressividade e também à aids. Em 1980, o jornal O Estado de S. Paulo advertia, como se fosse um furo jornalístico: “Perigo! A invasão dos travestis”. Já em 1987, no curso da famosa Operação Tarântula, a Folha de S.Paulo anunciava: “Polícia Civil ‘combate’ a aids prendendo travestis”. Os atos de automutilação eram uma defesa contra a polícia, com travestis se utilizando do próprio estigma de soro-positivas para não serem presas. Penso em Lélia Gonzalez,3 que dizia que todo mito oculta algo além do que mostra. A mulata e a travesti se entrelaçam como produtos de exportação brasileiros que, findado o ritual de coroamento carnavalesco, voltam respectivamente aos seus lugares de doméstica e de puta aidética.
A narrativa de migração para a Europa, construída por muitas travestis, não era apenas um sonho de glamour, mas também um caminho para acessar procedimentos de transformação corporal que o Brasil da época dificultava. Esse foi o caso de Thais, que, segundo algumas me contaram, teria feito sua buceta fora do país. Uma das primeiras. Também é o caso de Roberta Close, que, em 1990, anos depois de realizar sua cirurgia de redesignação em Londres, voltou à Playboy para anunciar seu novo corpo: “Roberta Close: o final feliz”, estampava a chamada da capa. O corpo “corrigido” ganhava, enfim, sua chancela midiática. A neca havia sido removida. O mito, consumado.
*
Ainda que realizadas amplamente em diversos países, as cirurgias de redesignação só foram autorizadas no Brasil no final dos anos 1990, sob caráter experimental, em hospitais universitários. Antes disso, eram totalmente criminalizadas.
Um exemplo desse percurso, nos anos 1970, foi o processo judicial por crime de mutilação grave movido contra o cirurgião plástico Roberto Farina, considerado o primeiro a realizar cirurgia de redesignação sexual no Brasil. Em pedido de instauração de inquérito policial, o procurador Luiz de Mello Kujawski assinalava: “Não há nem pode haver, com essas operações, qualquer mudança de sexo. O que se segue é a criação de eunucos estilizados, para melhor aprazimento de suas lastimáveis perversões sexuais e, também, dos devassos que neles se satisfazem. Tais indivíduos, portanto, não são transformados em mulheres, e sim em verdadeiros monstros.”4
O pênis, transformado em neovagina, foi tomado como um bem físico tutelado pelo Estado, “inalienável e irrenunciável”. Mesmo com a defesa internacional de importantes médicos, psicólogos e sexologistas da época, que endossaram o procedimento como alinhado à medicina global, Farina foi condenado em primeira instância, em 1978, por lesão grave, em um processo levado a cabo pelo Conselho Federal de Medicina e o Ministério Público. Um ano mais tarde, o processo foi revisto, e Farina, absolvido.
Contudo, nas margens da medicina oficial, longe dos consultórios e das clínicas, as travestis executavam seus próprios caminhos para a transformação corporal – o lado oculto do mito da beleza. Para quem não sabe, o processo de bombação funciona assim: após escolher uma bombadeira de confiança ou, ao menos, famosa por lapidar bem as bonecas, a travesti marca o local para realizar o procedimento, normalmente na casa de alguém, e adquire os materiais necessários – como cola Super Bonder, anestésicos, álcool, papel higiênico e seringas com agulhas pequenas, para aplicação da anestesia, e grandes, para o silicone. Com a morte de muitas travestis, as bombadeiras passaram a desenvolver suas próprias técnicas para reduzir os riscos do procedimento, recomendando que as bonecas tomassem antibióticos e anti-inflamatórios alguns dias antes da bombação.
A aquisição do silicone fica por conta da bombadeira. Os fabricantes do produto, usado na indústria automotiva para lubrificar peças de carros e de avião, evitam vendê-lo diretamente para as travestis, porque sabem que ele será usado para modificações corporais, mesmo não sendo biocompatível com o corpo humano.5 Ainda assim, em praticamente qualquer cidade onde existam revendedores ou fábricas, as bombadeiras dão um truque para conhecer os caminhos subterrâneos e acessar o tal “líquido da beleza”. As rotas de acesso ao silicone são guardadas com extremo sigilo, são um conhecimento que circula em códigos, sussurros e alianças. Mais do que um simples produto, o silicone aqui é um segredo.
O procedimento tem início com a marcação e higienização das áreas do corpo, como coxas e glúteos. Nesse momento, é de bom tom que a travesti tenha um travesseiro ou algo que o valha para morder. Em seguida, um anestésico é aplicado para apaziguar as dores que virão. Inicia-se, assim, a bombação de fato. A seringa com a agulha maior, mais grossa, se justifica pela densidade e viscosidade translúcida do óleo. De maneira cadenciada, a bombadeira então esvazia sucessivas seringas, mantendo uma postura firme, ainda que a travesti bombada esteja aos berros, urrando de dor. A frieza é parte do ritual: quanto menos enrolação, menos tortura.
Após as aplicações e a retirada das agulhas, é comum que se forme um inchaço nos pontos marcados. Mas o processo não acaba por aí, não. Tem que meter logo uma massagem daquelas no local, com jeito e força, para espalhar bem o produto onde se quer o volume. O truque é deixar tudo lisinho, sem ondulação, com aquele acabamento de boneca. E, depois disso, mona, o fecho final: passa logo uma Super Bonder na fissura para selar o buraco.
As mais barrocas sempre buscaram me alertar sobre os riscos da bombação. Lembro-me de Luana, travesti nos seus quase 50 anos e com cerca de 12 litros de silicone industrial injetado no corpo, encostada em um poste na pista, cigarro aceso, batom intacto. “Isso aqui é uma faca de dois gumes, bicha”, ela me disse. Seu corpo ainda chamava atenção na rua. Contudo, completou: “Eu paguei um preço muito alto e ainda pago para ser chamada de gostosa por esses okó. Mal sabem eles. Eu sou um monte de óleo. O meu corpo não tem nada de carne. É um monte de óleo apodrecendo.”
*

Raky me contou que Thais morreu sozinha no seu apartamento em 2024, com um quadro gravíssimo de alcoolismo. Para algumas meninas da pista, a colocação era sua perdição. Sua morte aconteceu no limiar do esquecimento, e esse esquecimento se aprofundou com o destino de seu arquivo: grande parte das fotos se perdeu, já que sua família de sangue tratou suas memórias como entulho, descartando aquilo que não reconheciam como digno de preservação.6
*
Apesar de não conhecer o glamour do veraneio italiano ou dos cafés parisienses, Thais, sinto que já vivi alguma fagulha desse vislumbre fugaz nas passarelas do mundo da moda. Eu tinha um sonho agridoce de ser modelo, de encarnar o Belo, que logo revelou seu gosto metálico e amargo, feito sangue na boca. Tornar este corpo um outro corpo, mais feminino, mais desejado, era um ritual diário, quase que obsessivo, construído à base de anorexia, capital e hiperfixação imagética. O feminino é monstruoso, é visceral.
Lembro uma situação em um photo shoot do qual participei. Estávamos em uma pausa para fotos, comendo depois de horas de trocações infindáveis de roupas, seguidas de cliques fotográficos que cegavam os olhos. Um dos produtores, em tom brincalhão, falou: “Meninas, lembrem que não é pra comer muito. A câmera vê tudo.” Riram todas. Um riso automático, apertado, daqueles que saem antes do pensamento. Aos poucos, uma ou outra modelo desaparecia da sala. “Vou ao banheiro”, tentavam disfarçar, mas eu sabia o que iam fazer. Mesmo de longe, eu imaginava seus golfos. A comida mal digerida batendo contra a cerâmica do vaso, primeiro em jatos líquidos, depois em golfadas mais secas, pura bile, como se o corpo estivesse lutando para expurgar a culpa do que nunca deveria ter entrado.
Transicionar foi a coisa mais difícil e mais bonita que eu já fiz na minha vida. Carrega em si uma visceralidade antiga, dessas que habitam os grandes ritos de passagem e iniciações rituais, ou mesmo os mistérios da natureza quando a carne se curva ao tempo e as crisálidas rompem seus estados de pupa para dar à luz uma nova forma corporal. Houve dias, no começo da minha transição, em que a lâmina de barbear passava no meu rosto com tanta fúria, tantas vezes, que eu não sabia se o que fazia era me produzir ou destruir. Havia dúvida, assim como havia entrega. Penso em Jota Mombaça,7 para quem em toda transição há, mais ou menos implícita, a demanda por um fim de mundo, sem que isso signifique, senão como promessa, a garantia de um mundo a seguir. Pulsão de vida e pulsão de morte se misturavam como barro e sangue, a matéria do divino e a matéria do carnal, na construção desse corpo em nascimento.
*
Lembro-me de chorar por você a caminho de casa após receber tua foto, Thais. Chorar como quem sente que algo atávico foi reaberto em mim. Recordo-me também de pensar sobre esse limiar do esquecimento que muitas de nós, travestis, habitam desde Xica Manicongo. Sentia, portanto, que precisava fazer jus ao teu apogeu e ao teu declínio. A caminho de casa, comecei a ouvir aquele sussurro familiar no ouvido esquerdo. Não sei se era ela falando ou então meu próprio corpo respondendo ao chamado. Comecei a sentir um impulso que não era meu, ou então era meu demais. Era vontade de algo doce e forte, vontade de oferenda. A entidade tinha sede. “Compra um champanhe”, sussurrava. “Mas que seja bom, viu? Que Thais não merece miséria.”
Já era tarde, a maioria das lojas estava fechada, mas perto de casa uma distribuidora de bebidas ainda funcionava. Entrei quase sem pensar, procurando aquela garrafa que brilhasse aos meus olhos. Saí de lá com uma das boas, um espumante rosê, daqueles que cintilam em taça fina e deixam o ar com cheiro de festa. Rachel me contou que Thais amava brindar – para ela, qualquer momento era ocasião para levantar a taça. “Classe, elegância, amor e tesão”, dizia, erguendo o corpo com seu charme inconfundível.
Chegando em casa, fui direto para meu quarto, onde tenho um pequeno altar. Nada muito grandioso, apenas um alguidar, uma taça, uma cigarrilha queimada pela metade, algumas moedas, um espelho velho com algumas rachaduras e uma estátua daquela que me guia. Pombagira Rainha das Sete Encruzilhadas. Pele dundun, capa vermelha, bastão dourado na mão e coroa reluzente na cabeça. Através das suas vestes, me via pensando em Thais, que também se fez rainha. Não no altar, mas nos bailes de Carnaval, onde o aplauso também era oferenda para ela. Após colocar no altar a foto de Thais vestida em couro de cobra, acendi uma vela vermelha e preta para abrir o portal. Sua pele parecia brilhar diante do fogo em uma metamorfose animista. Laroyê. Comecei a fumar uma cigarrilha doce e a jogar sua fumaça na taça de espumante.
Uma campainha gritou no ar.
Naquele dia, havia marcado de foder com um dos meus amantes. O meu vício, como algumas travas diriam na pista: aquele homem de quem não cobram para transar, porque há algo que as desarma entre o jeito que ele ama e que ele fode. Era tarde da noite, o quarto estava mergulhado num calor úmido e denso. As janelas entreabertas deixavam passar apenas um sopro quente da rua, misturado ao ruído da cidade: buzinas abafadas, um cachorro que latia e o lamento metálico do metrô passando ao longe. A única luz vinha da vela acesa do altar, vermelha e trêmula, lançando sombras nas paredes. Eu usava apenas uma lingerie creme e um robe de cetim preto, insinuando a pele brilhante de suor leve e o contorno tenso das coxas.
Ele chegou como sempre: no silêncio. Camiseta colada ao peito, perfume amadeirado, bermuda jeans que ainda guardava a poeira do dia. O rosto barbeado às pressas deixando apenas o bigode, e os olhos, escuros como jabuticabas, sempre misteriosos. Fomos ao meu quarto e, após fechar a porta, já tirou a camisa e se deitou na beira da cama, como se tivesse sido chamado para o ritual. Sedenta, subi em cima dele como quem monta um cavalo. Um corpo ofertado ao outro, sem mediação. E, enquanto fodíamos, revirando os olhos de prazer, eu olhava para aquele altar. Via a vela tremendo, Thais nua envolta em couro de cobra, o espumante suando na taça e o espelho do altar recolhendo luz como se quisesse guardar tudo: o som, o cheiro, o suor que passava entre a gente.
De fato, na pista circula algo mais do que aqué, tadalafila e porra. O trabalho sexual é também um espaço de circulação de axé, de manejo de energias e da presença constante de entidades. “Já acendeu uma vela pra tua puta?”, perguntavam as travestis quando eu relatava alguma dificuldade. Muitas se despedem desejando axé umas para as outras. As bonecas nortistas que conheci pelas pistas da Barra Funda, em São Paulo, na sua maioria provenientes de Belém e Manaus, me contavam segredos dos encantados e seus mistérios.8 Diziam brincando que, em festa de caboclo bravo, não dava uma travesti. Elas até iam nas festas de outros encantados, mas quando era Seu Pena Verde, Seu Sete Flechas ou Seu Zé Raimundo, travesti nenhuma punha o pé. Tinham medo. Medo de quê? De encantamento.
Corriam o risco de os encantados se apaixonarem pelas travestis e, assim, amarrarem seu anjo. “A senhora está tão bonita hoje… Senta aqui do meu lado”, falavam os encantados. E pronto. Diziam que era namorada agora, que iam cuidar. A bicha, coitada, passava um mês, dois meses sem conseguir cliente na rua, porque o caboclo ficava amarrando o anjo. Aí tinha que ir no terreiro depois, pedir para desamarrar, fazer trabalho, oferenda, vela vermelha, o que fosse, tudo para trazer de volta o axé da rua, do trabalho sexual.
Uma amiga também compartilhou comigo uma situação de extrema vulnerabilidade, em que um cliente apontou uma arma para sua cabeça, exigindo uma relação sexual sem guanto. Para ela, mesmo tomada pelo medo, uma força inexplicável emergiu naquele momento. Ela me disse: “Eu tenho medo de arma, perco a voz, mas ali me veio uma força, e eu falei: ‘Então atira, seu viado!’”. Ao voltar para casa, desabou emocionalmente e reconheceu: “Não sei de onde tirei aquilo”. Em suas próprias palavras, foi a entidade quem se manifestou. “Foi ela.”
Pego o cálice e o ofereço ao meu vício. Brindamos. Classe, Elegância, Amor e Tesão. Bebemos do doce amargo do espumante em um feitiço próprio, um feitiço do nosso amor. A bebida girava entre mim, o vício e o altar. Uma travesti morta não se apaga se for cultuada com espumante, tesão e mandinga, pensei. Quando gozei, não soube dizer se o prazer era meu ou se era dela. Só sei que gargalhei. Ele olhou, surpreso. Sorri, ainda ofegante: “Te amo”. Toquei o rosto dele, puxei de leve o queixo: “Me compra um batom, amor? Mas que seja aquele: um Saint Laurrrrrent. O vermelho carmim, o que encanta.”